Conhecido como o político "mais amado e mais odiado da Venezuela", Diosdado Cabello é presidente da Assembleia Nacional Constituinte, deputado pela Assembleia Nacional (Congresso de maioria opositora) e vice-presidente do Partido Socialista Unidos da Venezuela (PSUV). Entre os compromissos parlamentares e partidários, o número 2 do chavismo apresenta um programa de TV. E não é qualquer programa.
A atração Con el Mazo Dando (uma versão venezuelana da expressão popular “o pau comendo”), líder de audiência no país, mistura informação e entretenimento, com um toque de sarcasmo e provocação -- características marcantes da trajetória política de Cabello. O programa vai ao ar há cinco anos e utiliza-se de linguagem simples para se comunicar com a população todas as quartas-feiras, às 19h30, pelo canal estatal Venezuelana de Televisão (VTV).
Nas redes sociais, o programa é um fenômeno sem precedentes na Venezuela. Em junho, uma das edições teve alcance de 45 milhões de visualizações só pelo Twitter, além de mais de 100 mil postagens sobre o tema.
Contraponto
O investimento no setor de comunicações remete aos anos de Hugo Chávez como presidente (1999-2013), em que a televisão passou a ser encarada como uma ferramenta insubstituível no contato direto com as famílias venezuelanas. A ideia, além de conhecer as demandas dos cidadãos, é que os canais estatais permitam fazer contraponto à narrativa da mídia corporativa.
Hoje, entre os cinco maiores canais de televisão da Venezuela, três são privados e dois são estatais, segundo dados do Ministério da Comunicação. A líder em audiência é a emissora Televen, do conglomerado Camero, criada em 1988. Em seguida vem a Venevisión, também privada, pertencente à corporação Cisneros. O canal estatal VTV, inaugurado em 1964, tem a terceira maior audiência do país. Já a Globovisión, que existe desde 1994, é dirigida pela empresa Globo Comunicações e arrebata o terceiro lugar na média de audiência. Completa a lista o canal multiestatal Telesur, fundado em 2005.
O país possui outros 13 canais abertos, entre estatais e privados, com menor audiência. Entre os mais assistidos, a tendência política é antigovernista. Também no setor de jornais impressos e portais de notícias, os maiores números de acessos se dão em meios privados, com linha editorial à direita. É o caso do jornal El Nacional, o maior do país, e do La Patilla, dirigido por opositores do governo de Nicolás Maduro.
O sucesso do programa conduzido por Cabello escapa à lógica antigovernista da mídia comercial venezuelana, mas se utiliza da mesma fórmula que faz sucesso nas grandes empresas de comunicação. Entre os produtos televisivos de maior audiência no país estão os programas informativos, de análise e entrevistas com políticos. Nesse sentido, Con el Mazo Dando aposta em um público acostumado ao debate da conjuntura.
Luz, câmera, ação
Um dos principais quadros do programa se chama “Cara de pau”. Cabello apresenta vídeos com declarações de opositores e ressalta as divergências entre os setores contrários ao presidente Maduro. Os vídeos muitas vezes são enviados pelos próprios espectadores -- ou “patriotas cooperantes”, como prefere chamar o apresentador.
“Fiz algumas medições internas sobre a audiência e percebi que a principal razão pela qual as pessoas assistem ao programa é porque ele é noticioso. Mas são informações que elas não vão ver nos meios de comunicação tradicionais aqui da Venezuela”, explica o número 2 do chavismo, em entrevista ao Brasil de Fato.
Cabello participa de todos os processos, cuida dos mínimos detalhes da produção. “Ele revisa tudo, todos os vídeos, as notícias. Apresentamos algumas notícias e ele vai descartando, selecionando”, conta o produtor do programa, Hernan Canorea.
Enquanto conversa com a reportagem, Canorea recebe um telefonema. "É o chefe", diz em voz baixa. Depois de receber as últimas instruções, que anota em uma pequena lousa que leva à mão, ele respira fundo: o show está prestes a começar.
Mestre em criar bordões
Na plateia estão políticos, comunicadores populares, jornalistas, militares e trabalhadores como dona Elvia Mota, uma costureira de 57 anos que há cinco anos assiste ao programa pela televisão. “Sempre quis vir assistir ao vivo, não perco um só programa. Adoro esse homem. Ele é franco, direto, diz as coisas como são, gostem ou não gostem”, diz a trabalhadora, admitindo estar ansiosa. A parte preferida dela são os vídeos críticos e bem-humorados. “Vejo o programa pelos vídeos, mas também pelo carisma dele [Cabello], e por ter sido tão amigo de Chávez”, ressalta.
