Música

Tiquinha Rodrigues: "Minha origem é o erudito, mas meu lugar é o popular"

Cantora, compositora e instrumentista, Tiquinha fala sobre sua trajetória musical

Brasil de Fato | Natal (RN) |
Tiquinha conta sua história na música e reflete sobre política cultural
Tiquinha conta sua história na música e reflete sobre política cultural - Luana Tayze / Som sem Plugs

Tiquinha Rodrigues não passa despercebida em nenhum lugar. Chama atenção com sua cabeleira vermelha e armada, como diz o samba de coco Brilhantina que ela vive a cantar: “meu cabelo é marombado, só bota banha de cheiro”. Multiartista, Tiquinha toca violino na Orquestra Sinfônica do Rio Grande do Norte e canta, compõe e toca rabeca no grupo Rosa de Pedra e agora no seu trabalho individual Giros in Solo.
Em seu repertório, Tiquinha reúne músicas autorais, populares, manifestações dos mestres brincantes, das tradições e crendices do terreiro. Famosa por seu “griteiro”, maneira que nomearam sua forma de cantar, ela tenta valorizar o canto no seu modo popular, que vem das rodas de coco e das lavadeiras. Em contrapartida, na Sinfônica ela toca grandes obras da música clássica, permeando do erudito ao popular. Além disso tudo, ela já fez participações como atriz em diferentes espetáculos, experimentos e filmes. Confira sua entrevista ao Brasil de Fato:
Brasil de Fato: Como se deu sua aproximação com a música?
Tiquinha Rodrigues: Eu e minha família morávamos no bairro da Cidade da Esperança. Éramos quatro irmãos. Em janeiro, lá pelos anos 1980, era férias e minha mãe disse que não queria ninguém em casa, que a gente arranjasse o que fazer. Aí tinha o Centro Social Urbano da Cidade da Esperança que oferecia cursos de férias, entre eles o de música. Então fomos todos nos matricular. Eu podia ter feito curso de costura, virado costureira, artesã, mas me matriculei no de música. Então no início a música veio como algo só para me ocupar, apesar da minha família ser muito musical, de meu pai sempre ter nos oferecido boa música. Mas como eu cheguei na música foi assim, dessa forma. Depois o NAC [Núcleo de Arte e Cultura] da UFRN [Universidade Federal do Rio Grande do Norte], criou um projeto na Cidade da Esperança, no qual muitos músicos que hoje compõem a Orquestra Sinfônica fizeram parte dele, inclusive o atual diretor [o músico Luis Antônio Paiva]. Então naquele bairro, famoso por ser habitado por marginais de alta periculosidade na época, como Paulo Queixada, eu aprendi a tocar e fui levada à Escola de Música, onde me tornei estudante e profissional.
Você dialoga com o erudito e o popular. Como se dá essa travessia?
Lá na Cidade da Esperança eu comecei com a musicalização, até que me apresentaram o violino. Eu criei logo uma relação com ele, aquela coisa encantadora, bonita e fui em direção a esse instrumento. Então eu fiz o curso técnico de violino na Universidade. O violino para mim significa a técnica, é um instrumento que até hoje estudo. Porque o músico é como um atleta, todo dia precisa estar em contato com a música, como se fosse um esportista mantendo a forma física. O violino me proporcionou ser concursada pública pela Orquestra Sinfônica e para mim esse espaço é lindo, mágico, grandioso. Ter contato com a música clássica, com as grandes obras, é algo de uma dimensão, de uma importância... Mas dentro de casa eu cresci ouvindo música brasileira, Luiz Gonzaga, Jackson do Pandeiro, Maria Bethânia, Maysa. Então a música popular estava na minha formação. Eu estava na Sinfônica, até que me chamaram para substituir um componente da banda Brebotê, que era formado por uma galera do teatro, vinda do grupo Tambor. E nessa história eu fui para o universo da cultura popular, eu me reconectei com esse lugar, que é muito orgânico, que é meu. É nesse lugar me reconheço a todo instante. A partir daí eu me senti chamada para a rabeca, para o teatro, para os terreiros, para o cantar. Sobre esse diálogo, eu me utilizo da técnica do violino na minha rabeca, mas cada instrumento é particular, tem sua afinação, melodia, seu canto. Posso dizer que minha origem é o erudito, mas meu lugar é o popular.
