INTOLERÂNCIA

Brasil vive cenário de "cristofascismo", diz evangélica exilada após ameaças de morte

Defensora dos direitos das mulheres, Camila Mantovani foi obrigada a deixar o Brasil para garantir sua própria segurança

Brasil de Fato | São Paulo (SP) |

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Ativista critica fundamentalismo religioso que cresce no Brasil e América Latina: laicidade do Estado está ameaçada
Ativista critica fundamentalismo religioso que cresce no Brasil e América Latina: laicidade do Estado está ameaçada - Foto: Michel Schincariol/AFP

Exilada há cerca de dois meses, Camila Mantovani, evangélica que atua em defesa dos direitos das mulheres, foi obrigada a deixar o Brasil para salvar sua vida. Fundadora da Frente Evangélica pela Legalização do Aborto, a jovem constantemente recebia mensagens de ódio e ameaças de morte. 

A situação se agravou com a intensificação das intimidações contra a sua vida e de sua família, em retaliação à sua atividade religiosa, no segundo semestre do ano passado. Após notar que pessoas armadas a seguiam, a jovem deixou o local em que morava e passou a não ter endereço fixo. Ainda assim, as ameaças não cessaram. 

Com o perigo iminente, uma rede de apoio foi formada com o objetivo de viabilizar a mudança de Camila do país para mantê-la em segurança. “Perdi o direito de viver minha vida como a vivo hoje. Perdi esse direito porque o fundamentalismo que governa o Brasil hoje assassina qualquer profeta que denuncie o pecado das grandes lideranças. Estou indo embora do país em exílio depois de esgotar todas as minhas possibilidades de ficar aqui e permanecer viva”, escreveu Mantovani, em carta de despedida publicada à época em sua rede social. 

Hoje a ativista religiosa reconstrói sua vida em outro país da América Latina, continente que, na sua opinião, também é alvo do fundamentalismo religioso. 

“O fundamentalismo não tolera a pluralidade, não tolera a diversidade. Ele se pretende único, e, para ser único, precisa eliminar todos os outros. Ao trabalhar com essa eliminação do outro, o fundamentalismo elimina quem pensa diferente dentro da própria religião, dentro do próprio cristianismo. Esse é o meu caso e o caso de várias outras pessoas, irmãs e irmãos de fé”, afirma Camila em entrevista ao Brasil de Fato. 

Ela conta que, apesar de difícil e dolorosa, deixar o país foi uma estratégia acertada. “Ter saído do país diminuiu bastante a intensidade das ameaças. Elas ainda existem, vez ou outra chega alguma coisa. Mas aquilo que de fato me colocava em risco cessou, até porque era concreto, era físico. As pessoas me perseguiam armadas na rua, ficavam de tocaia na porta da minha casa. Esse é o tipo de coisa que eu não tenho que lidar aqui, graças a Deus. Estou bem, estou em paz. Uma paz que eu já não tinha há muito tempo para caminhar na rua tranquila”, relata. 

Segundo a ativista, o termo “cristofascismo”, desenvolvido pela teóloga alemã Dorothee Sölle, tem sido usado por religiosos progressistas para definir o avanço do fundamentalismo religioso que acontece no Brasil. 

"Ela [Dorothee Sölle] percebe que a base social que legitimou o nazismo na Alemanha era cristã e cunha esse termo, ‘cristofascismo’. Um fascismo associado ao cristianismo. É exatamente o que temos vivido hoje: um cenário catastrófico de ‘cristofascismo’”, lamenta. 

Confira a entrevista com Camila Mantovani na íntegra. 

Brasil de Fato: Após dois meses exilada, como avalia todo esse processo? Como está se adaptando?

Camila Mantovani: Está sendo bem complexo esse processo de adaptação. Costuma ser difícil mesmo, ser refugiada, ter que começar a vida toda do zero, é bastante solitário. É complicado, é bem difícil. A saudade aperta. Mas estou com agenda bem cheia aqui, fazendo muitas atividades públicas de denúncias do que está acontecendo no Brasil, de denúncia de violação dos direitos humanos, e está sendo muito importa para mim.

Primeiro, estou interagindo com tantas pessoas que querem saber o que é que tá acontecendo no Brasil, e outra para também alertar os outros países latinos porque as pessoas nunca esperam que as coisas possam acontecer. Nós também não esperávamos a pouco tempo atrás que fossemos chegar onde estamos hoje no Brasil.

As histórias que eu tenho para contar e as denúncias que tenho para fazer deixam os outros países latinos em alerta também, porque o projeto fundamentalista é um projeto latino-americano. Quase dois meses depois que eu vim para cá, estar podendo falar tanto sobre o Brasil, sobre tudo que está acontecendo aí, tem sido importante para mim.

