Entrevista

Sabrina: “O velho está morrendo e o novo a gente tem que construir"

A socióloga Sabrina Fernandes lançou Sintomas Mórbidos: a encruzilhada da esquerda brasileira em Porto Alegre

Brasil de Fato | Porto Alegre (RS) |
Sabrina reúne 110 mil seguidores no Instagram, 75 mil no Twitter e 175 mil em seu canal no Youtube, o Tese Onze
Sabrina reúne 110 mil seguidores no Instagram, 75 mil no Twitter e 175 mil em seu canal no Youtube, o Tese Onze - Foto: Fabiana Reinholz

“A crise consiste precisamente no fato de que o velho está morrendo e o novo não pode nascer; neste interregno, uma grande variedade de sintomas mórbidos aparecem”, a frase do filósofo marxista, jornalista, crítico literário e político italiano, Antonio Gramsci, serviu como alegoria para que a socióloga, ecossocialista, feminista, vegana e também marxista, Sabrina Fernandes, escrever seu livro Sintomas Mórbidos: a encruzilhada da esquerda brasileira (Autonomia Literária, 2019). 

Ao trazer para a leitura do atual contexto político brasileiro Sabrina pontua que o velho é o que estava antes, que a gente vê resquícios dessa desdemocratização e o novo é o que a gente tem que construir.        

Em uma sociedade machista, cada vez mais retrograda e reacionária, a voz e a presença de Sabrina se faz ouvir e soma a luta pela visibilidade e participação política da mulher no momento atual. Ao se debater o lugar de fala da mulher, e do machismo estrutural da sociedade brasileira, que pode se ver também em diversas partes do mundo, a socióloga chama atenção que ela também está na postura da esquerda.

“Por muito tempo a visão de poder falar de política, de forma articulada, de estar pautando debates, foi e ainda é um domínio dos homens na esquerda. Muitas vezes as mulheres vão parar nas mesas dos partidos de esquerda porque eles falaram “ah é, tem aquela coisa de representatividade, então a gente tem que colocar a cota de mulheres, a cota de negros, a gente tem que colocar ali”, mas não estão levando realmente a sério, e ai chegar em um canal como esse, e enfrentar o machismo do youtube e continuar, acaba que demonstra para outras mulheres que elas podem fazer isso em seus espaços também.”

Sabrina, que reúne 110 mil seguidores no Instagram, 75 mil no Twitter e 175 mil em seu canal no Youtube, o Tese Onze, esteve em Porto Alegre na noite dessa segunda-feira (24) lançando o seu livro, e conversou com o Brasil de Fato, sobre os anos de pesquisa que levaram ao livro, assim como do quadro caótico e de crise que estamos vivendo, em especial a esquerda, com um recorte pontual a partir das manifestações de 2013.

“Essa crise que a gente encontra hoje, no Brasil, não é só uma crise de representação, é uma crise de quem pode representar. Como nós podemos fazer com que as pessoas se enxerguem representadas em nós? Não é uma questão de simplesmente ir lá e fazer uma declaração, tem toda uma relação, uma construção de base que é necessária nesse processo. E esses sintomas mórbidos que eu fui notando tem a ver com isso”.

Brasil de Fato: Como foi a pesquisa realizada para chegar concluir o livro?

Sabrina Fernandes: É um livro que parte de muitos anos de pesquisa, de uma pesquisa que eu considero até pesquisa militante. Ao mesmo tempo que estava pesquisando meu intuito era descobrir onde a gente tinha erros, onde a gente tinha acertos na esquerda, para a gente realmente melhorar, ter um outro panorama para lidar com esses desafios que estavam surgindo a partir de junho de 2013. Então desafios que eu fui vendo durante as mobilizações da Copa em 2014, desafios que fui vendo em relação às eleições federais, eleições municipais, o golpe, a prisão do Lula e, depois culminando nessa relação de finzinho de governo Temer, com o começo do governo Bolsonaro. Termino de escrever o livro bem naquele momento da eleição do Bolsonaro.

