Um olhar apreensivo e impaciente. Foi assim que me encarou Maria – cujo verdadeiro nome foi preservado – quando entrei na Delegacia Especial de Defesa da Criança e do Adolescente do Rio Grande do Norte (DCA/RN). Sua filha mais nova, de 14 anos, estava desaparecida e, segundo a mãe, com fortes indícios de abuso sexual.
Maria, que reside no bairro de Felipe Camarão (Zona Oeste de Natal), já tinha passado por três delegacias diferentes até chegar na Delegacia Especial de Defesa da Criança e do Adolescente (DCA). Sem muitas condições financeiras, teve que pedir dinheiro emprestado a conhecidos, para pagar suas passagens de ônibus, a fim de se locomover de um bairro a outro. Já fazia quatro dias do desaparecimento de sua caçula, mas ela rezava para esse caso não ser mais um dos diversos números estatísticos de violação sexual dos órgãos públicos.
O sistema de garantia de direitos do RN, assim como de todo o país, vem agindo há anos de formas isoladas, o que acaba prejudicando o fortalecimento de uma rede de proteção. Na perspectiva ideal, há um consenso em que deve haver uma integridade entre os diversos setores públicos (como Assistência Social, Saúde e Segurança Pública), mas na realidade não é o que ocorre.
Só para se ter uma ideia, a DCA, a Secretaria Municipal de Trabalho e Assistência Social de Natal (Semtas), o Conselho Municipal das Crianças e dos Adolescentes de Natal (Comdica) e o Disque 100 não têm uma unanimidade quanto aos dados estatísticos contabilizados. Com índices estaduais, a DCA aponta 333 casos de violência sexual em 2018 e o Disque 100 313 (vale salientar que a Delegacia inclui dados do Disque 100 e de outros órgãos); e com os números de Natal, a Semtas apresenta 51 casos acompanhados pelos Centros de Referência Especializados de Assistência Social (Creas) e o Comdica 49 casos relatados por Conselhos Tutelares das zonas da cidade (excetuando o da Região Norte, que ainda não atualizou seus dados de 2018). Ou seja, há uma desordem nas estatísticas dos casos no RN, pois muitos números não batem, são repetidos ou não são contabilizados.
“Os dados da saúde são diferentes dos dados que se tem na assistência social, que, por sua vez, são diferentes da educação. Por isso que nunca temos um diagnóstico exato de qual é o perfil da violência sexual no Rio Grande do Norte, ou no Brasil”, destaca Gilliard Medeiros, psicólogo da ONG Centro de Defesa das Crianças e dos Adolescentes (Cedeca) Casa Renascer.
Ele ainda ressalta que essa falta de integridade acaba comprometendo as ações de assistência às vítimas. Maria, que disse ter sido orientada pelas outras delegacias para esperar um tempo para depois realizar um Boletim de Ocorrência (BO), mesmo após ter relatado o desaparecimento da filha, ainda não tinha recebido nenhum auxílio psicológico até o momento. Nem sua filha de 19 anos, que também havia sido capturada junto com a irmã, mas conseguiu escapar.
E a ausência de uma assistência já parecia afetá-la. Minutos depois de uma agente da polícia tê-la atendido, ali mesmo na minha frente, a mãe caiu em lágrimas por não saber mais qual caminho deveria tomar para poder salvar sua caçula. “Vi fotos dela com marcas de chupões no pescoço. Não sei mais o que fazer”, lamentava.
Da subnotificação à demanda reprimida
Riane Feitosa, psicóloga clínica da Semtas e membro do Observatório da População Infanto-Juvenil em Contextos de Violência (Obijuv), explica que além desses números desordenados do poder público, ainda há um entrave para se ter um verdadeiro diagnóstico do problema: a falta de denúncia das pessoas por medo.
“Nunca os dados da violência sexual condizem com a realidade, porque existe um tabu muito grande, existe um medo. Alguns casos de violência só são revelados após anos, então as pessoas não querem mais tocar nesse assunto, não querem mais falar”, ressalta.