Camila Mantovani, 24 anos, fundadora da Frente Evangélica pela Legalização do Aborto (Foto: Arquivo Pessoal)

 

Você ainda tem recebido ameaças? Qual situação é essa pela qual passa o Brasil, qual a origem dessa perseguição?

Graças a Deus a estratégia deu certo. Eu ter saído do país diminuiu bastante a intensidade das ameaças. Elas ainda existem, vez ou outra chega alguma coisa. Mas aquilo que de fato me colocava em risco cessou, até porque era concreto, era físico. As pessoas me perseguiam armadas na rua, ficavam de tocaia na porta da minha casa. Esse é o tipo de coisa que eu não tenho que lidar aqui, graças a Deus. Estou bem, estou em paz. Uma paz que eu já não tinha há muito tempo para caminhar na rua tranquila.

O que leva esse tipo de absurdo que aconteceu comigo é exatamente a igreja hegemônica, que é fundamentalista religiosa. O fundamentalismo não tolera a pluralidade, não tolera a diversidade. Ele se pretende único, e, para ser único, precisa eliminar todos os outros. Ao trabalhar com essa eliminação do outro, o fundamentalismo elimina quem pensa diferente dentro da própria religião, dentro do próprio cristianismo. Esse é o meu caso e o caso de várias outras pessoas, irmãs e irmãos de fé, que têm sido perseguidos no Brasil. [O fundamentalismo] também trabalha com a eliminação de outras religiões, não é à toa a intensificação do processo de perseguição às religiões de matriz africana, é exatamente por não tolerar o outro. Não se tolera a diferença.

Existe uma teologia hegemônica construída em cima desse Deus, desse Deus que é o único Deus a ser adorado e que, portanto, pretende eliminar todos os outros, todas as outras crenças, todas as outras formas de ver o mundo. Isso é muito triste, é muito preocupante.

Como esse projeto fundamentalista está se dando no continente?

Nos anos e 60 e 70, principalmente, tivemos processos de ditaduras militares na América Latina e um dos fatores que contribuiu muito para a insurgência, para a redemocratização dos países, foi exatamente a construção de uma teologia que era uma uma teologia da libertação do povo.

A teologia da libertação e suas bases, que foram as comunidades eclesiais de base, foram centros de organização popular para o processo de redemocratização e isso se deu na América Latina inteira.

Essa teologia surge na América Latina e se espalha. Em contrapartida a esse movimento que tivemos, que, inclusive, ajudou bastante a esquerda chegar no governo do Brasil a anos atrás, veio dos Estados Unidos uma outra teologia, que é a Teologia da Prosperidade, com a proposta oposta.

Essa teologia vai se difundindo por várias igrejas e hoje ela é maioria no cenário evangélico latino-americano. É mais do que a Teologia da Prosperidade, é a teologia do ódio mesmo, uma teologia fascista. Ela se espalhou, não é realidade só do Brasil. Conversando com as pessoas de diferentes países latinos, percebemos que essa é a realidade da maioria das igrejas na América Latina já. É essa teologia, que é do ódio, que não tolera as diferenças, que não suporta pluralidade, que pretende eliminar o outro.

Inclusive muitos deles, assim como o Brasil, têm esse projeto de escalada de poder dos Evangélicos. Então, há cada vez mais parlamentares evangélicos, pessoas que se candidatam à presidência e se declaram evangélicas e têm um projeto de poder que é evangélico. E aí percebemos que isso está muito associado também ao imperialismo norte americano, a esse projeto fundamentalista para a América Latina.

Estamos chegando ao fim do primeiro semestre do governo Bolsonaro, que tem uma atuação muito próxima à bancada evangélica. Há um risco para a laicidade do Estado?

A escalada de poder dos evangélicos, do fundamentalismo religioso, não é de agora. Não é uma novidade e tampouco chegou com o governo Jair Bolsonaro. É algo que está acontecendo na última década no Brasil e, inclusive, a esquerda falhou muito em atuar no sentido de frear isso que estava acontecendo.

A laicidade do Estado é ameaçada, é pisada, é rasgada todos os dias no Brasil há muitos anos. A bancada evangélica atua há muito tempo no país e é claro que quando temos um presidente da República -- no caso, Jair Bolsonaro provavelmente tem dupla pertença religiosa, é católico quando convém e evangélico quando convém -- é impressionante. Quando temos um presidente, todos os seus filhos que são deputados e que também são evangélicos.

Quando se tem tantos ministros que são evangélicos e uma quantidade absurda de senadores e deputados também evangélicos que têm acordo com esse projeto de poder fascista do governo Jair Bolsonaro, é de fato preocupante, sem sombra de dúvida.

As pessoas cristãs no campo progressista têm usado muito para definir o que está acontecendo no Brasil, a palavra cristofascismo, que é um termo cunhado pela teóloga alemã Dorothee Sölle.

