Para começar essa reflexão sobre a configuração da participação social no atual momento de nosso país, um alerta de Jean Baudrillard: "Assim surge a simulação na fase que nos interessa: uma estratégia de real, de neo-real e de hiper-real. Que faz por todo o lado a dobragem de uma estratégia de dissuasão."
A estratégia atual de dissuasão combina negações com simulacros, que buscam criar uma imagem, um "neo-real", acerca da gestão pública e de sua necessária participação e controle social, como previsto na Constituição Federal.
A candidatura do Brasil à Comissão Interamericana de Direitos Humanos da ONU é parte dessa estratégia, de rupturas e simulacros.
O simulacro é a candidatura em si, em um momento onde as ações concretas são de rupturas com uma agenda construída em diversos governos e, principalmente, nos compromissos constitucionais referentes às pautas de direitos humanos.
O presidente Jair Bolsonaro em seu diário oficial, o Twitter, deixa a nu as intenções do governo com essa candidatura, ao afirmar: "As principais pautas estão ligadas ao fortalecimento das estruturas familiares e a exclusão das menções de gênero”. Isso deveria destruir a simulação, mas não é o que ocorre, pois a eficácia do simulacro é a criação da representação da coisa, não é a coisa em si. Racionalmente poderíamos dizer que quem vai para uma representação de direitos humanos vai defender os direitos humanos, mas definitivamente não é o caso.
Não à toa, enquanto a área de Direitos Humanos e temas sociais do Ministério das Relações Exteriores, em reunião plenária do Conselho Nacional de Direitos Humanos, afirmava que era uma agenda de continuidade e de afirmação dos direitos humanos, expedia-se no país o decreto 9.759, de 11 de abril de 2019. É tudo simulação, fica apenas a casca dos conselhos, onde nem de longe ocorre participação e controle da sociedade na elaboração e execução das políticas públicas.
Ao analisar o conjunto de decretos, de recriação de conselhos e os que não foram nem recriados até o momento, a marca geral é a combinação dialética entre simulacros-rupturas.
Conselhos recriados
Conselho Nacional de Combate à Discriminação LGBTI: O decreto 9.883 que transformou o Conselho Nacional LGBT em órgão, com objetivo de proteger os direitos das “minorias étnicas e sociais, e das vítimas de violência, de preconceito, de discriminação e de intolerância”, não cita uma só vez as populações lésbica, gay, bissexual, travesti, de pessoas transsexuais e intersexuais.
Conselho Nacional da Pessoa Idosa: O decreto 9.893 cassou o mandato da atual presidente e demais conselheiras escolhidas em processo eleitoral; a presidência foi usurpada e designado o secretário Nacional de Promoção e Defesa dos Direitos da Pessoa Idosa do Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos; a escolha das conselheiras da sociedade civil passou de eleições a um processo seletivo, coordenado pelo Ministério da Mulher, Família e Direitos Humanos.
Conselho Nacional de Drogas: O decreto 9.926 retirou todas as representações da sociedade civil, tanto na área de pesquisa, quanto de conselhos profissionais e entidades.
Conselho Nacional de Economia Solidária: Apesar, de o Conselho estar na estrutura administrativa do Ministério da Cidadania, previsto na Lei 13.844/19, até o momento não se reuniu, não houve qualquer menção ou contatos com conselheiros e conselheiras. A proposta enviada à Casa Civil de reestruturação do Conselho, também não foi comunicada ao colegiado.
Sem escape
E mesmo aqueles conselhos que não foram aparentemente atingidos pelo decreto 9.759 não escapam da dinâmica simulacro-ruptura.
No Conselho Nacional de Assistência Social, todas as comissões permanentes foram transformadas em temporárias.
Não estão ocorrendo as reuniões permanentes do Conselho Nacional da Criança e do Adolescente, conforme previsto em seu regimento interno, e as reuniões convocadas pela presidência - do Ministério da Mulher, Família e Direitos Humanos - não prevê o financiamento dos conselheiros da sociedade civil.