Uma pesquisa realizada pelo Ipea, com dados do Sistema de Informação de Agravos de Notificação (Sinan) estima que, em 2011, no mínimo 527 mil pessoas foram estupradas no Brasil. Entretanto, desses casos, apenas 10% chegaram ao conhecimento da polícia. Esse problema é agravado quando há uma falta de políticas públicas para acompanhar e investigar.
Exemplo disso é a DCA, que tem apenas uma sede no RN, localizada na capital. Nela, são sete agentes da polícia (atualmente, dois estão afastados por licença), um escrivão, dois estagiários e uma delegada, para atuar em todo o estado. “Como é que cinco policiais e uma delegada vão dar conta de todo o estado? E para coisas simples, como é que eles vão sair de Natal e investigar um caso em Pau dos Ferros?! É humanamente impossível”, afirma Gilliard Medeiros.
Delegacia da Criança e do Adolescente tem um quadro ínfimo de agentes investigativos para atuação em todo RN. Foto: Kennet Anderson/Brasil de Fato RN
O mesmo ocorre com os conselhos tutelares da capital potiguar. Com um sistema subnotificado, Riane Feitosa informa que em cada um desses órgãos há em média cinco conselheiros para atender toda uma região administrativa. “Cinco pessoas é muito pouco para dar conta do trabalho e eles não conseguem alimentar o sistema como é o idealizado”.
Se há poucas pessoas trabalhando, há poucos casos para serem acompanhados. É o que explica a assistente social do Cedeca Ana Carolina: “O Creas diz que há uma demanda reprimida. Eles estão com tantos casos que não conseguem acompanhar novos. A quantidade de equipe não consegue suprir”, afirma.
As campanhas
Segundo o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), que completa 29 anos neste 13 de julho, a violência sexual ocorre quando alguém com maior poder se utiliza do corpo de um menor de idade para fins sexuais. A violência, por sua vez, divide-se em abuso (que é a violação do direito à sexualidade, podendo ser com ou sem toques) e em exploração (que se enquadram as trocas mercadológicas, a exemplo da prostituição, tráfico para fins de exploração, turismo sexual e pedofilia).
O 18 de maio, Dia Nacional de Combate ao Abuso e à Exploração Sexual de Crianças e Adolescentes, é uma das principais campanhas que enfatiza a necessidade da denúncia e do combate aos tipos de violência sexual. Entretanto, com dados incertos sobre as violações, os profissionais do Cedeca avaliam que, atualmente, as campanhas vêm se restringindo somente ao 18 de maio. “Se eu digo que o número está diminuindo, teoricamente eu invisto em menos campanhas para o enfrentamento”, afirma Ana Carolina.
“Quando discutimos o 18 de maio, 90% dos municípios daqui do RN citam abuso e exploração, mas efetivamente ninguém trata da exploração sexual. A gente fala do abuso, sobre sua prevenção e formas, mas quando é sobre a exploração sexual, muitas vezes não se tem nem dados”, ressalta Gilliard Medeiros.
Em um balanço sobre violações de direitos humanos em 2018, realizado pelo Disque 100, algumas categorias são apresentadas quanto à violência sexual contra crianças e adolescentes no RN. Das 313 violações registradas, 258 são de abusos, 54 de exploração (não especificada quais os tipos) e 1 de sexting (divulgação de conteúdos eróticos e sensuais através de celulares). Entretanto, as subcategorias da exploração, a exemplo do turismo sexual, do estupro ou da pornografia infantil, aparecem sem nenhuma notificação.
Esses fatos, contudo, deixam dúvidas aos especialistas quanto à realidade potiguar. A assistente social do Cedeca diz que já chegou a denunciar, inclusive para o Disque 100, um ponto de exploração sexual localizado no bairro do Alecrim (Zona Leste de Natal) e que não é difícil de encontrar outros pela cidade. “A violência está voltando para pontos de rua”.
Enquanto o sistema de garantia de direitos ainda esteja um pouco distante de atuar em sua perfeita condição e os dados contabilizados em uma desordem estrutural, o que resta à sociedade é voltar sua confiança às redes de proteção. Em sua única esperança, Maria, que, depois mais calma, esperava a internet da DCA voltar para finalmente prestar seu BO, se recordava dos sonhos da filha: “ela quer ser policial civil”.
Edição: Marcos Barbosa