Coluna

Cuidado com o sorriso dos poderosos

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Lula, 7 de abril de 2018
Lula, 7 de abril de 2018 - Ricardo Stuckert
Às vezes, o feio vem à tona

“Pela humanidade, camaradas”, escreve Frantz Fanon no final de sua monumental obra Os condenados da terra, “devemos virar a página, devemos elaborar novos conceitos e tentar colocar em marcha um novo homem”. Desigualdades terríveis em nosso mundo mantêm a humanidade dividida. Há poucos conceitos para nos guiar em nosso grande desejo de superar essas divisões, poucos são os roteiros de luta para criar uma nova sociedade. Há a rigidez da cultura e a crueldade do capitalismo, certamente, mas, notoriamente, há ainda o conluio dos poderosos para bloquear o avanço da história.
No final de semana passado (9/12), o The Intercept Brasil divulgou provas definitivas de como se dá esse conluio. O ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva foi preso como parte da Operação Lava Jato, sob acusação de corrupção, e, assim, foi impedido de se candidatar a eleição presidencial de 2018. Uma série de materiais – arquivos e conversas privadas – prova que o juiz Sérgio Moro discutia o caso com o promotor Deltan Dallagnol, a quem Moro deu conselhos sobre como proceder. Além disso, o que é extremamente grave, os promotores da Lava Jato conspiraram e usaram investigação para prejudicar a campanha do Partido dos Trabalhadores (PT) em 2018. O juiz Moro, que condenou Lula por meio de uma investigação corrompida, é agora o ministro da Justiça do atual presidente do Brasil, Jair Bolsonaro. Os advogados de Lula disseram que usarão essas revelações em um documento que será enviado ao Comitê de Direitos Humanos das Nações Unidas. Não é de admirar que a hashtag #MoroCriminoso tenha viralizado no Brasil. Existem, agora, pedidos para que Moro renuncie.
É difícil chocar-se hoje em dia, uma vez que fomos nos acostumando a esse tipo de comportamento. “Pois é”, dizemos enquanto balançamos a cabeça, “é assim que acontece”. Esse cinismo desmobiliza e nos faz deixar de lado a obrigação de exigir que as instituições cumpram os próprios valores estabelecidos por elas. Se você não está com raiva – independentemente da sua posição política – com essas revelações, então, a cultura da democracia está esgotada. Nos deixaremos ser tragados pelo sorriso de canto de boca dos poderosos que se protegem com a desmobilização das massas.

Ex-embaixador dos EUA no Equador, Todd C. Chapman, para Xavier Reyes, El Universo, 9 de junho de 2019

O conluio não ocorre apenas entre setores do governo em um só país. Também ocorre para além das fronteiras. Ao sair do Equador, o embaixador Todd Chapman deu uma entrevista a um dos principais jornais do país. Ele foi questionado sobre a pressão dos EUA para tirar Julian Assange de sua embaixada em Londres. Chapman ignorou a questão. Mas quando perguntado sobre o desenvolvedor sueco de software e defensor de direitos humanos Ola Bini, que já está preso há dois meses no Equador, ele disse algo bastante interessante. O repórter – Xavier Reyes – perguntou se os agentes do FBI haviam colaborado com as autoridades equatorianas no caso de Ola Bini. Agora está claro que os bens de Ola – incluindo computadores – foram enviados para os EUA para análise. Chapman respondeu de forma enigmática: “Quando recebemos ordens para ajudar, ajudamos”. Ligações para o FBI não foram atendidas. Se você não estiver acompanhando de perto este caso, leia a minha coluna sobre a detenção de Ola e visite a página Free Ola [Libertem Ola] para saber mais sobre o assunto.
Enquanto isso, o ministro do Interior do Reino Unido, Sajid Javid, assinou as ordens de extradição dos EUA para Julian Assange. Como escreveu nosso amigo Eduardo Galeano, “a indignação deve ser sempre a resposta à indignidade”.
Não há espaço para o cinismo aqui. Um inocente defensor dos direitos humanos está preso. Ele precisa que nós lutemos pela ampliação da democracia.

Zarmena Waziri, 2019

Zarmena Waziri também precisa da ampliação do espaço da democracia. Ela é uma feminista afegã de 72 anos que sofre de demência avançada. Zarmena vive com sua família nos arredores de Aarhus (Dinamarca). Ao longo de sua vida, lutou para construir um mundo humano em sua província natal de Helmand, no Afeganistão, fazendo uma série de coisas, como concorrer ao parlamento e administrar uma escola para meninas. Zarmena Waziri não estava sozinha. Em 1964, Anahita Ratebzad e suas companheiras formaram a Associação Democrática de Mulheres Afegãs, uma importante plataforma para feministas e socialistas que lutavam contra o patriarcado e o capitalismo. Em 1978, Ratebzad foi nomeada ministra de Assuntos Sociais no governo de esquerda. Naquela época, ela escreveu que “mulheres devem ter, por direito, educação igualitária, segurança no emprego, serviços de saúde e tempo livre para criar uma geração saudável para a construção do futuro do país. Educar e iluminar as mulheres é agora objeto de grande atenção do governo”. Mulheres como Zarmena e Anahita não pediram permissão para construir um mundo além do patriarcado.

