Há tempos o setor empresarial cobiça administrar os recursos destinados à educação pública brasileira, particularmente porque nos últimos 30 anos os diferentes governos aprovaram leis que obrigam os entes federativos (Municípios, Estados, Distrito Federal e União) a destinar percentagem para os diversos sistemas de ensino. Porém, a Constituição de 1988 e a Lei 9.394/1996 (Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional, LDB/EN) estabeleceram alguns limites para a atuação da iniciativa privada na gestão do dinheiro voltado à manutenção e desenvolvimento da educação pública.
Na década de 1990, em plena ascensão do ideário neoliberal, o empresariado avançou sobre o campo educacional por meio, sobretudo, de parcerias entre os setores público e privado -- marcadas, em muitos casos, pela atuação de Organizações Não Governamentais (ONGs). Exemplo típico dessa investida é a interrupção na expansão das Instituições Federais de Ensino Superior (IFES), transferindo essa responsabilidade ao setor privado e, consequentemente, propiciando a proliferação de faculdades particulares em diferentes lugares do país.
Mas a intenção última de neoliberais dos anos noventa era gerir diretamente os recursos destinados à educação pública. A título de ilustração, pode-se mencionar a mal sucedida tentativa de fomentar o ensino profissional a partir de parcerias entre entes federativos (Municípios e Estados), sindicatos/associações e o setor industrial, com a utilização direta de recursos governamentais para promover formação técnica de nível médio.
Nesse mesmo período, institutos e fundações educacionais ligados ao setor privado (e mantidos inicialmente através de isenção fiscal) foram constituídos com o intuito de auxiliar a difícil travessia da educação brasileira em busca de melhorar o processo de ensino aprendizagem e, ao mesmo tempo, abocanhar parte dos recursos destinados aos diferentes sistemas de ensino. Nos últimos anos, as propostas dessas entidades sem fins lucrativos avançaram, sobretudo, nas redes municipais (responsáveis pelos Ensinos Infantil e Fundamental), adotando práticas bem parecidas: desenvolvem expertise sobre determinada etapa de ensino; ofertam, gratuitamente, assessoria educacional a municípios e estados; após um período, atrelam a continuação desse apoio pedagógico ao pagamento de vultosos valores.
Em um período relativamente curto, essas entidades passaram a determinar os rumos das políticas educacionais de diferentes entes federativos (principalmente dos sistemas municipais) a partir da apresentação de dados, práticas e modelos internacionais considerados confiáveis para resolução da questão. Ao mesmo tempo, essas entidades sem fins lucrativos não dependem mais dos recursos financeiros das grandes organizações privadas que as criaram -- são verdadeiros cases de sucesso.
Nos governos de Luiz Inácio Lula da Silva (2003-2010) e Dilma Rousseff (2011-2016) esse processo perdurou, vide o Programa Universidade para Todos (Prouni) e o Programa Nacional de Acesso ao Ensino Técnico e Emprego (Pronatec) -- com a diferença de que neste período as instituições públicas (educação básica e ensino superior) assistiram a um real crescimento.
Com o golpe parlamentar de 2016, a iniciativa privada agitou-se novamente e pressionou o então governo federal para facilitar o abocanhamento dos recursos públicos voltados à educação. A reforma do Ensino Médio (Lei 13.415/2017) possibilitará, entre outras coisas, a atuação escancarada das entidades particulares, especialmente por meio dos conhecidos institutos e fundações, na gestão dos recursos públicos e determinação dos rumos pedagógicos dessa etapa de ensino. Assim, o círculo da educação brasileira estava quase fechado: ensinos infantil, fundamental e médio condicionados à gestão financeira e ao interesse da iniciativa privada. Faltava apenas o ensino superior.
Com o crescimento vertiginoso dessas instituições nos governos Lula e Dilma e, consequentemente, das verbas destinadas à educação (de 50 bilhões em 2005 para quase 150 bilhões em 2016), o empresariado (agora não somente o brasileiro) passou a cobiçar a participação na gestão e determinação pedagógica das IFES. Todavia, essa incursão seria mais difícil devido à relativa autonomia, garantida pela Constituição de 1988 e ratificada na LDB/EN de 1996; e a atuação crítica das universidades e institutos federais (estes últimos formados em 2008 com status de universidade). Para isso, far-se-ia necessária uma mudança estrutural, que a atual equipe do Ministério da Educação (MEC) denominará revolucionária.
A crise econômica, acentuada com o golpe de 2016, aprofundou o déficit das contas públicas e serviu de justificativa para a aprovação da Emenda Constitucional n. 95 que determinou o teto dos gastos públicos. Não bastasse esse estrangulamento do setor público de maneira geral, os sucessivos cortes e contingenciamento no orçamento da educação inviabilizaram as IFES, provocando o lamentoso anúncio de que algumas universidades e institutos não terão recurso para funcionar até o final de 2019.
Nesse contexto, o Ministério da Educação (MEC) apresentou na última quarta-feira (17) o programa Future-se, anunciado como salvaguarda econômica aos institutos e universidades federais, e que levará à autonomia financeira das IFES. Na realidade, o Future-se, um plano confuso e pouco detalhado (por isso fica difícil uma análise mais aprofundada), transforma os institutos e universidades em reféns do mercado, pois atrela o funcionamento e desenvolvimento daqueles à lógica deste.