Já no Conselho Nacional do Meio Ambiente foi impedida a participação de conselheiros suplentes, por meio de seguranças particulares. Houve usurpação dos mandatos de conselheiros e conselheiras, uma redução drástica da representação da sociedade civil, e a escolha agora foi transformada na “roda da esperança”. Um sorteio! Diversas entidades que estavam no sorteio afirmaram não ter sido avisadas pelo ministério.
O simulacro-ruptura também se manifestou sobre o Mecanismo Nacional de Prevenção e Combate à Tortura (MNPCT), por meio de dois decretos.
O decreto 9.831, de 10 de junho de 2019, que exonerou todos os peritos do MNPCT, violando o Protocolo Facultativo à Convenção contra a Tortura e Outros Tratamentos ou Penas Cruéis, Desumanos ou Degradantes (OPCAT), em especial no que se refere aos artigos que tratam da necessidade de visitas regulares feitas por órgão autônomo e independente.
Já o decreto nº 8.154, de 16 de dezembro de 2013, que regulamentou o funcionamento do Sistema Nacional de Prevenção e Combate à Tortura, a composição e o funcionamento do Comitê Nacional de Prevenção e Combate à Tortura, é reorganizado pelo decreto 9.831, que em seu Art. 10 § 5º estabelece que: “a participação no MNPCT será considerada prestação de serviço público relevante, não remunerada”. Reconduzindo os peritos que agora são voluntários.
CIDH ONU
É neste cenário que se desenha a candidatura brasileira na CIDH/ONU. Uma candidatura que, em sua carta de compromissos voluntários e em seus discursos públicos, afirma estar afinada com a constituição e os tratados internacionais, mas, na prática do governo e de seus porta-vozes, a agenda é de ruptura e de retrocessos.
Como afirmou o presidente, em 22 de julho, ao ser questionado sobre as mudanças no Conselho Nacional de Drogas: “Nós queremos enxugar os conselhos, extinguir a grande maioria deles para que o governo possa funcionar. Não podemos ficar refém de conselhos (...)”.
O simulacro-ruptura tem o propósito de dar resposta dual ao paradoxo do atual governo, ser um governo eleito democraticamente, e sobre uma constituição cidadã, com uma base social ultraconservadora.
Essa dualidade representa um equilíbrio instável que busca responder a uma base social de ultradireita, com traços fascistas e fundamentalistas num simulacro de normalidade institucional.
Unidade na diversidade
O simulacro precede o real, produz narrativas, independentemente se no real ela se negue. Lembrem do discurso anti-globalista, da negação da ONU e da União Europeia, apesar de em ambos os casos o real ter se imposto. Na narrativa, na construção dos sentidos, o simulacro se impõe e disfarça o real. Uma ruptura-simulacro que se inverte segundo as conveniências das narrativas.
Chegamos a pensar que se trata de uma enorme distração, que nos põem a todas e todos a fingir e a fazer coisas que não são fazeres, mas que ocupam nossas horas, nossas mentes e emoções. Curiosamente a turmas “deles” também se ocupa, e a falsa normalidade se impõe, enquanto as instituições democráticas não são propriamente destruídas, mas substituídas por réplicas.
Num cenário de simulacros-rupturas, as denúncias, os discursos são de baixa eficácia, o que se trata é construir afetos, relações, pontes ou, como se dizia antigamente, frentes democráticas, onde a pluralidade não seja problema, não seja mais um obstáculo para a coerência-totalizante. Seja sim uma potência para a unidade na diversidade, produtora de novas narrativas, um resgaste do sentido da democracia, que possa tocar, fazer sentir, onde os simulacros desmanchem no ar.
Ou isso, ou crer no ouro falso, o Ouro de Tolo em que Raul Seixas traduz aqueles anos de 1973: “E você ainda acredita /Que é um doutor / Padre ou policial / Que está contribuindo / Com sua parte / Para o nosso belo / Quadro social ...”
* Leonardo Pinho é presidente do Conselho Nacional de Direitos, da Unisol Brasil e vice-presidente da Associação Brasileira de Saúde Mental.
** Rogério Giannini é presidente do Conselho Federal de Psicologia e integra o Conselho Nacional de Direitos Humanos.
Edição: Cecília Figueiredo