O dia amanheceu chuvoso e eu de férias e com preguiça de existir nesse mundo que parece não ter freios. Penso, talvez imbuída do ar filosófico e existencialista, que uma boa chuva carrega, sobre o tempo que leva para as coisas se formarem, se constituírem exatamente o que são: impermanentes. Ou talvez, não seja a chuva que não tem sentido algum além de ser a natureza se expressando, seja apenas eu estar de férias e deslocada do tempo capitalista de ser no mundo que me deu a possibilidade de pensar isso.
Foi Raduan Nassar, que me ensinou, “a inexorável lei: a obediência absoluta à soberania incontestável do tempo”. Ou pode ainda, apenas um jeito de justificar e pedir desculpas pelo atraso da escrita que aqui se segue. Uma forma de dizer que nos últimos dias meu tempo, anda diferindo diretamente do tempo do Capital. E que bom isso, apesar de quê não se passa sem rasuras.
O tempo dessa máquina de matar humanidades, que é esse sistema capitalista, tritura, não deixa respiro para olhar nada no entorno, olhar para si, olhar para o outro que vai aqui sentado ao lado na poltrona do ônibus. O tempo do Capital mata! Estraçalha a classe trabalhadora cotidiana e persistentemente. O tempo humanizado do qual, como gente necessitamos, o tempo de não apenas ver ou olhar as coisas, mas demorar, se deixar estar reparando em, nos é negado. O tempo de deixar a intimidade nascer e fortificar é estrangulado porque precisamos mostrar a esse sistema que não perdemos tempo com o silêncio ou o afeto genuíno, essas coisas que não vendem e logo não são essenciais para o capitalismo.
Nossos dias são cada vez mais preenchidos com risos, alegrias e saídas que precisam ser compartilhadas e curtidas em alguma rede social que vende a felicidade fingida. O tempo de abraçar e sentir o cheiro do cabelo de quem se abraça não cabe em um mundo que lucra com absolutamente tudo, inclusive com a guerra e a morte de famílias atravessando fronteiras, tentando fugir da fome. Abraço que demora sentindo o outro é amor, não gera lucro tão imediato, logo não é vantajoso.
Nesses tempos de tempos e horas e minutos e segundos desesperados para serem vividos produtivamente e que gerem mais valia para a burguesia, lucro, vire mercadoria, o ócio é crime hediondo, porque foi e é preciso ócio para a arte nascer, é preciso ócio para deixar brotar amor. É preciso tempo para perder e ganhar com quem se ama. Me vejo agora, pensando no tempo que se leva para solidificar amor por alguém, amor por nós mesmas também. Um tempo que só o afeto determina e vejo agora como o amor é brega e faz a gente pensar coisas bobas, feito a frase clichê do filme bobo de comédia romântica que vi algum tempo atrás: “Me apaixonei do mesmo jeito que se pega no sono: gradativamente e de repente”.
Percebo duas coisas no meio dessas letras tão açucaradas em tempos tão amargos: O amor leva tempo e para classe trabalhadora esse “gradativamente” é negado nas menores e nas maiores coisas. Tudo tem de ser para ontem, agora, já. Ou então se morre, literalmente, de fome de comida ou de fome de si e que foi exatamente assim que me apaixonei pela revolução: lenta e subitamente, o mundo só fazia sentido se posto em marcha a luta por uma outra forma de sociabilidade.
Agora, finalizando esse texto que segue em atraso para o capital, mas em dias com o tempo humanamente necessário, percebo na cadeira a frente um casal apaixonado e com uma quase surpresa, penso leve e repentinamente: talvez eu também esteja. E que bom! Que bom que não somos esse sistema. Que bom que apesar dessa trucidação diária que nós enquanto sociedade estamos passando, formas autênticas de afeto germinar ainda resistem. Sigamos em marcha contra o capital que desumaniza, com punhos cerrados e em luta constante até podermos ser em essência e liberdade.
Sigamos ainda, nos permitindo, apesar de toda dureza da vida, fertilizar amor, provando que somos mais que esse tempo feito mercadoria. Somos tempo humano, somos além sistema capitalista. Amamos e significamos formas de amor. Avante!
*É professora em Brejo Santo (CE)
Edição: Monyse Ravena