O presidente da Assembleia Nacional venezuelana, o deputado Juan Guaidó emitiu um decreto-lei determinando a prorrogação da validade de todos os passaportes venezuelanos por cinco anos. De acordo com a medida, um selo emitido por embaixadas ou consulados ocupados pela equipe do autoproclamado presidente bastaria para estender a vigência do documento.
Segundo a Constituição da Venezuela, decretos-lei devem ser emitidos apenas em casos extraordinários -- e pelo Poder Executivo. Além disso, para ter validade, novas leis precisam passar pela sanção presidencial e ser publicadas no diário oficial. Guaidó, entretanto, faz uso da sua autoproclamação como presidente interino para emitir esses documentos.
Há de fato uma crise na emissão de passaportes pelo Estado venezuelano. O bloqueio econômico capitaneado pelos EUA é o principal motivo apontado pelo governo para que a Venezuela não tenha matéria prima para produzir novos passaportes.
Encontrar papel é tarefa difícil no país. Frente a isso, o governo já vem emitindo prorrogações de dois anos e divulgado que o ritmo lento, e as filas para emitir novos documentos, não têm um propósito de proibir que os venezuelanos viajem.
No ano passado, onze países da América Latina, além do Canadá, Estados Unidos e Espanha já haviam dito que aceitariam os passaportes venezuelanos vencidos como documentos de identificação válidos dentro do seu território.
A decisão desses governos se deu logo após a convocação feita pelo presidente da Colômbia, Iván Duque, em abril, para o acirramento do cerco diplomático, das sanções políticas e econômicas contra a Venezuela para “derrotar a ditadura”.
Oposição legisla em causa própria
Desde 2016, a Assembleia Nacional presidida por Juan Guaidó, atua desacatando decisão do Supremo Tribunal de Justiça -- que considera seus atos políticos inválidos. A oposição é maioria no parlamento, segue se reunindo e legislando de acordo com seus interesses, mesmo quando não há quórum mínimo.
A advogada Ana Cristina Bracho afirma que o decreto-lei sobre a validade dos passaportes se trata de uma tentativa da Assembleia Nacional de assumir o comando das relações internacionais do país no lugar do Executivo.
“A medida não tem vigência porque não foi publicada no diário oficial; não tem aplicação porque não é competência da Assembleia Nacional emitir decretos; e não tem efeito porque não derruba, nem modifica leis de identidade e identificação presentes na República. O direito à identidade é um direito humano, mas não pode ser utilizado por cima das competências do poder público”, elucida Bracho.
Apesar de não ter validade como lei, governos estrangeiros que reconhecem Juan Guaidó como interino atenderam à solicitação.
Na mesma semana da publicação do decreto, os EUA, sob administração de Donald Trump, garantiram que aceitariam os passaportes venezuelanos, mas outros documentos seguiriam sendo exigidos para obter o visto.
O governo espanhol também confirmou que aceitaria os documentos venezuelanos vencidos a partir de 15 de março.
Para Bracho, com essa prática, a Casa Branca anula o peso dos passaportes, cuja utilização foi sugerida e incentivada pelo próprio país, logo após a Iª Guerra Mundial para controlar o fluxo migratório. “Tudo se dinamita quando os EUA afirmam que admitirão documentos emitidos por uma autoridade não natural e de forma distinta do previsto em tratados internacionais”, comenta a especialista em direito público.
Incentivo à migração como tática de guerra
Não é a primeira vez que os Estados Unidos encabeçam um movimento de primeiro bloquear economicamente um país, para em seguida, estimular a migração no país sancionado. Essa cartilha já é aplicada em Cuba há pelo menos 50 anos.
Com a lei de ajuste cubano ou lei “pés secos e pés molhados”, implementada em 1995, no auge do chamado período especial, o governo dos Estados Unidos oferecia uma série de facilidades ao cidadão cubano que ingressasse no país, pela via legal ou não.
Entre eles, a garantia de uma pensão como apoio financeiro para os primeiros três meses, além de oferecer visto de residente depois de um ano de moradia comprovado. Um tratamento muito diferente do oferecido aos mexicanos e outros centro americanos que tentam cruzar rumo ao norte.