A ideia é realmente entender que a fragmentação da esquerda não é um mero acidente, também não é uma teimosia que a esquerda se recusa se unir, ou algo assim. A gente precisa até desfazer um pouco na nossa cabeça essa noção de unidade romântica, de que basta a esquerda se unir e tudo vai funcionar. A esquerda precisa resolver suas próprias diferenças, e têm diferenças que são diferenças reais, diferenças de projeto de sociedade. Outras são questões de vícios de prática, que a gente precisa compreender que temos esse vício, para poder resolver.

Então o livro é um pouco desse exercício de autocrítica comigo no meio da esquerda realmente tentando olhar onde a gente pode melhorar, e que talvez seja muito proveitoso realmente nos colocar no divã, nos analisar, entender o que a gente pode fazer porque temos desafios novos. Então a gente precisa estar no nosso melhor para poder encará-los. 

"Se a gente não tiver uma construção de área no cotidiano com as massas, com as pessoas (...) acaba criando parte dessa crise de representação"

BdF: O nome do livro é bem sugestivo, Sintomas Mórbidos, quais são esses sintomas que tu falas no livro?

Sabrina: Sintomas mórbidos vem de uma análise teórica do Gramsci (Antonio Gramsci, 1891-1937), de muitos anos atrás, justamente Gramsci que a direita brasileira odeia. Antonio Gramsci trazia muitas perspectivas interessantes em relação à autoridade, hegemonia, e ele falava de uma crise de autoridade.

E essa crise que a gente encontra hoje no Brasil não é só uma crise de representação, é uma crise de quem pode representar. Como nós podemos fazer com que as pessoas se enxerguem representadas em nós, não é uma questão de simplesmente ir lá e fazer uma declaração, tem toda uma relação, uma construção de base que é necessária nesse processo. E esses sintomas mórbidos que eu fui notando tem a ver com isso, com o conjunto de 2013, com pessoas que eram pessoas trabalhadoras realmente, tanto de classe C, quanto classe média, e tudo mais, que não se enxergavam mais na esquerda. Muita gente que votou no Lula, votou na Dilma, e não se enxergava mais. Quer dizer então que essas pessoas são pessoas totalmente de direita, fascistas, que perdemos realmente? Não. Se a gente quer construir um projeto de sociedade que é realmente transformador, a gente precisa da maioria da sociedade, a gente precisa aprender a dialogar com elas, a gente precisa representar essas pessoas. Então nós temos que entender onde que ocorreu despolitização, onde que ocorreu desmobilização, esses são dois tipos de sintomas.

Eu falo das suas peculiaridades no livro. A gente precisa entender onde que no processo de organização da esquerda a gente ficou demasiadamente melancólico. E melancolia é um luto que não termina. Então a gente entendeu que tivemos derrotas, e que por conta dessas derrotas não podemos mais sonhar alto, então a gente não pode mais pautar alternativas porque senão eles vão nos dar golpe, senão a coisa pode ficar mais difícil no sentido da direita se reorganizar, então a gente para de sonhar, isso é um sintoma da melancolia. Um outro aspecto da melancolia é a gente pegar pequenas vitórias que a gente tem no meio do caminho e tratar como se elas estivessem um impacto muito maior que elas têm, porque a gente deseja muito a mudança e a gente não está conseguindo avaliar como é que nossas ações como esquerda não estão levando a uma ruptura, então é uma das dificuldades.

A gente também tem questões que são vícios muito antigos da esquerda, sectarismo, realmente por princípio não se reorganizar ou fazer mobilização, ou articular com outras forças, outros grupos. Tem também o vanguardismo que é algo que a gente precisa manter em mente como um problema. Lógico que nós temos lideranças, nós temos intelectuais orgânicos, pessoas que ajudam a dar direção, mas se a gente não tiver uma construção de área no cotidiano com as massas, com as pessoas, se a gente considerar que há uma distância, essa distância acaba criando parte dessa crise de representação também. Então não dá para ser demasiadamente vanguardista. Tudo que é de vanguarda é algo que a gente tem que pensar que é de vanguarda hoje, mas lá para frente tem que ser massificado.

