“A gente dorme com medo porque não sabemos se vamos acordar no outro dia. Não sabemos como vai ser a temperatura de madrugada. Acabamos não dormindo porque o frio que está fazendo à noite... podemos ter o tanto de coberta que for, mas não dá pra descansar. A gente nunca sabe”.
A preocupação de Carlos Alberto Feltrin Júnior, morador de rua há 8 anos, é compartilhada por milhares de pessoas que vivem em calçadas, praças e sob viadutos na cidade de São Paulo. Apreensivo, ele diz ter tomado conhecimento de cinco mortes desde o início do mês, devido ao frio intenso.
“Fico pensando, falando até com Deus: Será que eu vou ser o próximo? Eu acordo muitas vezes olhando pra ver se meu amigo do lado está vivo. Converso com ele, chamo, pra ver se está bem. É medo. Não sabemos o que vai acontecer de madrugada, o frio que vai ser”, desabafa Carlos, que busca abrigo todas as noites nas beiradas da avenida Alcântara Machado, zona leste da capital.
Em resposta ao frio que atinge a cidade desde o dia 22 de maio, a Prefeitura deu início ao Plano de Contingência para Situação de Baixas Temperaturas 2019, que se estenderá até 20 de setembro.
A ação - que envolve as pastas de Assistência e Desenvolvimento Social, Direitos Humanos e Cidadania, Saúde e Segurança Pública – teria realizado mais de 8 mil acolhimentos até aqui, segundo a assessoria de imprensa da prefeitura.
“Atualmente, a SMADS (Secretaria Municipal de Assistência e Desenvolvimento Social) possui 148 serviços para população em situação de rua e aproximadamente 22 mil vagas, sendo 18.411 de acolhimento”, diz o texto da assessoria enviado ao Brasil de Fato.
A prefeitura não tem informações oficiais sobre as pessoas mortas nas ruas devido ao frio. Os relatos na imprensa, no entanto, dão conta de pelo menos cinco casos.
Para o padre Júlio Lancellotti, coordenador da Pastoral do Povo de Rua, os óbitos ocorridos reiteradamente nesta época do ano demostram o quanto as políticas do poder público para essa população são insuficientes.
“Quando alguém morre na calçada, esse alguém estava sozinho, desprotegido, com pouca roupa, não alimentado e sem agasalho. Morre na calçada. Morreu do que? De tédio? É claro que é pelo frio. O frio potencializa problemas de coração, pulmonares. A hipotermia é um conjunto de fatores, é uma síndrome”, explica Lancellotti.
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Darcy da Silva Costa, da coordenação do Movimento Nacional da População de Rua, organização que atua em defesa de políticas públicas, garantias de direitos e cidadania a essa população, diz que falta atenção à questão da moradia na cidade.
“Todos os anos temos em torno de cinco a sete mortes, justamente na época de baixa temperatura. Sabemos que isso é causado por causa do frio. Mas, principalmente pelo abandono, pelo descaso com uma política séria que vem de encontro à necessidade primordial de quem está em situação de rua: a questão da moradia”, avalia Costa.
Para ele, não há diretrizes para um trabalho estruturado e permamente. “Temos uma política centralizada apenas na assistência social. As demais secretarias não participam dessa construção política. Sendo que a política pública também vem da habitação, da saúde, também vem do trabalho”, crítica.
Precariedade
Pessoas ouvidas pelo Brasil de Fato nesta quinta-feira (11), na região próxima ao Centro Comunitário São Martinho Lima, no bairro da Mooca, relatam que, apesar do frio, preferem permanecer em calçadas e viadutos devido à precariedade dos abrigos.
De acordo com informações da gestão municipal, no período das 22h às 8h a Coordenadoria de Pronto Atendimento Social (CPAS) está disponível para prestar apoio às pessoas em situação de rua e direcioná-las aos abrigos. Para solicitar a abordagem, é necessário acionar a Central 156 por telefone e informar o endereço da via em que a pessoa está, assim como citar características físicas e outros detalhes.
Mas, as experiências anteriores de Carlos Alberto Feltrin Júnior, por exemplo, o desmotivam a procurar apoio institucional.
“Pro serviço 156 até desisti de ligar. A gente liga, eles pedem para esperar até 3h. Ficamos esperando no ponto em que marcamos e eles não aparecem. Demora 3 horas, 6 horas, até 12 horas. E aí tem dia que dormimos na rua”, conta.
“Teve uma vez que eu liguei, nós estávamos em 12. Tinha até um senhor com deficiência esperando. Falei no 156 e me disseram que o pedido já tinha sido feito. Esperamos até 1h da manhã e não apareceram. Dormimos um do lado do outro, sem coberta”, continua Carlos.
Padre Lancellotti afirma que é urgente a humanização na assistência social.
“Esse discurso das frentes frias é uma ficção. Todo mundo sabe que, se chama o 156, vai levar 4 ou 5h pra vir. Depois, vão ver aonde tem vaga, como se a pessoa fosse um objeto. ‘Tira dessa prateleira, põe em outra prateleira. Tira desse armário e põe outro armário’. Não levam em conta que as pessoas estão fixadas em territórios, têm ligações e vínculos. Por isso, às vezes as pessoas não aceitam”, diz o religioso, acrescentando que muitas vezes os moradores de rua são recolhidos durante a madrugada e acabam ficando pouco tempo nos abrigos, já que eles são desocupados pela manhã.
O coordenador da Pastoral complementa que a perda da noção de intimidade, da individualidade e a ausência de controle sobre atividades básicas e cotidianas, como horário da alimentação, de dormir e acordar, também afastam algumas pessoas dos abrigos.
