ECONOMIA

O que esperar do tratado de livre-comércio que reúne 52 dos 55 países da África?

Entre as maiores economias do continente, apenas Nigéria não aderiu ao acordo; Zlec está em vigor desde 30 de maio

Brasil de Fato | São Paulo (SP) |
Zona de livre-comércio foi aprovada em março de 2018; 52 países aderiram ao pacto
Zona de livre-comércio foi aprovada em março de 2018; 52 países aderiram ao pacto - Foto: STR/AFP

Entrou em vigor, no dia 30 de maio, uma zona de livre-comércio envolvendo praticamente todo o continente africano. Dos 55 países da região, 52 aderiram ao tratado, que tem como objetivo diversificar as economias da África, bastante dependentes da exportação de matérias-primas, e levar a uma maior industrialização, além de fornecer uma plataforma única para negociar melhores acordos com o exterior e reverter o baixo intercâmbio econômico entre as nações africanas.

A Zona de Livre-Comércio Continental (Zlec) é um projeto-chave da União Africana (UA) e está aberto à adesão desde março de 2018. Os três países que ainda não assinaram são Nigéria, maior economia africana, Tanzânia e Eritreia. 

“Estamos falando de uma zona de livre-comércio que irá realizar a redução de cerca de 90% das tarifas internas do continente. Isso irá possibilitar que interesses econômicos e empresas possam circular livremente, algo muito importante para o desenvolvimento africano”, avalia Muryatan Santana Barbosa, professor de relações internacionais da Universidade Federal do ABC (UFABC). 

A Zlec faz parte de um processo que, até 2028, pretende avançar na consolidação de mercado e moeda comuns. Também está no horizonte a criação de um Passaporte Único Africano, conforme traçado na Agenda 2063, quadro estratégico que visa levar a um maior desenvolvimento do continente.

A eliminação progressiva das tarifas deverá gerar crescimento do comércio interno. Hoje, apenas 16% das trocas comerciais africanas são feitas entre países do continente. Na Europa, esse número chega a 70%. Nas Américas, é de 40%. 

Barbosa é cauteloso quanto aos efeitos práticos do tratado. “A questão é se estamos falando de um desenvolvimento com equidade, se isso será possível, ou se estamos falando de um desenvolvimento mais relacionado ao crescimento econômico, do PIB, sem necessariamente melhorar a vida das populações africanas. Isso depende de como essa zona comum for estabelecida”, afirma. 

Para o  pesquisador, a zona de livre-comércio não resolve todos os problemas, mas cria condições para isso. "Não necessariamente levará à diversificação econômica, o que é um elemento importante, mas com certeza irá dinamizar e potencializar essa complementaridade das economias africanas”. 

Trâmite rápido

As conversas em torno da consolidação do tratado começaram a tomar forma em 2009, mas somente em 2015 passaram a ganhar força. De lá para cá, o trâmite foi rápido. O acordo, aprovado em março de 2018, passou a valer após o 22º país ratificar o pacto. Isso ocorreu em 29 de abril deste ano. A Zlec entrou em vigor um mês depois, em 30 de maio, conforme previsto no estatuto. 

Pesos pesados do continente, como África do Sul, Marrocos, Egito, Quênia e Argélia assinaram o acordo. Entre os países mais fortes, a exceção é a Nigéria. O país teve eleições presidenciais em fevereiro de 2019, momento crucial da implementação do tratado, e adiou sua decisão a respeito. 

Para o professor do Departamento de História e coordenador do laboratório de Estudos das Histórias Asiáticas da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), Alex Degan, a posição da Nigéria gera muita expectativa. "Nas eleições, esse foi um assunto amplamente discutido pelos candidatos. A repercussão interna foi a do afastamento da Nigéria neste momento”.

Mas Degan acredita que o país acabará aderindo "com o tempo, se o acordo ganhar musculatura, o que eu acredito que deve ocorrer. O país não vai ficar fora dessa iniciativa. É uma força, uma potência importante e estratégica para a zona de livre-comércio. Acredito que dentro de alguns anos a Nigéria irá integrar [a Zlec] com muita força e entusiasmo”. 

Outro gigante do continente, a África do Sul chegou a pressionar a Nigéria pela assinatura. Durante um encontro extraordinário da UA, em julho de 2018, o presidente sul-africano, Cyril Ramaphosa, chamou a atenção, em tom de brincadeira, da ministra das Finanças nigeriana, Keomi Adeosun. 

“Nós já assinamos o acordo. Portanto, Nigéria, não se sintam pressionados, só queria dizer que já assinamos, mas claro, não se sintam pressionados, demorem o tempo que for preciso, mas não demorem muito, que o resto do continente está à vossa espera”, disse Ramaphosa na ocasião. 

Em resposta, Adeosun afirmou que o processo de assinatura estava em curso. “Temos de fazer consultas, somos uma federação de pequenos estados e estamos a concluir o processo de consultas; nunca devemos ter pressa para fazer as coisas mal, porque isso é realmente importante e tem de ser bem feito”, disse.

Para o professor de ciências econômicas da Universidade Federal do ABC (UFABC), Paris Yeros, a Nigéria “tem um mercado interno muito grande, um mercado consumidor já bastante elevado para sustentar uma expansão tanto do capital doméstico quanto estrangeiro. Então para eles não é uma grande novidade ter uma abertura continental, pois eles já têm um mercado muito grande”. 

Yeros explica que há divisões acerca desse assunto dentro da Nigéria. "Lobbies diferentes têm atuado. O lobby de industrialistas da federação do setor industrial manufatureiro é o principal a aconselhar o governo a fazer estudos e não entrar no tratado. Outras associações empresariais defenderam o tratado [...] não tem pressa para a Nigéria. Como disse, ela tem um mercado muito grande, então não há pressa para entrar em um mercado maior”. 

Futuro

Yeros prefere olhar a iniciativa com cuidado. "O tratado abre espaço para grandes empresas internacionais que atuam no continente. Esses tratados tendem a ser feitos principalmente para o grande capital, que vai ter um espaço muito maior para atuar. O grande capital será o maior ganhador dessa coisa toda”. 

O pesquisador entende que é cedo para avaliar os impactos da Zlec. “O ponto é analisar que tipo de comércio será esse, que tipo de emprego será criado. Não é nada que vai resolver as questões mais urgentes da África, as questões mais estruturais”. 

Já Degan espera que a iniciativa traga estabilidade ao continente. “O tratado vem com uma série de princípios e arcabouços jurídicos para conferir um certo grau de estabilidade política às instituições africanas. Acredito que essa é uma iniciativa muito positiva. Vamos ver o que vai acontecer. É difícil apontar como irá caminhar”. 

Uma cúpula em Niamey, capital do Níger, irá acontecer no dia 7 de julho para dar início à “fase operacional” do tratado. Os países devem se reunir para decidir algumas regras do acordo. 

O tratado irá abranger uma população de 1,2 bilhão de pessoas, caso alcance os 55 países. Em número de Estados, o Zlec é muito maior que grandes blocos como a União Europeia, que conta com 28 membros.

Edição: Rodrigo Chagas