BdF: Acredito que um ponto importante que trazes é o da despolitização ou da apolítica, que isso está sendo construído há muitos anos, tanto pela grande imprensa, como pelo mercado, transformando direitos em mercadorias, disseminando uma visão de que o coletivo e o que é público é ruim, que o eficiente é o privado. A gente vem em uma desconstrução da política?

Sabrina: Sim, com certeza. O conceito da pós-política é útil para a gente tratar de um tipo de despolitização que substitui a conversa, a disputa acerca de projetos políticos como se fosse uma mera questão de gestão. E ai eles colocam que a esquerda não sabe de economia, que a esquerda não sabe fazer gestão do país, que é por isso que o público não funciona, e nós precisamos trazer a inovação, a criatividade, a expertise do setor privado, temos ouvido isso, inclusive teve recentemente um deputado do PDT, se eu não me engano, até falando que temos que quebrar esse tabu, que a gente tem que ter o setor privado dentro da educação pública, eles têm tanto que acrescentar, nós podemos aprender tanto com o setor privado e é uma coisa que me deixa muito horrorizada, vindo de um partido de centro-esquerda, por exemplo. 

Isso é porque parece palatável na cabeça das pessoas depois de tanta despolitização que a gente precisa ter bons gerentes, pessoas que vão usar o dinheiro, aplicar o dinheiro público da forma mais eficiente, que vão combater a corrupção nesse processo, que tudo vai andar a partir daí, só que vai andar para onde? Em qual direção? Essa é a disputa de projeto político, por isso que não dá para falar só de gestão. Lógico que nós devemos abraçar a competência, isso tem que ser um fator importante, mas a gente tem que entender que o público no Brasil, quando ele não funciona, ele não funciona não porque é público, ele não funciona porque existe um projeto de privilegiar o privado, um projeto de sucateamento, um projeto de realmente impedir que os nossos investimentos sejam voltados para formar uma educação pública de qualidade, uma saúde pública de qualidade, para que ai os planos de saúde possam lucrar, porque ai os cursinhos privados, as escolas privadas e os grandes conglomerados de universidades privadas possam lucrar. Isso é projeto político, não é uma mera questão de gestão.

BdF: Dentro disso ainda, da questão da política, o voto no Bolsonaro, para muitas pessoas foi um voto de protesto. Da mesma forma que votaram no Lula, votaram no Bolsonaro, e essa direita, essa extrema- direita, principalmente esses movimentos criados por eles, tipo MBL, revoltados on-line, fazem um discurso, que muitas vezes tu olha e diz, nossa parece um discurso de esquerda. Então é um paradoxo muito grande, como entender isso tudo? 

Sabrina: Isso tem a ver com a questão do antissistêmico que é algo que a esquerda precisa voltar a abraçar com muita força. No começo da década de 90 o antissistêmico era só a esquerda, e depois que a gente tem a esquerda chegando nos governos, ela tem que se adaptar um pouco ali ao processo da contradição institucional, tentar fazer dentro daquela contradição, só que ai a gente não pode abraçar o discurso antissistêmico só porque entrou na institucionalidade. E ai, no geral, é importante que todas as organizações entendam que algo que define a esquerda é ser antissistêmico, não é conciliação.

E eles conseguiram se aproveitar do momento em que a esquerda estava no governo para falar que se nós somos oposição, então a gente deve ser antissistêmicos, sendo que eles não eram antissistêmicos, eles eram simplesmente oposição à direita. O que eles queriam é poder se apropriar daquele espaço institucional para fazer coisas com mais selvageria capitalista possível, que é a razão por trás do golpe, que é como foi o governo Temer, é como tem sido o governo Bolsonaro, mas no discurso, no âmbito do discurso, eles se apropriaram do antissistêmico.

Eu faço uma análise no meu livro que parte disso, foi justamente porque a esquerda abandonou um pouco desse discurso. Não só os governos em si, mas a esquerda no geral, ás vezes ficou só na oposição entre si e não estava falando de um projeto de sociedade totalmente alternativa a esse. Porque também não basta chegar em um carro de som, pegar um microfone e falar que nós defendemos o socialismo se as pessoas não sabem o que é isso, que acham que é um bicho de sete cabeças, que é horrível, que socialismo é coisa do diabo. Então a gente precisa estar politizando as pessoas, fazer um discurso antissistêmico não é só usar as palavras que são sistêmicas, tem que ser um discurso que tem um peso na sociedade, que as pessoas sabem o que significa. E esse projeto de despolitização acabou criando um vácuo, nesse vácuo a direita, o MBL chegou parecendo que era antissistêmico, Bolsonaro apareceu sendo antissistêmico sem ser, e a gente ficou lá, tentando resgatar: não, somos nós, nós somos antissistêmicos.