Essa lei foi suspensa no final do mandato de Barack Obama. Em um ano, diminuiu mais de 71% a chegada de balseiros de cubanos imigrantes nos portos da Flórida.
Donald Trump revogou boa parte das ações tomadas por Obama na retomada de relações internacionais com Cuba, mas não tocou nessa lei. Isso porque, apesar de ter vencido as eleições nos estados com maior população de latinos, Trump afirma não querer mais imigrantes nos EUA. Por isso tem oferecido dinheiro para que outros governos da região recebem a migração venezuelana.
Em visita ao Brasil no ano passado, o vice-presidente dos EUA, Mike Pence prometeu a liberação de US$ 10 milhões para que o governo de Michel Temer (MDB) abrisse as fronteiras para “acolher” o fluxo migratório venezuelano.
Em abril de 2019, Pence anunciou mais US$ 61 milhões para que países vizinhos à Venezuela oferecessem “ajuda humanitária” aos emigrantes.
O pedido foi atendido prontamente e se mantém até hoje, no entanto a boa receptividade não se aplica para imigrantes de outras nacionalidades.
Uma reportagem do portal Nocaute, publicada há duas semanas, denuncia a diferença de trato recebido pelos venezuelanos e relação a pessoas que emigram de outros países.
O governo federal criou uma força-tarefa para, já em Roraima, emitir todos os documentos necessários para que os venezuelanos circulem e trabalhem pelo Brasil. Além de montar e/ou reestruturar 13 abrigos em apenas 15 dias.
Uma ação contraditória para o governo Bolsonaro, que não assinou o Pacto Global por uma Migração Segura, Ordenada e Regular, proposto pela ONU e apoiado por 84 nações.
Farol econômico
Além da asfixia política, o cerco diplomático promovido pela oposição e ratificado por outros países também tem um fundo econômico.
Entre suas ações executivas e de caráter diplomático, Guaidó nomeou embaixadores e cônsules em mais de 50 países onde foi reconhecido como presidente interino. Dois deles estão em Luxemburgo e Andorra -- localidades onde a Venezuela não tem sede diplomática e que são considerados verdadeiros paraísos fiscais.
No decreto-lei que dita a prorrogação de validade aos passaportes, também está previsto o uso de fundos extraordinários por parte das embaixadas e consulados para gastos gerais.
As nomeações fantasmas, aliadas à permissão do uso de verba de procedência desconhecida e aos escândalos recentes de corrupção com o dinheiro da ajuda humanitária pela equipe de Guaidó sugerem que, mais uma vez, a oposição busca brechas para poder fazer uso de dinheiro público venezuelano bloqueado em contas do exterior.
“A trama financeira, sem dúvida, é o aspecto mais importante dessa via que a oposição tem utilizado. Até 2017, Venezuela havia sido vítima de medidas administrativas estadunidenses que lhe confiscavam ou congelavam a propriedade dos seus bens ou impediam transações financeiras – todos atos questionáveis sob a ótica do direito internacional. Agora ao reconhecer um aliado como presidente, Washington pode justificar que não está “tomando” esse dinheiro bloqueado”, sentencia Bracho.
Diálogo sobre a balança
Essas novas ameaças diplomáticas se reforçam justamente após o fracasso da tentativa de golpe do dia 30 de abril como uma das últimas táticas militares falidas da oposição. Apesar de o discurso e prática serem outros, para Bracho, as ações afetam as mesas de diálogo celebradas em Barbados.
“Durante processos de diálogo, em qualquer parte do mundo, a confrontação política continua. Ainda mais em casos como a Venezuela, em que há de se fazer um esforço enorme para que os venezuelanos comprometidos com a paz se liberem de influências externas, como a dos Estados Unidos, que consideram rentável econômica e politicamente, o caos em países petroleiros. Por isso o diálogo é um caminho delicado. Enquanto o governo bolivariano afirma que a paz é o único caminho, a oposição e os EUA se referem ao diálogo como uma de suas opções”, finaliza a advogada.
Edição: Rodrigo Chagas