Nos últimos dois anos você embarcou numa carreira solo, como tem sido essa experiência?
Durante o processo da [banda] Rosa de Pedra, eu comecei a me permitir, a ir aos palcos, a ir à cena, a fazer espetáculos. Cada vez eu queria estar mais nesse espaço e houve um hiato da banda, cada um dos músicos foi se dedicar a outros projetos. Também existia uma certa cobrança do público, que gostava da minha performance no palco, e dentro de mim. Porque ao mesmo tempo que há medo em levar um trabalho solo há a pergunta “por que não?” se é o verdadeiro em mim, se é minha história. Aí eu já vinha com essas intenções, mas faltava coragem, até que [o poeta e produtor cultural] Thiago Medeiros me chamou para fazer um show no [sarau] Insurgências Poéticas, em Nalva Melo Café Salão. Foi aí que eu pari o Tiquinha “Giros in solo”. Esse foi o nome que dei ao show, porque era um giro novo, era um nascer. Junto comigo veio Toni Gregório, no violão e na produção musical, e Kleber Moreira, que também é outro parceiro nas composições e criações. No primeiro dia foi maravilhoso e como uma cria esse projeto vem amadurecendo.
Agora, depois de dois anos que eu sinto ele maturar. Já girei com ele por Natal, Parnamirim, Mossoró, Fortaleza. É um trabalho que eu trago os pontos de jurema, que são canções que eu passei a vida ouvindo com minha mãe dentro de casa, como uma canção de ninar, trago cocos de metres que eu tenho admiração, composições que eu faço diante de situações com minha mãe, como “Mamãe quer passear”. E aí eu to me experimentando nisso, lancei duas músicas que estão em tudo que é plataforma digital e um videoclipe. Aí eu acho que esse trabalho é fé, cria, permissão, verdade.
Você lançou duas músicas inéditas esse ano e se prepara para lançar um EP (disco curto) do Giros in Solo. O que o público pode esperar dessa produção?
Esse trabalho está em gestação. Ele não é apenas sobre coco, jurema... É sobre minha pessoa, onde estou hoje. Então tem outras influências, de ritmos caribenhas, de fardos. Daqui a pouco pode sair um tango. O importante é que saia de dentro, que seja verdadeiro. Não quero algo que saia bem na foto, eu quero algo que saia do meu útero. Porque, por exemplo, eu tenho um pé no terreiro, mas tem o meu lado de mulher, que talvez queira passear numa música mais latina, mais cigana, de buscar uma sensualidade rítmica e musical. Tá tudo junto e misturado no que é ser mulher, que é ser sagrado, se permitir. Por isso pode ser que amanhã eu esteja fazendo outra coisa, algo que me preencha, que me faça fazer valer estar nessa luta também, fazer esse enfrentamento. Esse projeto é um lugar de afirmação também. De acreditar que esse é um espaço que eu também posso conquistar.
Há pouco tempo, os artistas potiguares lançaram um manifesto pedindo políticas culturais reais para a cidade de Natal. Como você avalia os incentivos do poder público à cena artística potiguar?
Nós necessitamos urgentemente abrir um caminho de diálogo com o poder público. Minhas últimas duas produções [lançamentos do trabalho solo] foram feitas com meus próprios recursos. Agora o produto tá pronto. Mas o que fazer? Como manter? Como circular com ele? Como artista o que eu mais quero é circular, apresentar meu trabalho. Onde fazer isso? Em Natal, são poucos os espaços públicos para exibição. Há poucos dias, no São João, a Prefeitura distribuiu sua verba de forma desrespeitosa para com quem trabalha diariamente, o ano todo, com cultura nessa cidade. Eu espero que a gente construa esse caminho com esses manifestos, com essas articulações, para encontrar soluções, direcionamentos, para que as políticas públicas cheguem até nós. Com a verba gasta poderíamos ter São João para todo mundo. O que a gente precisa é de respeito, sabia? Poder produzir e mostrar nosso trabalho com dignidade. No âmbito estadual também temos problemas. A Sinfônica, por exemplo não tem concurso há 15 anos. Os músicos estão envelhecendo, se aposentando. Daqui a pouco não poderemos ser mais uma Sinfônica por falta de músicos. Muitos que temos agora são pagos com bolsas de instituições privadas. Mas não deveria ser assim. A Sinfônica é um bem público.

Edição: Marcos Barbosa