Mas o que significa isso? Qual que é o nosso projeto que é alternativo? O que se perdeu no meio do caminho e é onde a autocritica é importante. E a autocrítica não é o papel de uma organização, não é o papel do Lula especificamente, não é o papel de uma pessoa ter que fazer a autocritica, é um exercício comum da esquerda, que deve ser feita em todo momento. O marxismo nasce da crítica ao liberalismo, ele nasce da crítica ao idealismo. E aqueles debates que a gente vai ver ali no começo do século XX são debates de crítica interna muito forte, quando Rosa Luxemburgo entra na polêmica sobre reforma ou revolução, aquilo ali tem um processo de autocrítica e a gente tem que abraçar isso porque sem isso a gente não vai conseguir ter um discurso antissistêmico que vai valer alguma coisa para a sociedade, vai significar algo que a gente vai poder a partir disso transformar, tirar proveito, e levantar para um projeto realmente diferente.

"Junho de 2013 é o momento que abre uma caixa de pandora. Muita coisa para a gente digerir, para a gente compreender, e é por conta disso que eu recuso uma visão um pouco maniqueísta"

BdF: Ainda hoje há divergências sobre o que significou as mobilizações de junho de 2013. Como tu avalias esse momento no teu livro?

Sabrina: Junho de 2013 é um marco conjuntural, a gente entra em uma nova conjuntura de análise de atuação política, significa que coisas que a gente fazia em 2011 como esquerda, não colam mais em 2013. A gente tem que se mexer, tem que adaptar, e tem que entender que os significados mudaram na cabeça das pessoas. Quando o pessoal está ali falando, ninguém me representa, nós somos a rede social, isso significa uma mudança de significados concreto sobre política, podem ser despolitizados, mas mudaram. Então a gente tem que aprender a lidar com isso, que não basta a gente chegar, por exemplo, com uma bandeira em uma manifestação, e falar, olha, estamos juntos com vocês esses somos nós, essa é a nossa bandeira, e a gente também é a favor da educação pública. A gente tem que ter uma relação cotidiana para as pessoas confiarem na gente.

2013 demonstra que as instituições tiveram a sua credibilidade esvaziada por uma série de questões, não só pela corrupção, mas uma série de questões. Influência da imprensa burguesa é um dos fatores nisso, a própria questão de conceito de democracia, a pessoa está pensando política como algo que você faz na urna. Então voto ali e agora os representantes tem que tocar, ah eles não estão tocando do jeito que eu quero, então ninguém me representa.

A representatividade que era para ocorrer organicamente no cotidiano não vai fazer sentido na cabeça daquela pessoa. Então junho de 2013 é o momento que abre uma caixa de pandora. Muita coisa para a gente digerir, para a gente compreender, e é por conta disso que eu recuso uma visão um pouco maniqueísta de junho de 2013, uma visão como se junho de 2013 fosse um momento completamente reacionário, que o golpe teria começado ali, ou que junho de 2013 foi um momento autentico, da população mostrando que se as instituições não lhe representam aquele povo ali estava totalmente com razão na sua forma de agir. Tinha de tudo em junho, era uma cacofonia se a gente parar para pensar.