O Future-se, ou pelo menos o que fora divulgado até aqui, está divido em três partes: 1) Gestão, Governança e Empreendedorismo; 2) Pesquisa e Inovação; e 3) Internacionalização. Na prática propõe transferir a administração dos recursos das IFES para Organizações Sociais (as OS), transformar o professor em um empreendedor e criar um fundo econômico a partir do patrimônio dos institutos e universidades.
Uma das características das IFES é a relativa autonomia em relação aos ditames políticos e o humor do mercado. Conforme consta nos seus estatutos, estas se constituem em autarquias federais, vinculadas ao Ministério da Educação, detentoras de autonomia administrativa, patrimonial, financeira, didático-pedagógica e disciplinar. Essa particularidade possibilitou, até o momento, o desenvolvimento de experiências acadêmicas que contradizem, em alguns casos, a vontade de governantes (inclusive criticando governantes de diferentes matizes ideológicas) e volatilidade do chamado interesse do mercado.
Além de cursos de excelência e condições dignas de trabalho, as IFES oferecem condições materiais para os seus estudantes se formarem, como auxílio estudantil e apoio pedagógico. Desse amálgama saíram diferentes profissionais que se destacaram na sociedade brasileira, contribuindo para o desenvolvimento do país. Assim, ao contrário do que o MEC menciona, é a relativa autonomia a interesses externos que permite aos docentes dessas instituições realizarem trabalhos respeitados no mundo todo e que contribuem para a melhora do Brasil.
Utilizando-se da justificativa de que os reitores brasileiros são “verdadeiros heróis” – pois se preocupam em gerir financeiramente os institutos e universidades federais no lugar de somente se dedicarem à expansão e ao aperfeiçoamento do ensino, pesquisa e extensão –, o MEC indica que acabará com essa relativa autonomia quando propõe transferir a função de administrar o recurso dessas instituições para as OS, as entidades privadas sem fins lucrativos. Para isso, o governo Bolsonaro flexibilizará a Lei 8.666/1993, que rege a utilização dessas verbas. Portanto, além de sugerir que os reitores e equipe são incompetentes para administrar a máquina pública, o atual governo cria poros (largos) que permitem a tão sonhada transferência do erário para a iniciativa privada (sem fins lucrativos) sem a rigidez de um órgão público. Essa experiência não é nova, vide os exemplos na área de saúde e as conhecidas denúncias de desvios de dinheiro.
Para garantir a adesão do corpo docente ao programa, o MEC apresentou a seguinte cantilena: propõe transformar o professor em um empreendedor, responsabilizando-o pela captação de recursos para a sua respectiva instituição e suplemento do seu próprio salário. Ou seja, torna o docente uma espécie de vendedor de produtos acadêmicos. É isso mesmo! Para o MEC um professor em Regime de Dedicação Exclusiva (RDE) poderá se dedicar a captar dinheiro e ficar com boa parte dele. E até o momento o governo não problematizou que as atividades de ensino, pesquisa e extensão, tripé das IFES, serão prejudicadas pois professores em RDE utilizarão boa parte do seu tempo para buscar recursos externos.
De maneira contraditória, o Future-se retira a possibilidade de reitores e equipe (quase sempre docentes) gerirem os recursos destinados às IFES, mas atribui “competências e habilidades” aos mesmos professores para garimpar recurso na iniciativa privada, agora motivados pela retenção de parte de verba conquistada. Na apresentação do programa, o representante do MEC chegou a mencionar que: “A gente está fazendo do cargo de professor universitário o melhor emprego do Brasil. Ele vai ter o salário dele garantido e toda receita própria que ele conseguir captar vai ser dele. Vai ter natureza privada desde que ele exporte o que a gente tem de melhor, que é o conhecimento.”
Outro corpo estranho à dinâmica dos institutos e universidades federais é o estabelecimento de um Fundo privado (negociado na Bolsa de Valores) que financiará projetos acadêmicos que se mostrarem viáveis para o chamado mercado. Além de inúmeras dúvidas devido à incompletude da proposta, uma questão se destaca: e os projetos que não despertarem interesse por parte do mercado, ou seja, que não forem avaliados como lucrativos, serão financiados?
Durante a apresentação o representante do MEC recorreu, mais de uma vez, ao termo sistêmico para mencionar que o programa engloba todas as particularidades das IFES. Entretanto, quando debruçamo-nos sobre o Future-se não identificamos facilmente a atuação dos cursos de Licenciatura de maneira geral e de Ciências Humanas em particular. Da forma exposto, o programa transmitiu a impressão que foi construído somente para alguns departamentos e tem, como um dos seus objetivos, a regulamentação e expansão de atividades financeiras desenvolvidas por docentes em Regime de Dedicação Exclusiva.
O Future-se, aproveitando-se de uma crise econômica acentuada em 2016, propõe uma suposta autonomia financeira às IFES que, na prática, significa a dependência ao mercado de capitais e a submissão à lógica administrativa da iniciativa privada por meio da concessão às Organizações Sociais da gestão dos recursos públicos. Na realidade, é uma privatização por dentro dos institutos e universidades federais, submetendo ao empresariado a tão sonhada verba destinada ao ensino superior.
Para aqueles que pensavam que o setor privado se contentaria com a proliferação do sistema de capitalização expandido a partir da Reforma da Previdência, do controle das verbas carimbadas para os setores de saúde e ensino de alguns estados e municípios se enganaram, parte do empresariado cobiça gerir -- recorrendo à máxima de que o problema das contas públicas é de gestão e não de falta de recurso, todo o Estado brasileiro.
* Rogério de Souza é professor do Instituto Federal de São Paulo (IFSP).
Edição: Daniel Giovanaz