Ela [Dorothee Sölle] percebe que a base social que legitimou o nazismo na Alemanha era cristã e cunha esse termo, cristofascismo. Um fascismo associado ao cristianismo. É exatamente o que temos vivido hoje: um cenário catastrófico de cristofascismo. 

Como se dava sua atuação religiosa? Acredita que o seu trabalho com as mulheres foi o que incomodou tanto e despertou essa intolerância? 

Eu tenho certeza. O meu trabalho era de organização de mulheres evangélicas na luta por justiça reprodutiva. Isso, sem sombra de dúvidas, incomodou bastante. Foi a primeira vez na história do Brasil com a audiência da ADPF 442, quiçá da América Latina, que tivemos igrejas evangélicas protestantes assinando um documento favorável à descriminalização do aborto. Isso é um marco histórico na luta das mulheres da América Latina.

Conseguimos isso justamente com o trabalho que fazemos de conscientização, de conversar sobre o que é, de derrubar os mitos que a maioria das grandes lideranças midiáticas evangélicas difundem sobre isso. Conseguimos aglutinar um número bom de igrejas que assinaram esse pedido de descriminalização, e isso é um marco histórico. Sem sombra de dúvida, fez com que a igreja hegemônica se sentisse ameaçada no seu projeto de controle dos corpos das mulheres. Sem dúvida, meu trabalho é a razão para tanto ódio contra mim hoje. 

Outro trabalho feito com as mulheres na igreja, a maioria dessas igrejas pentecostais das favelas, principalmente do Rio de Janeiro. Era um trabalho de pastoral. Rodas de conversa onde nos abrimos, contamos experiências, falando de traumas dos nossos corpos, dos traumas emocionais. Temos um espaço de acolhimento, é lidando com a Bíblia, lendo com as mulheres evangélicas, temos sempre psicólogas, advogadas que davam qualquer tipo de orientação caso necessário.

Pode haver um retrocesso ainda maior em relação ao direito das mulheres especificamente?

Corremos um risco muito grande de retroceder muitos séculos e voltarmos a ser objeto, objeto que pertence aos homens. Isso é muito sério. Cada dia mais o cenário de esvaziamento das mulheres enquanto sujeitos de direitos se intensifica. Já não escolhemos sobre o nosso corpo. Os homens decidem. O Estado decide e o Estado é majoritariamente masculino. Na prática, os homens decidem pelos nossos próprios corpos.

É um processo muito profundo que está se intensificando. Temos que estar alerta. É um controle sobre quem é que pode ter filho. Existem projetos de castração de mulheres pobres e negras, que é um projeto higienista, e temos esse projeto de criminalização das mulheres que não querem ser mães e não querem ter filhos. O circo vai fechando pra gente. É um risco muito real de vivermos O Conto da Aia. 

Qual é perspectiva para os ativistas e defensores dos direitos humanos no Brasil, na sua opinião?

Já tem alguns anos que o Brasil é o país que mais assassina defensores e defensoras de direitos humanos no mundo. Não tem mais como subirmos nesse ranking, infelizmente já estamos no topo deles. Com toda certeza o cenário piorou muito desde que o presidente tomou posse, mas, eu acho, que a curto prazo não vejo uma mudança tão radical de cenário. É isso. Estamos trabalhando em risco, sabemos que estamos em risco. São pessoas muito corajosas. 

Todo mundo que assume para si a bandeira de direitos humanos hoje, no Brasil, tem uma coragem que precisa ser valorizada. Como chegamos a esse ponto em que defender direitos humanos -- a coisa mais básica do mundo -- pode colocar sua vida em risco.  Mas, ao mesmo tempo, acredito que é esse trabalho que em alguma medida pode assegurar que a barbárie corra solta sem a resistência acontecer. São essas pessoas que têm se organizado, e cuidado de outras pessoas em situação de violação de direitos. É graças a essas pessoas corajosas que mesmo diante de um momento político em que podem morrer a qualquer momento, porque é um risco de vida, insistem em cuidar dos outros. Trabalhar com direitos humanos é isso. Cuidar do outro.

Você teve uma rede de apoio ao longo desse processo para sair do país?

Sim, recebi muitas mensagens. Inclusive algumas ainda estou respondendo porque eu não consegui dar conta de todas elas. Isso me deu muita força, sabe, me deixou muito feliz ver essa essa rede de solidariedade, que me deu muita força, porque realmente foram muitas mensagens de apoio, muitas mensagens de solidariedade e carinho, sem sombra de dúvida foi essencial para eu ter coragem de entrar naquele avião, para ter coragem para chegar aqui e de estar agora tocando a vida. Foi muito importante para mim.

Sou muito grata a todas as pessoas que mandaram mensagens, às páginas e organizações que compartilharam nota de apoio. Eu sou muito grata a tudo isso, me deu uma força gigante. 

Edição: Rodrigo Chagas