A questão é, como esquerda, como é que a gente se comportou em junho, o que a gente poderia ter feito diferente, qual foi o potencial que a gente deixou desperdiçar, e o que ainda existe de potencial para a gente trabalhar, para a gente estar propondo uma alternativa hoje, mesmo seis anos depois. E ai eu penso que um dos momentos importantes para a gente considerar é como que, a partir de junho de 2013 a gente é forçado a ter que se encarar. Se eles ficaram muito anti-esquerdistas a gente tem que apresentar o que é a esquerda, e ai eu sempre lembro do livro do Vladimir Safatle que é a esquerda que não teme dizer seu nome, e talvez seja isso que a gente precisa fazer com mais força agora, não uma esquerda de conciliação, não uma esquerda, ai no centro, tentando tirar o melhorzinho de cada lado, porque nós precisamos de moderação e um momento de alta polarização. Acho que é o contrário, a gente precisa de polarização sim, mas uma polarização real, uma polarização que trata de poder, que trata de projeto político, que trata da estrutura da sociedade, e que é o que sustenta a desigualdade que a gente tem no Brasil.

A gente precisa de uma polarização politizada, que fale de antagonismo, e não de moderar de uma maneira que simplesmente a gente vá viver nessa sina no Brasil, que é uma sina da América Latina, que a gente alterne entre poder tirar um pouquinho de benefício do sistema capitalista e distribuir para a sociedade, diminuindo a fome, diminuindo a pobreza, trazendo mais educação, e no próximo período sofrendo golpe, no próximo período vindo um governo altamente neoliberal e todos aqueles ganhos que a gente teve, a gente perder novamente. A gente tem que escapar desse ciclo. Então, na verdade, uma boa polarização, não essa da ultra-política, uma polarização politizada é o caminho.         

BdF: O Mujica falou recentemente que os governos de esquerda na América Latina    transformaram os pobres em consumidores, mas não em cidadãos. E talvez tenha um pouco a ver com isso que tu estás falando da questão da democracia, a diferença entre a democracia simplesmente representativa, que tu vai lá de quatro em quatro anos votar, e a democracia participativa, que de alguma forma a gente tentou fazer isso aqui em Porto Alegre, com os primeiros governos municipais, na prefeitura com o Olívio Dutra, quando se iniciou todo o processo de orçamento participativo. Que de alguma forma era isso, tinha uma efervescência das periferias, das pessoas terem uma participação, delas virem para as reuniões, discutir, e não se conseguiu avançar nisso.

Sabrina: É uma dificuldade muito forte. Primeiro porque, para falar de democracia, a gente tem que expandir o que a gente pensa por democracia. Falar que há uma ruína da democracia no Brasil hoje... Eu não falo de morte da democracia, eu falo de desdemocratização das instituições, que são instituições da democracia liberal, e que essas instituições sim, a gente tem visto que nem aquele papel básico das instituições de garantia da Constituição, não se propõe a fazer. É algo que, quem mora na periferia do sistema já via, já não tinha Estado Democrático de Direito no Brasil para essas, mas o processo de desdemocratização ele vai avançando a um ponto que ele vai chegar no centro, no centro do poder, as instituições perdem seu pudor completamente, e a gente vê isso.

Mas no período anterior a essa desdemocratização escancarada a gente já via, por exemplo, um processo de ilusão, de achar que a gente poderia construir no Brasil algo como os Estados Unidos, que é o American Way of Life, modo de vida do estadunidense, que tem uma casa própria e três televisões e compra várias coisas, e como a gente pode tratar disso em um Brasil que a gente não teve uma abolição da escravidão por completo, em um Brasil extremamente oligárquico, em um Brasil de capitalismo dependente, no Brasil que está lidando com as forças imperialistas que estão sempre fazendo intervenção na nossa política, sempre fazendo intervenção na Venezuela, na Bolívia, na Argentina, no Chile, como a gente faz isso no Brasil? É algo que só é possível se a gente pensar de uma forma realmente antissistêmica. Então não dá para ter inclusão através do consumo, ela só vai até um certo ponto. Porque a partir do momento que no ciclo do capitalismo a gente começa a ter perdas em termos de compreender que não há um crescimento infinito possível, muito menos na periferia global do capitalismo, a gente vai entender que se uma pessoa se sente cidadã através do consumo, vai passar a primeira crise econômica isso vai se diluir completamente.