A imagem de Diosdado Cabello é associada diretamente ao ex-presidente Chávez pois os dois emergiram na política nacional na mesma época. Eles estiveram juntos na primeira tentativa de chegar ao poder, no levante militar de 4 de fevereiro de 1992 contra o governo do ex-presidente Carlos Andrés Pérez. Chávez foi o líder e Cabello, seu braço direito. Hoje, é ele quem dirige, na prática, o PSUV. O partido é presidido formalmente por Maduro, que se dedica às funções institucionais da Presidência da República como prioridade.
Cabello é considerado o líder mais carismático do país, depois da morte de Chávez, mas não há competição nem rivalidade com Maduro. O número 2 do chavismo é o autor do bordão “Leais sempre, traidores nunca”, criado justamente durante um de seus programas. A cada edição ele cria uma hashtag, que é repetida à exaustão pela plateia e rapidamente vira tendência nas redes sociais.
Justamente por ser associado a Chávez, Cabello faz questão de veicular em seu programa vídeos de discursos do ex-presidente, selecionados a dedo. Os temas dos discursos estão sempre ligados aos dilemas da atual conjuntura. Em uma edição recente, o programa retransmitiu um discurso de 2004 em que Chávez fala da capacidade de resistência dos venezuelanos frente a uma possível investida militar:
“A profecia de Simón Bolívar se cumpriu. Os Estados Unidos parecem destinados pela providência a espalhar a miséria pela América Latina como uma praga. E todos os governos que se opõem a isso começam a ser atacados, começam a ser satanizados. Quase 200 anos depois daquele alerta do grande líder e visionário que foi Bolívar, aqui estamos para seguir dizendo não ao intervencionismo norte-americano na nossa terra”.
Identificação
Em outro quadro, Cabello lê notícias recortadas em uma lousa escolar -- quase um escárnio em relação à tecnologia avançada das emissoras concorrentes, que investem em supertelas sensíveis ao toque das mãos e em animações em tempo real. O número 2 do chavismo explica porque optou por esse formato: “Sou militar e, no quartel, tínhamos o costume de fazer um mural com as principais manchetes de jornais. Poderia ter colocado uma dessas telas grandes e fazer uma coisa mais técnica, mas preferi esse método mais artesanal. E isso é uma das coisas que as pessoas mais gostam”, lembra.
Para reforçar o contraste entre os projetos políticos em disputa no país, o apresentador costuma selecionar uma manchete sobre a oposição e outra sobre o governo, e comentá-las em paralelo. “Essa parte o público gosta muito, porque fazemos uma análise sobre a intencionalidade da notícia. É o momento em que nós podemos provar que uma notícia é contra a Venezuela. Isso é muito fácil de notar, porque em geral essas notícias negativas têm três pontos de origem: Estados Unidos, Colômbia e Espanha. Essa é uma matriz de opinião já desenvolvida pela mídia desses países”, afirma Cabello.
Em tempos de embate político feroz, com inúmeras tentativas de golpe por parte da oposição nos últimos 10 meses, ter um comunicador como ele à frente de um programa de TV vem se mostrando um dos trunfos do chavismo. O produtor Hernan Canorea, por trás das câmeras, ajuda a montar o roteiro do programa e explica essa visão estratégica. "Conseguimos desmontar todos os discursos da oposição. Diosdado é um cara que vem de um povoado pequeno, no interior do país, que conta as coisas de uma maneira simples. As pessoas se sentem identificadas com isso", ressalta. "Mas o fator-chave é que ele diz a verdade".
Rústico, artesanal, objetivo. Assim, Con el Mazo Dando alcançou números que antes eram impensáveis, conquistando um público fiel mesmo entre os opositores. Há quem diga, inclusive, que muitos dos políticos antigovernistas gostam de ser citados por Cabello. “Quando eles estão apagados, gostam de ser citados porque é uma forma entrar na agenda política, pois o programa é visto em todo o país e em várias partes do mundo”, aponta o ex-major Frank Morales, deputado constituinte territorial pelo município Leonardo Infante.
Se a Venezuela tem algo de Macondo, Con el Mazo Dando acrescenta novas cores ao conceito de realismo fantástico. Em um contexto de bloqueio econômico e insurreições golpistas na América Latina, a voz grave, o carisma e a figura irreverente de Cabello mostram que o humor e a informação podem conviver de maneira equilibrada, sem prejuízos ao debate político.
Edição: Daniel Giovanaz