Depois de passar por Apodi e Mossoró e dialogar com milhares de potiguares, a filósofa e feminista Djamila Ribeiro esteve em Natal (RN) para palestrar e lançar seu segundo livro Quem tem medo do feminismo negro? (2018). A atividade ocorreu no Auditório da Reitoria da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN). Antes de falar ao público, ela concedeu entrevista ao Brasil de Fato RN.
Djamila é pesquisadora e mestra em Filosofia Política pela Universidade Federal de São Paulo (Unifesp). Tornou-se conhecida no país por seu ativismo na internet, em que discute, principalmente, as relações raciais e de gênero e o feminismo. Foi articulista por quatro anos da revista Carta Capital e atualmente é colunista da revista Marie Claire Brasil. Durante a gestão Fernando Haddad, ocupou a secretária-adjunta de Direitos Humanos e Cidadania da cidade de São Paulo. Escreveu o prefácio do livro Mulheres, raça e classe da filósofa negra e feminista Angela Davis, obra lançada no país em setembro de 2015. Em 2017, lançou o livro Lugar de fala, sucesso de vendas em todo o Brasil.
Brasil de Fato: O livro que você lança aqui em Natal possui um ensaio autobiográfico. O que a sua história carrega de parecido com a história de outras mulheres negras brasileiras?
Djamila Ribeiro: Apesar de ser uma história individual, que tem suas particularidades, ela carrega a dificuldade de reconhecimento de si mesma numa sociedade em que os padrões são eurocêntricos, em que a gente cresce numa sociedade onde não somos vistas de maneira positiva. Talvez a história de exclusão do ambiente escolar, que é o que eu ouço muito das meninas negras que me abordam, mas também que é um tema de estudo de muitos pedagogos e outros estudiosos. Essa questão de você chegar na escola e não se reconhecer, não conhecer sua história, já que a história, como diz Walter Benjamim, é contada pelo ponto de vista dos vencedores, dos colonizadores, então é muito difícil a gente se reconhecer dentro disso. Mas, sobretudo, como mulheres negras a dificuldade que a gente teve de se gostar em uma sociedade em que você é odiada o tempo todo e que pessoas como você só são retratadas de maneira muito estereotipada e desumanizada.
Seus livros falam muito sobre o silenciamento. Como você define esse processo?
No Lugar de fala, eu trago a Grada Kilombo, que é uma autora que eu uso muito, e ela fala do silenciamento como uma afirmação do projeto colonial. O silenciamento acontece ao silenciarem nossa existência, nossos saberes, nossas produções. Eu estudei filosofia e não estudei nenhum autor negro, isso também é uma forma de silenciamento. O fato de não sermos tratados como seres humanos, pois sequer fomos alçados a condição de humano. Há cada 23 minutos um jovem negro é assassinado, então é o silenciamento também de existências. Não é o silenciamento só no sentido de a gente falar. Mas o quanto a nossas existências vêm sendo silenciadas sem que as pessoas se comovam com isso ou percebam que existe um projeto em curso de silenciamento histórico da população negra.
Qual a importância do livro Quem tem medo do feminismo negro? nesse momento político do Brasil?
É importante, sobretudo, para afirmar o que é o feminismo negro. Acho que as pessoas têm muitas dúvidas ainda, de achar que é uma divisão do feminismo, ou que é a gente pensar somente nas questões das mulheres negras. Eu acho importante que em um momento de desmonte que a gente vive no Brasil, em um momento muito difícil de que políticas importantes estão sendo desmontadas e de várias ameaças ao direitos humanos, a gente mostrar que o feminismo negro é um projeto, a gente tá pensando um projeto necessariamente anticapitalista, antirracista e antissexista, levando em consideração todos os grupo vulneráveis e não só as opressões que nos atingem. Porque muitas vezes as pessoas têm muitas dúvidas: “ah, mas vocês estão falando só de mulheres negras”. Quando na verdade é o contrário: sim, a gente marca esse negro, a questão das mulheres negras, mas na verdade nós estamos elaborando o mundo e sobretudo estamos pensando um novo projeto de sociedade.