Então tem esse aspecto estrutural, e o outro aspecto da politização que é isso que você mencionou, em relação, por exemplo, ao orçamento participativo. O orçamento participativo é uma ferramenta extremamente interessante de fazer com que as pessoas entendam que gerir a cidade não é um papel simplesmente do prefeito e dos projetos de lei que vão vir das câmaras de vereadores, você faz parte também, você também faz política. E ai é onde a gente poderia pensar como isso poderia ir muito além, e não ficar na gestão do recurso, mas inclusive da gente entender de onde vem esses recursos, que tipo de reforma tributária que a cidade também precisa, como a gente pode reorganizar o nosso plano diretor para a gente quebrar essa lógica de que periferia tira toda a perspectiva de direito à cidade, como é que nossas cidades, nossos municípios podem ficar mais integrados para a gente ter uma distância menor entre o rural e o urbano. Poderíamos ter pegado essa sementinha do orçamento participativo, e ido muito além.

Mas o que aconteceu foi que, como a gente estava muito nessa ideia do consumo e gestão, teve uma voz política que entrou ai e acabou deturpando um projeto que tinha um potencial muito grande, e é por isso que quando a gente vai olhar nas pesquisas o orçamento participativo aqui em Porto Alegre foi uma semente importante, quando ele vai se espalhando ao redor do mundo virou uma ferramenta de legitimação de certas prefeituras que falam “não, a gente é extremamente democrático, tem esse pedaço aqui do orçamento que a gente até deixa a população gerir, até deixa cuidar”, mas o resto é sempre atrás de portas, entre quatro paredes e ninguém pode questionar.

BdF: Queria que tu falasses um pouco do teu canal no youtube que tem uma grande visibilidade, e é um canal que tu falas da esquerda, tu falas de marxismo. Ao que tu atribuis essa repercussão do canal Tese Onze?

Sabrina: Foi uma surpresa que o Tese Onze deu uma crescida impressionante do ano passado para cá, em junho do ano passado eu estava com 25 mil inscritos, agora já tem 150 mil a mais. Isso demonstra que temos uma janela de oportunidade que muita gente não valorizava. O youtube era um espaço completamente dominado pela direita, eu diria que ainda é dominado, no sentido de hegemonia, e eles ainda possuem maior alcance, maior ferramenta, mas temos cravado uma brechinha aí. Tem vários outros canais surgindo também, o que me deixa muito feliz, eu tento sempre colaborar, indicar esses outros canais. Porque o audiovisual é uma ferramenta interessante hoje no Brasil, nós não temos grandes canais de televisão, a gente não tem esse grande aparato de comunicação, então a gente tem que aprender a utilizar o que está ao nosso alcance. O youtube na verdade tem bastante potencial dentro dos limites de uma plataforma capitalista que, por exemplo, um vídeo discutindo legalizando do aborto vai ter muito mais dificuldade de ir para frente, do que um vídeo pela criminalização.

Então a gente tem essas dificuldades sim, mas tem muita gente que acaba se identificando e que vê aquilo ali como um subsídio para os seus debates no dia-a-dia. Eu notei isso durante o processo eleitoral, pessoal chegando desesperado, adoecimento mental mesmo, como é que eu vou lidar, o Bolsonaro eleito eu não sei se vou ter coragem de andar na rua, isso acaba sendo algo que a gente vê porque as pessoas vão se identificando, vão se abrindo. Eu acho muito interessante esse processo do relacionamento que a gente cria com a galera; eu sempre tento desconstruir a visão personalista também porque não é o meu intuito, mas é legal poder estar ali e poder estabelecer uma relação com as pessoas, e crescendo, e ver que estou ali fazendo um debate que não é só um debate de esquerda, é um debate de esquerda radical, marxista, falando de socialismo, de comunismo, ecossocialismo, que é a minha visão específica, e tem pessoas que estão parando para ouvir, que estão falando que não conheciam.

Esse é o momento para gente pensar que, se eles estão nos criminalizando, se estão nos atacando, que estão contando mentiras sobre a gente por aí, é por isso que temos que pegar todas as ferramentas que a gente tem ao nosso alcance hoje e falar todas as verdades sobre a gente, até mesmo aquelas mais dolorosas, porque demonstram a franqueza que as pessoas querem ouvir para estabelecer uma relação de confiança, e daí trazer as pessoas para dentro, para junto a gente construir essa esquerda realmente radical, essa esquerda que possa ser vista como alternativa real para o que está dado hoje.