O ex-governo direitista da Dinamarca deu ordem para deportar Zarmena Waziri. O único parente que ela tem no Afeganistão é o sobrinho, membro do Talibã. O novo governo mais liberal da Dinamarca é liderado por políticos que são tão duros quanto o governo de direita quando se trata de imigração. Eles vêem Zarmena Waziri como um problema.
É preciso dizer que o exército da Dinamarca operava na província de Zarmena no Afeganistão. Foi a guerra da OTAN que a retirou de seu país e é um membro fundador da OTAN que deseja agora deportá-la. A guerra da OTAN, enquanto isso, está podando as negociações de paz em andamento em Doha e Moscou. Os membros da aliança militar parecem ter decidido que é aceitável que os talibãs voltem ao poder em Cabul (leia mais sobre o tema em minha coluna). Os poderosos – OTAN e Talibã – estão muito felizes em discutir os despojos da guerra, enquanto feministas como Zarmena Waziri são atiradas aos cães. Não há espaço para o cinismo quando se trata da vida de pessoas como Zarmena Waziri (e da falecida Anahita Ratebzad).


Dillon Marsh, Mona de West O’okiep, 284 mil toneladas de cobre, 2014

Às vezes, o feio vem à tona. J. Paul Getty, o magnata do petróleo, disse em uma referência à Bíblia: “Os humildes herdarão a terra, mas não o direito a seus minerais”. Quão raramente voltamos nossa atenção para aquelas poucas corporações e pouquíssimas pessoas que se apropriaram da riqueza da terra e que mandam pessoas para suas entranhas por pouco dinheiro para trazer suas jóias? O Instituto Tricontinental de Pesquisa Social tem tentado entender melhor o mundo da mineração: publicamos uma entrevista com Gyekye Tanoh, da Third World Network (África), sobre saques e um apontamento sobre empresas de mineração canadenses. Nossa equipe de pesquisadores tem trabalhado para entender o processo de produção na mineração, bem como a metodologia através da qual algumas poucas empresas multinacionais devoram a “riqueza da terra”, para pegar emprestadas as palavras do poeta uruguaio Eduardo Galeano.
Nosso pesquisador Nate Singham publicou um relatório muito útil sobre o aumento da mineração, o aumento da riqueza e a destruição dos corpos dos mineiros e do ambiente ao redor das minas. A Zâmbia recebe atenção por ser um país com grandes reservas de cobre, mas que possui 60% da população lutando contra a pobreza. Esse relatório é um documento preliminar. Teremos um texto mais detalhado nos próximos meses.

Edilberto Jiménez Quispe, Carnaval Ayacuchano

Nosso último dossiê trata sobre o tema da guerra híbrida em curso na América Latina, com foco na Venezuela. Abordamos de forma clara os mecanismos usados para subjugar uma população, mantendo uma fachada democrática. A oligarquia no Brasil usou desse expediente para prender Lula e sabotar a eleição de 2018. Nos bastidores, os advogados e juízes conspiraram para minar a “democracia”. Isso é o que chamamos de lawfare [guerra jurídica], um tema que discutimos em profundidade em nosso quinto dossiê, Lula e a Batalha pela Democracia. As convocatórias abertas para a derrubada do governo na Venezuela não vêm necessariamente em uma linguagem de golpe militar (embora existam também), mas na escolha de um governo paralelo. Para mais informações sobre o nosso novo dossiê, leia o relatório da nossa coordenadora, Celina della Croce.
“Devemos virar a página”, escreve Fanon. Isso requer ação – virar. Mas, para tal, é preciso “novos conceitos”. O cinismo aparece quando os antigos conceitos não parecem mais críveis, quando tudo parece sem esperança. Desesperança é o pior tipo de rendição. Sinta raiva porque Lula e Ola estão presos, porque Zarmena Waziri está sendo deportada para os braços do Talibã, porque as empresas de mineração destroem a terra e os sonhos dos mineiros, e porque a experiência da Venezuela está sob a grave ameaça da guerra híbrida. Sentir raiva é abrir a porta para novos conceitos e para um novo futuro, para podermos virar a página.

Edição: Luiza Mançano