“Muitos acabam morando em malocas porque preservam a liberdade. A chave do atendimento deveria ser a autonomia”, sugere.
É o caso de Carlos do Nascimento, de 22 anos, que está há meses desempregado e vivendo na rua. “Não há liberdade pra nada. É muito humilhante não poder se expressar, ter que viver fechado todo o tempo. Se é destratado não pode debater, tem que engolir. Se precisar ser atendido por uma assistente social, é quase impossível”, detalha.
Com a notícia das mortes de outras pessoas em situação de rua, Nascimento preocupa-se com sua saúde. “O frio já é insuportável para quem está agasalhado, imagina para a pessoa que não tem agasalho, que não tem uma coberta? Já passei noites de frio na rua e na chuva também. Isso acaba com a saúde. Se agasalhado, na rua, tem chance de ter um resfriado, de ficar gripada, imagine pessoas sem proteção nenhuma”, comenta.
Problema estrutural
Segundo estudo feito pela Fundação Instituto de Pesquisas Econômicas (Fipe), havia em 2015 quase 16 mil moradores de rua na capital. Os dados são os mais recentes relacionados a essa população e não consideram o impacto dos altos índices de desemprego dos últimos anos, que, de acordo com o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), atinge mais de 13 milhões de brasileiros.
Uma novo estudo está previsto ainda para esse ano. “Devido à crise econômica que vem afligindo o país nos últimos anos, a estimativa é que esse número tenha crescido para cerca de 20 mil. Por conta disso, a prefeitura de São Paulo decidiu antecipar a realização do próximo censo para 2019, conforme conta no Programa de Metas. O processo de licitação para contratação do Censo já foi iniciado”, informa a gestão do prefeito Bruno Covas (PSDB).
Em fevereiro deste ano, a prefeitura entregou o primeiro conjunto habitacional para população de rua, localizado na região central. As 34 unidades beneficiaram 71 pessoas que pagam aluguel social e que já possuem autonomia financeira.
Darcy da Silva Costa, do Movimento Nacional da População de Rua, comenta que é preciso desenvolver uma política habitacional para aqueles cuja sobrevivência depende unicamente da rede de assistência social.
“A principal necessidade de quem está na rua é a moradia. Precisamos pensar em quais são esses modelos de moradia porque é uma população com uma renda muito baixa. E o programa Minha Casa, Minha Vida, por exemplo, não fez nenhum projeto de renda zero ou de um salário”.
De acordo com dados do Ministério do Desenvolvimento Social de junho deste ano, o número de pessoas em situação de rua no Brasil é de 130.618. A pasta contabiliza apenas os inscritos no Cadastro Único para Programas Sociais.
Na opinião do baiano Tiago da Silva, em situação de rua desde os 11 anos, as vagas em albergues não atendem toda a demanda dessa população. Para ele, o poder público deveria oferecer trabalho e moradia digna.
“A Prefeitura não liga muito para nós. Pra eles, a gente sempre vai ser visto como morador de rua, mendigo, bandido, ladrão. Se colocassem pra cada um fazer uma coisa, varrer rua, carregar saco de cimento, todo mundo ia viver melhor”, relata. “Não tem esse Minha Casa, Minha vida? Se pra população de rua fizessem até menor, com dois vãos e um banheiro, e entregassem a cada um, estava maravilhoso”.
GCM
Mesmo com as baixas temperaturas, entidades sociais que trabalham com essa população afirmam que a Guarda Civil Metropolitana (GCM) e o serviço de zeladoria urbana retiram itens de subsistência da população, ação que descumpriria decreto municipal que rege a conduta de agentes municipais durante as ações de zeladoria.
Aprovado em 2016, o texto determina que, ao abordar moradores de rua nas calçadas, os funcionários públicos devem preservar itens pessoais como roupas, cobertores e documentos, assim como ferramentas e carroças, considerados instrumentos de trabalho.
“Eles retiram roupas, calçados, remédios, documentos, alimentos. Tudo aquilo que é necessário à subsistência. Eles tiram cobertas, coisas que aqueles que não têm lugar para ficar têm como subsistência. É uma ação diária pela cidade inteira. Não é só aqui na zona leste. Essa é a ação da Prefeitura e em todas as administrações. Todos fazem do mesmo jeito. Não tiram o lixo da cidade, que continua espalhado, mas querem retirar as pessoas. São ações higienistas”, denuncia Lancellotti.
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Após a Favela do Cimento pegar fogo em março deste ano, a única opção de José Jorge Ribeiro foi morar nas ruas. Ele conta que já foi vítima de ação ofensiva da Guarda Civil Metropolitana no viaduto Bresser Mooca, na radial leste.
“O jornal está falando que não pode mexer com morador de rua por causa do frio, mas eles estão indo direto lá e levando nossas coisas. Levaram roupa do meu filho de dez anos, a roupa da minha mulher, a minha roupa. Enquanto eu fui dobrar as cobertas, eles jogaram minha mala em cima da caminhonete. Graças a Deus que eu tinha guardado meu documento aqui", diz, apontando para o próprio bolso.
Em nova enviada por meio da assessoria de imprensa da Prefeitura, a GCM nega as acusações.
"A denúncia de que a GCM retira cobertores dos moradores em situação de vulnerabilidade não procede. Por meio do Programa ‘Anjos da Guarda’, as equipes operacionais em toda a cidade, realizam sim, a distribuição de cobertores só ou em conjunto com agentes municipais. O cidadão pode ligar para a Prefeitura, pelo telefone 156”.
Edição: João Paulo Soares