ANÁLISE

Artigo | Sobre Bolsonaro, Macri e Moro: fim do ciclo progressista na América Latina?

A longa marcha pela emancipação dos nossos povos segue seu curso e acabará expulsando esses governos entreguistas

Brasil de Fato | São Paulo (SP) |
Os presidentes Iván Duque (Colômbia), Mauricio Macri (Argentina), Sebastian Piñera (Chile), Jair Bolsonaro (Brasil) e Lenin Moreno (Equador)
Os presidentes Iván Duque (Colômbia), Mauricio Macri (Argentina), Sebastian Piñera (Chile), Jair Bolsonaro (Brasil) e Lenin Moreno (Equador) - MARTIN BERNETTI / AFP

Foram muitas e muitos aqueles que, em meados desta década e coincidentemente  com a retomada da ofensiva restauradora do imperialismo, se apressaram para anunciar o “fim do ciclo” progressista na América Latina. A derrota do kirchnerismo em 2015, e o ilegal e ilegítimo impeachment de Dilma Rousseff em 2016, assim como o grotesco julgamento e encarceramento de Lula surgiam como signos inequívocos do início de um novo ciclo histórico. Só que os profetas desta epifania jamais se aventuraram em arriscar uma pergunta muito básica: o que viria depois?

Bom, um ciclo terminava, mas: significava que outro começava? Silêncio absoluto. Duas alternativas. Ou aderiram às teses de Francis Fukuyama sobre o fim da história, algo absurdo, se existir; ou como os mais audaciosos insinuavam, com falsa preocupação, estávamos no começo de um longo ciclo de governos de direita. Digo falsa preocupação porque, extremamente críticos com os governos do ciclo supostamente em bancarrota, veladamente preferiam a chegada de uma direita pura e dura que, supostamente, acentuaria as contradições do sistema e magicamente abriria a porta a sabe-se lá o que...porque, de forma surpreendente, nenhum desses mordazes críticos do ciclo progressista falava de revolução socialista ou comunista, ou sobre a necessidade de aprofundar a luta anti-imperialista. Portanto, seu argumento meramente retórico e academicista, morria na mera certificação do suposto final de uma etapa e nada mais.

No entanto, todos esses discursos foram derrubados nas últimas semanas. Na verdade, já estavam decaindo desde a inesperada vitória de López Obrador no México e sua tardia incorporação ao “ciclo progressista”. Sua vitória demonstrava que, apesar de ferido, o ciclo progressista não tinha morrido. A catástrofe do macrismo, na Argentina, e sua quase certa derrota nas eleições presidenciais em  outubro deste ano e a recente revelação das ilegais e imorais argumentações fabricadas entre o juiz corrupto Sérgio Moro e os procuradores do Poder Judiciário brasileiro para mandar Lula para a prisão representam um duro golpe aos dois pilares sobre os quais repousava o início do suposto ciclo “pós-progressista”.

Na Argentina, os macristas esperam o pior, pois sabem que só um milagre poderia salvá-los da derrota. E Bolsonaro está à beira de um abismo pela crise econômica brasileira e por ter designado como “superministro” da Justiça um inescrupuloso letrado que coloca em contradição sua pretensão de fazer um governo transparente, puro, inspirado nos mais elevados princípios morais do cristianismo inculcados pelos pastores da igreja evangélica quando -- apropriada de forma oportunista -- o batizaram novamente no rio Jordão como Jair “Messias” Bolsonaro.

O vazamento das mensagens enviadas através Telegram, conversas entre Moro e os procuradores reveladas pelo The Intercept, além das diversas denúncias por corrupção contra Bolsonaro e seus filhos, denunciam que este santo homem chamado a lavar os pecados da política brasileira não é senão o chefe de um bando criminoso, um impostor, um charlatão, um energúmeno cujos dias no Palácio do Planalto parecem estar contados. E manter o Lula na prisão será cada vez mais difícil depois de revelada a farsa jurídica praticada contra ele em plena luz do dia. E Lula em liberdade representa um perigo de marca maior para o atual governo brasileiro.

Então significa que só a Argentina e o Brasil estão cumprindo os prognósticos dos teóricos do “fim do ciclo”? Não. O que dizer do desastre colombiano, uma verdadeira ‘ditabranda” pseudoconstitucional onde, segundo o tradicional jornal El Tiempo, “durante os primeiros cem dias de mandato do presidente Iván Duque foram registrados 120 assassinatos de líderes”, um banho de sangue comparável ou pior que o das ditaduras que assolaram países como Argentina, Brasil, Chile e Uruguai nas décadas de 70 e 80.

E o que falar sobre o caso do Peru, onde todos os ex-presidentes desde 1980 (Alberto Fujimori, Alejandro Toledo, Ollanta Humala, Pedro Pablo Kuczynski e Alan García) estão presos, fugiram ou se suicidaram? O que, somado à catástrofe colombiana e a deserção do México, foram um balde de água fria para os integrantes do Cartel de Lima como lacaio regional da Calígula estadunidense. Mesmo o caso chileno não está isento de dúvidas uma vez que a deslegitimação de seu sistema político alcançou níveis sem precedentes. Em efeito, diante da escandalosa submissão dessa frágil democracia frente aos grandes interesses corporativos, em que se governa exclusivamente em seu nome, a maioria da população optou pela abstenção eleitoral, com o consequente esvaziamento do projeto democrático.

Em poucas palavras, o que supostamente chegaria, uma vez consumado o esgotamento do “ciclo progressista”, é pelo menos problemático e está muito longe de constituir uma alternativa que supere o “extrativismo” ou o “populismo” que supostamente tinham caracterizado os governos precedentes.

O que não deve ser interpretado como uma afirmação de que o ciclo iniciado com o triunfo de Chávez nas eleições presidenciais de dezembro de 1998, na Venezuela, segue seu rumo impassivelmente. Muito sofreu nos últimos tempos. A mudança no cenário econômico internacional joga contra o chavismo; o projeto de destruição levado a cabo por Macri, Piñera, Duque, Bolsonaro e a infame traição de Moreno, esse verdadeiro exército Brancaleone que Trump e seu antecessor estabeleceram na América Latina, destruiu muitos dos avanços do passado.

Mas a realidade é obstinada e um contratempo não é uma derrota, como tampouco é um retrocesso pontual. A velha toupeira revolucionária, motor da história, continua trabalhando incansavelmente, favorecida pelo acirramento das contradições de um capitalismo cada vez mais selvagem e predatório. A longa marcha pela emancipação dos nossos povos -- que nunca foi linear e invariavelmente ascendente -- segue seu curso e acabará expulsando esses governos entreguistas, reacionários e lacaios que hoje tomam conta da América Latina e nos envergonham internacionalmente. E não será preciso esperar muito para ver isso.

 

 

*Atilio F. Borón é cientista político, professor da Faculdade de Ciências Sociais da Universidade de Buenos Aires (UBA) e autor de diversos livros, entre eles, Estado, Capitalismo e Democracia na América Latina (Paz e Terra, 2009).

Edição: Luiza Mançano (versão para o português)