“É impossível imaginar a América sem a herança da escravidão, que reinou por 250 anos nessa terra. Quando ela acabou, esse país poderia ter estendido os princípios de vida, liberdade e busca da felicidade a todos. Mas isso não aconteceu. Por um século após sua abolição, os negros foram sujeitados a uma incansável campanha de terror”.
A fala acima, do escritor Ta-Nehisi Coates, autor do influente texto Em Defesa das Reparações [The Case for Reparations], de 2014, aconteceu durante uma sessão do Subcomitê de Constituição, Direitos e Liberdades Civis, do Congresso dos EUA que, nesta quarta-feira (19), debateu possíveis políticas de reparação histórica por conta do seu papel no tráfico transatlântico de escravizados e por utilizar o trabalho forçado por mais de 250 anos.
A audiência, que acontece durante o “Juneteenth”, data que marca a emancipação de escravizados no Texas, se debruça sobre o projeto de lei H.R. 40. Ele foi batizado com o número por conta da promessa feita após a Guerra de Secessão (1861-1865) de que cada liberto ganharia "40 acres de terra e uma mula".
Proposto em 1989, o H.R. 40 foi engavetado no Senado até que a deputada Sheila Jackson Lee o reintroduziu na pauta, em janeiro, dizendo que a reparação “está bastante atrasada”.
A ideia tem ganhado força e atenção de muitos membros do Partido Democrata -- do mainstream do partido às alas mais progressistas -- e deve ser um ponto nevrálgico da corrida presidencial de 2020.
O senador Cory Booker disse que os EUA têm a obrigação de responder às “desigualdades persistentes do país".
“A nação ainda precisa reconhecer e lidar com o racismo e com o supremacismo branco que há muito mancha os alicerces do país e continua a causar danos constantes e aprofundar a disparidade raciais e desigualdades. Tais disparidades não afetam apenas as comunidades negras. Elas afetam todas as comunidades”, disse.
Com plenária cheia de testemunhas e muita gente do lado de fora -- mas com baixa participação de congressistas republicanos -- a sessão também contou com a presença do ator Danny Glover, que disse ser o bisneto de uma mulher escravizada, que ele conheceu quando era criança.
“Essa audiência é um passo importante na longa e heroica luta dos afro-americanos por igualdade. A América branca precisa reconhecer que a justiça não pode ser atingida sem mudanças radicais”, apontou.
Para além dos danos da escravidão em si, também foi apontada a cumplicidade do governo federal na implementação de políticas de segregação que duraram até a década de 1960, impedindo que negros votassem, comprassem casas e terras e frequentassem espaços públicos, no que ficou conhecido como Leis de Jim Crow.
Apesar de vozes contrárias surgirem no debate, testemunhas como Katrina Browne, uma mulher branca descendente de uma família escravocrata, reforçaram a necessidade "dos brancos se implicarem nessa história e reconhecerem que, apesar de não terem participado do tráfico de escravizados, ainda lucram com ele". Para ela, é necessário “sanar essa vergonha”.
A economista Julianne Malveux, na sequência, aprofundou a discussão ao apontar que “a escravidão é a pedra fundamental dos EUA".
"Não basta pensar em recompensar os mais pobres, mas focar na desigualdade racial. Eu quero que vocês lidem com a estrutura econômica”, disparou.
Encaminhamentos
Ainda não foi definido de que forma a reparação pode ser efetivada, caso a lei seja aprovada. O senador Booker propõe que todas as crianças estadunidenses ganhem um depósito de 1 mil dólares ao nascer, que seria complementado todo ano pelo governo, com as famílias mais pobres recebendo a maior ajuda. Ao completar 18, a criança poderia resgatar o dinheiro para comprar uma casa ou investir em sua educação.
Alguns ativistas defendem o pagamento direto para afro-americanos, outros, como o economista William Darity, propõem um “portfólio de reparações”, que priorizaria o financiamento da educação superior, planos de saúde e um amplo investimento em educação pública -- em especial em áreas vulneráveis com maioria negra.
Assista, em inglês, a trechos da audiência:
*Com informações da CBS e da BBC.
Edição: Pedro Ribeiro Nogueira