Há quem diga que o trabalho das mulheres não tem 'qualidade editorial'
Convivemos com os quadrinhos dos mais diversos tipos, tamanhos, conteúdos e ilustrações. A chamada “9ª arte” é reconhecida e respeitada por críticos, mas carrega um fardo grande: a invisibilidade da produção feminina.
O mundo dos cartoons sempre foi dominado por homens. Na maior parte das referências que temos e usamos sobre os quadrinhos, sobretudo no mainstream, os conteúdos parecem pensados a partir de uma masculinidade que não só aborda comportamentos tóxicos e reproduz uma cultura machista, mas que também fecha porta às mulheres.
A quadrinista e jornalista Helô D’Angelo, autora da webcomic Dora e a Gata, que está no Catarse (projeto de financiamento coletivo), produz quadrinhos e estuda teorias feministas desde 2014. Ela afirma que esse tipo de dominação masculina sob a feminina, neste meio, exemplifica o resultado atual da luta das mulheres por reconhecimento.
“A produção feminina de quadrinhos sempre esteve presente na grande indústria, ou na indústria independente. Só que as artistas mulheres foram eclipsadas pelos homens. No começo dos quadrinhos mainstream, dos quadrinhos de super-heróis, até tinham artistas mulheres, mas nunca estavam em posição de destaque dentro das empresas. O trabalho destinado a elas era o de limpar a arte dos caras, ou às vezes na arte final como detalhistas, ou eram secretárias: tinham talento para ser artistas, mas só eram aceitas dessa forma”, comenta.
O mercado diz não há atuação feminina, mas a história mostra que elas sempre estiveram ativas nessa área. Nas redações, fizeram parte da produção de quadrinhos de sucesso, mas sem o devido reconhecimento. Em 1940, por exemplo, editoras como a Marvel Comics mantinham trabalhadoras que não assinavam por seus trabalhos. Das poucas que o faziam, usavam pseudônimos masculinos, porque, é claro, o nome de uma mulher traria represálias, como um sinônimo de fracasso de vendas.
No Brasil, a cultura dos quadrinhos teve seu primeiro auge nas décadas de 1930 e 1940, com as revistas o Tico-Tico e Suplemento Juvenil, que traziam boa parte do conteúdo que era feito nos Estados Unidos. Nas produções e redações, havia pouca participação feminina, com destaque para Nair de Teffè, que assinava como Rian (seu nome ao contrário) e contribuiu com dezenas de trabalhos para as revistas Fon-Fon e O Malho.
Mais a frente, em 1970, a plena ditadura militar, revistas alternativas começaram a tomar o mercado, como O Balão, O Bicho e o famoso O Pasquim. A atuação de mulheres nesta época ficou marcada por ser exceção à regra, em editoras que eram compostas majoritariamente por homens.
Maria Cláudia França Nogueira, por exemplo, conhecida como Crau da Ilha, contribuía para a revista O Bicho e Mariza Dias Costa ganhou destaque por produzir conteúdos para O Pasquim e para a Folha de São Paulo. Um dos maiores nomes femininos da época era o de Cecília Alves Pinto, mais conhecida por Ciça, que produziu as tirinhas “Pagando o Pato”, na qual fazia uma análise crítica do país da política no país. Mesmo assim, quando relembradas as ações d’O Pasquim na história do Brasil, ambas são sequer são mencionadas.
Ainda hoje, é difícil obter informação sobre a atuação das mulheres nessa área. São poucas as pesquisas direcionadas à participação feminina nos quadrinhos e o material produzido ainda é vista como inferior, ocupa poucas prateleiras nas grandes livrarias e é alvo de constante preconceito.
“A ironia é que precisamos enfrentar, ainda hoje, desafios que as mulheres sempre enfrentaram, como a ideia de que a mulher não serve para fazer quadrinhos, porque isso é coisa de homem, ou que não existem quadrinistas talentosas, que o nosso trabalho não tem qualidade. Temos que enfrentar muito dessa atuação masculina no meio para poder fazer arte, o que eles fazem todos os dias sem tantas dificuldades”, destaca Helô.
Quem tem interesse em conhecer o trabalho dessas mulheres, pode conhecer o trabalho de grandes pesquisadoras da área. Nos Estados Unidos, há Trina Robbins, uma das peças fundamentais no reordenamento da história da mulher na produção de histórias em quadrinhos, (co)autora de cerca de 30 hq’s e 13 livros.
No Brasil, destaque para Carolina Ito, mestra pela Universidade de São Paulo com a pesquisa “Um panorama da produção feminina de quadrinhos publicados na internet no Brasil”.
Para identificar artistas brasileiras e latino-americanas, vale olhar o conteúdo produzido pela Gabriela Borges no site Mina de HQ, que reúne uma galeria de produção feminina nos quadrinhos.
Edição: Michele Carvalho