"A gente não consegue transformar a sociedade simplesmente na base da corrente do whatsapp" 

BdF: E o interessante é que é um rosto jovem, um rosto de mulher, bonita, enfim, acho que isso chama um pouco a atenção, ou seja, uma pessoa jovem falando de temas que só se via o militante mais velho tratando...

Sabrina: Eu nem me considero tão jovem assim, vou fazer 31 anos agora, acho que tenho mais carinha e vozinha de juventude do que realmente parece, muita gente olha lá e acha que estou no movimento estudantil, não estou há muito tempo no movimento estudantil, lecionei na UNB recentemente, então tem um pouquinho disso.

A parte de ser mulher, chama muita atenção, porque por muito tempo a visão de poder falar de política de forma articulada, de estar pautando debates foi e ainda é, um domínio dos homens na esquerda. Muitas vezes as mulheres vão parar nas mesas dos partidos de esquerda porque eles falaram “ah é, tem aquela coisa de representatividade, então a gente tem que colocar a cota de mulheres, a cota de negros, a gente tem que colocar ali”, mas não estão levando realmente a sério, e aí chegar em um canal como esse, e enfrentar o machismo do youtube e continuar, acaba que demonstra para outras mulheres que elas podem fazer isso em seus espaços também. Nesse sentido eu até aceito a questão de inspiração, eu fico feliz que ajude outras pessoas a ter coragem de enfrentar, de pautar essas questões.

Mas no geral, é só uma sementinha, tem que ter mais gente ocupando esses espaços, mas também entendendo que não é só para gente ocupar aquele espaço, a mudança pela esquerda exige que a gente esteja no cotidiano presencialmente com as pessoas. A gente não consegue transformar a sociedade simplesmente na base da corrente do whatsapp, essa é uma ferramenta da direita, uma ferramenta da alienação, nós temos que estar no cotidiano, construindo, demonstrando solidariedade, fazendo alternativas valer a partir de agora.

BdF: Tu cita no livro o interregno pensado pelo revolucionário italiano Antonio Gramsci na passagem do seu Cadernos do Cárcere: "o velho está morrendo e o novo não pode nascer, para ti, o que é o novo?

Sabrina: É justamente isso que eu tento mostrar no livro porque nos últimos anos, toda vez que eu ouvia essa frase, muita gente dizia, “ah o velho que está morrendo é tipo o PT, e o novo que está nascendo é tipo um PSOL”, e eu falava, nossa que visão rasa, porque na verdade não é uma organização e também se propõe a partir de uma interpretação dessa, que o velho é uma coisa ruim, e o novo é uma coisa nova, então portanto boa, e ai chega um partido novo e a gente vê que não tem nada a ver com bom. Então o novo é simplesmente algo que está incipiente na sociedade hoje, se ele vai ser positivo ou negativo é algo que a gente tem que pautar.

Então, o que é o velho que a gente vai vendo hoje: o velho é a conciliação que passa pela direita, que passa pela normalização, passa pelo aceite da democracia liberal. A gente vem de um período de ditadura no Brasil, surge um período democrático, mas esse período democrático não avança, ele fica ainda naquilo que Florestan Fernandes chamava de democracia limitada.

Eu acredito que a nossa democracia limitada está morrendo, será que o novo que está surgindo vai ser uma democracia ampliada, rumo a um horizonte socialista, ou o novo que vai surgir é um fascismo?

A gente precisa ficar alerta para isso, então nesse interregno estão todas as variáveis, cabe a gente pautar o que vai fazer com elas e que tipo de potencialidade que a gente vai acabar construindo e exercendo para poder garantir que o novo seja realmente positivo, que o novo seja realmente uma ruptura, porque se a gente ficar só assistindo, talvez o novo seja o Bolsonaro, o Mourão, ou algo muito pior. A gente precisa ficar alerta, o que a gente tem simplesmente é uma crise de autoridade, o velho é o que estava antes, que a gente vê resquícios dessa desdemocratização e o novo é o que a gente tem que construir.

Edição: Marcelo Ferreira