Aqui em Natal temos a primeira vereadora negra. Esse processo aconteceu em várias cidades e estados brasileiros. Como você avalia a representatividade das mulheres negras no espaço de poder?
Nós ainda somos muito poucas em números absolutos, mas nunca se teve tantas mulheres negras nas Assembleias e no Congresso Nacional como hoje. Eu acho que é muito importante fazer essa disputa institucional. Sobretudo agora, no momento que a gente vive. No Rio de Janeiro temos um governador que dá tiro de helicóptero. A deputada [Renata Souza (PSOL)] que denunciou ele pra ONU é uma deputada negra, da [comunidade carioca da] Maré, que trabalhou com Marielle Franco. Em São Paulo, temos a Erica Malunguinho (PSOL) como deputada estadual. São pessoas que a gente sabe que vão fazer as disputas necessárias. Então é muito importante ter essas mulheres. Claro que a gente tinha que ter mais, claro que o poder econômico é que decide quem vai se eleger ou não. Precisamos de uma reforma política muito mais profunda no Brasil, mas inegavelmente essas mulheres são importantes para fazer uma disputa essencial pra gente, para de fato existirem vozes do povo dentro dessas casas. E tem existido cada vez mais uma mobilização de mulheres para eleger mulheres negras comprometidas, porque não basta ser mulher, não basta ser negra, tem que ser comprometida com as causas necessárias.
Levantamento feito pelo Ministério da Saúde, lançado recentemente, revela que a cada dez jovens (de 10 a 29 anos) que cometem suicídio, seis são autodeclarados negros. A pesquisa também mostra que entre 2012 e 2016 o número de casos com pessoas brancas permaneceu estável, enquanto o das negras aumentou 12%. O que você tem a dizer sobre esses dados?
Essa é uma discussão que a gente tem feito já há um tempo, que é a questão do adoecimento psíquico, os danos psíquicos causados pelo racismo e como durante muito tempo a psicologia tradicional ignorou esse debate. Frantz Fanon já fala isso em Peles Negras Máscaras Brancas, de como o racismo adoece psicologicamente as pessoas. O racismo leva à depressão, à tristeza profunda, à baixa autoestima, leva você a não ter perspectiva de vida. Esse debate de saúde mental e racismo é fundamental pra gente poder pensar políticas públicas nessa área, em um país onde a psicologia é mais clínica, as pessoas não tem acesso, é um serviço caro.
O Atlas da Violência 2019 aponta que o Rio Grande do Norte tem a maior taxa de homicídios de jovens negros do Brasil. O que podemos discutir em torno disso?
Discutir segurança pública, que é um debate central para o feminismo negro. No Brasil, temos uma segurança pública voltada para repressão e para violência, voltada para o extermínio e encarceramento da população negra. Essa pesquisa diz que o Rio Grande do Norte é o estado que mais mata jovens negros no país. São 87 mortes para 100 mil habitantes negros. Então debater segurança pública é um dos debates mais urgentes que nós temos a fazer hoje, que é discutir o assassinato sistemático da juventude negra, que é discutir o adoecimentos psíquico das mães negras que estão perdendo seus filhos assassinados, que é um debate fundamental para discutir a questão da humanidade, porque como disse anteriormente, as pessoas negras sequer foram alçadas a condição de humano. Nesse sentido, fiquei sabendo das mães e das mulheres que estavam acampadas na governadoria, para poderem ser recebidas, para poderem falar dessa questão do encarceramento. É necessário que o governo receba essas mulheres. Porque não dá para tratar com repressão e violência pessoas que estão ali reivindicando o direito básico de existência digna. Em um governo de esquerda, como aqui no RN, é preciso que esses temas sejam tratados com a seriedade que eles merecem. É um debate difícil, mas é um debate necessário.
Edição: Marcos Barbosa