O MNPCT vem denunciando práticas sistemáticas de tortura em espaços de privação
No dia 10 de junho de 2019, o Presidente Jair Bolsonaro editou o Decreto nº 9.831, que, na prática, inviabiliza o Sistema Nacional de Prevenção e Combate à Tortura. Essa possibilidade tinha sido alertada neste mesmo espaço, em coluna publicada em outubro de 2018, logo após a eleição do então deputado que, nunca é demais lembrar, se notabilizou por louvar notórios torturadores enquanto parlamentar.
Entende-se que referido decreto rompe o compromisso do Estado Brasileiro assumido com a ratificação do Protocolo Facultativo à Convenção contra a Tortura e outros Tratamentos ou Penais Cruéis, Desumanos ou Degradantes (OPCAT), em especial no que se refere à necessidade de visitas regulares feitas por órgãos autônomos e independentes, visto que o Presidente da República inviabilizou os mandatos dos peritos do Mecanismo Nacional de Prevenção e Combate a Tortura (MNPCT), deixando-os sem remuneração.
Na verdade, a ofensiva do governo federal em prol da tortura já vinha ocorrendo desde o final do ano de 2018, destacando-se a não nomeação dos membros do Comitê Nacional de Prevenção e Combate a Tortura (CNPCT) e a consequente paralisação das atividades daquele órgão, bem como a não recomposição da equipe do próprio MNPCT que, desde o mês de janeiro deste ano, vinha atuando com apenas 7 (sete), ao invés dos 11 (onze) peritos previstos na Lei 12.847/2013, fatos que sinalizavam interesse no desmonte da Política de Prevenção à Tortura no Brasil, o que se concretizou com a cassação da remuneração dos peritos, conforme decreto já mencionado.
Necessário lembrar que nosso país possui a terceira maior população prisional do mundo, com mais de 720 mil presos, segundo dados de 2017, do Ministério da Justiça. Desses, aproximadamente 40% são presos provisórios. Na visita da Comissão Interamericana de Direitos Humanos, há apenas 7 meses, foi atestada a condição degradante e insalubre das prisões, sendo incluída em relatório preliminar a recomendação de para que se observe a obrigação do Estado de combater à tortura, devendo-se, para tanto, “com relação aos Mecanismos existentes para prevenção e combate à tortura, adotar as medidas necessárias para aumentar os recursos financeiros e humanos, a fim de fortalecer seu funcionamento [...] e promover a criação deste tipo de mecanismos nos estados que ainda não os têm.”
O MNPCT tem um papel central no monitoramento das condições de detenção no país e vem denunciando práticas sistemáticas de tortura nos locais de privação de liberdade, notadamente nos recentes relatórios referentes a Comunidades Terapêuticas, massacres no Sistema Prisional do Rio Grande do Norte, Roraima e Amazonas e a atuação irregular da Força Tarefa de Intervenção Federal (FTIP) do Ministério da Justiça, no Ceará. Isto dito, não há dúvida de que a inviabilização do funcionamento do Mecanismo proposta pelo decreto de que se ocupa é de elevada gravidade.
Ressalte-se que o Sistema Nacional de Prevenção e Combate à Tortura, conforme artigo 2º, da Lei 12.847/2013, tem a seguinte estrutura: o Mecanismo Nacional, o Comitê Nacional de Prevenção e Combate à Tortura, o Conselho Nacional de Política Criminal e Penitenciária (CNPCP) e o Departamento Penitenciário Nacional além de Comitês e Mecanismos Estaduais que, em conjunto, devem por em prática as determinações do OPCAT, ratificado pelo Brasil, com status supralegal.
Não obstante as diversas iniciativas no âmbito do legislativo, judiciário e a grande mobilização e manifestações de organizações não governamentais na esfera nacional, teme-se não ser possível o restabelecimento das reais condições de funcionamento do Mecanismo Nacional de Prevenção e Combate à Tortura e que a ilegalidade praticada pelo Governo Federal se estenda aos demais Estados do Brasil, inviabilizando e ameaçando também os órgãos preventivos existentes em quatro unidades da Federação, quais sejam os Mecanismos Estaduais de Prevenção e Combate à Tortura do Rio de Janeiro, Pernambuco, Rondônia e Paraíba.
É preciso, portanto, garantir o trabalho que essas equipes vêm realizando com competência técnica e compromisso ético com a proteção e defesa de direitos humanos das pessoas privadas de liberdade, buscando-se, inclusive, o imprescindível apoio de entidades internacionais para constranger o governo brasileiro a restabelecer o funcionamento pleno do Mecanismo Nacional de Prevenção e Combate à Tortura e, sobretudo, pressionar por condições de funcionamento para exercício de mandatos independentes, autônomos e com remuneração adequada a pessoas que reúnam experiência e competência para tal.
É nesse contexto de grave ameaça ao Estado Democrático de Direito e aos instrumentos de participação e controle social que se conseguiu estabelecer no Brasil no curto processo de abertura democrática pós-ditadura militar que se “comemora” nesta quarta-feira, 26 de junho, o Dia Internacional de Apoio às Vítimas de Tortura, lamentando-se que o governo do nosso país, após a louvação explícita e sádica do então Deputado Bolsonaro a torturadores famosos, ora seja oficialmente favorável à tortura enquanto política de Estado, senão comissiva, mas omissivamente, algo contra o que se deve diuturnamente lutar.
Olímpio Rocha é advogado, Professor, Mestre em Ciências Jurídicas (UFPB) e Coordenador do Mecanismo Estadual de Prevenção e Combate à Tortura na Paraíba.
Edição: Pedro Ribeiro Nogueira