Entidades que tinham assento no Conselho Nacional de Políticas sobre Drogas (Conad) repudiaram a decisão do presidente Jair Bolsonaro (PSL) de excluí-las do órgão, para o qual indicavam médicos, psicólogos, enfermeiros, assistentes sociais, juristas e outros profissionais ligados ao tema.
Criado em 2006 no governo do presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT), o Conad era formado por 31 membros, sendo 17 do governo (ministros ou indicados) e 14 da sociedade.
Com a mudança, publicada no Decreto 9926, o governo assume 85% das vagas. Perdem assento a Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), o Conselho Nacional de Educação, a Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC), a União Nacional dos Estudantes (UNE) e os conselhos federais de Medicina, Psicologia, Serviço Social e Enfermagem.
Além de excluir a participação social do debate, o decreto proíbe tornar públicas as discussões do Conad sem autorização prévia.
Desvio de tratamento
“Onde fica a questão da transparência? As drogas não vão ser eliminadas do Brasil porque se mudou a perspectiva de atuação, ou porque se está priorizando agora a guerra às drogas. Na verdade, todo mundo usa drogas no final das contas. A medicação que se utiliza no dia a dia para dormir, o ansiolítico, seu cigarro, sua cervejinha”, questiona Priscilla Viégas Oliveira, diretora da Associação Brasileira dos Terapeutas Ocupacionais (Abrato), que integra a mesa diretora do Conselho Nacional de Saúde (CNS).
Segundo a diretora do CNS, o Conselho será presidido pelo Ministério da Justiça e da Segurança Pública, o que, além de ferir a "construção coletiva", é um desvio de tratamento.
“A questão da política sobre drogas, além de toda a complexidade que envolve, ela é principalmente uma questão relacionada à saúde pública”.
Um “equívoco”, segundo ela, um tema complexo e multifatorial ficar “sob o guarda-chuva da participação governamental”.
Dos 14 integrantes do Conad, a partir do decreto, 12 serão membros com cargo de ministro ou indicados por ministério ou órgão federal, e duas vagas serão destinadas a conselho estadual e órgão estadual sobre drogas.
Dos ministros, estarão Sérgio Moro (Justiça), Damares Alves (Mulher, Família e Direitos Humanos), Paulo Guedes (Economia), Abraham Weintraub (Educação) e Osmar Terra (Cidadania), entre outros.
Cerceamento do controle social
Na opinião do presidente do Conselho Federal de Psicologia, Rogério Giannini, é o “cerceamento” do controle social, a “redução do contraditório nas ações de governo”.
O que está sendo questionado é a ideia da vigilância dos conselhos. “Tanto que parte do decreto fala em sigilo, mesmo tendo somente a participação de apenas entidades governamentais, ainda está prevista que qualquer divulgação depende de autorização”.
Ele acredita que pode haver no país uma intensificação de mecanismos repressivos, da internação indiscriminada de pessoas que fazem uso abusivo de álcool e outras drogas.
“As nossas ações de fiscalização seguiremos fazendo sem nenhum empecilho, até porque legalmente a gente tem [respaldo], mas eu não duvidaria que se criassem normas, portarias, por exemplo, impedindo o acesso [a instituições de internação]. Se isso tem validade legal, constitucional, aí já é uma outra discussão que tem a ver com pouco apego [do governo] à ordem legal que estamos vivendo. Em diversas áreas, o fato de ser constitucional ou legal não tem sido empecilho para as coisas serem decretadas e implementadas”.
Giannini lembrou do decreto 9.759/2019, de 11 de abril, que determinou a extinção de todos os conselhos, comitês, comissões, grupos e outros tipos de colegiados ligados à administração pública federal que não tenham sido criados por lei específica. O decreto foi barrado pelo Supremo Tribunal Federal em (STF) em junho, por meio de liminar a uma ação do PT. O mérito ainda não foi julgado.
Antidemocrático
Iago Montalvão, presidente da União Nacional dos Estudantes (UNE), reforça a avaliação: “o governo continua tentando aos poucos afastar os cidadãos desses espaços”.
Segundo o dirigente estudantil, a retirada de especialistas e afastamento da UNE e outras organizações prejudica a democracia, "mas também a possibilidade de um trabalho mais sério e qualificado acerca do tema”.
Os conselhos federais de Enfermagem (Cofen) e de Serviço Social (CFESS) classificaram a medida como “retrocesso no enfrentamento às drogas”.
Em nota, o CFESS disse se tratar de uma imposição “ao modelo de combate ao uso de drogas violento e punitivo, que visa trancafiar o usuário em comunidades terapêuticas que, na maioria das vezes, se parecem com manicômios que violam direitos humanos fundamentais, como já denunciamos em outras ocasiões”.
Profissionais do serviço social trabalham diariamente atendendo a população, inclusive famílias que lidam com o problema do uso de drogas, nos serviços de saúde pública. “Temos insistentemente defendido que o tratamento adequado deve ser realizado no Sistema Único de Saúde (SUS), por meio dos Centros de Atenção Psicossocial Álcool e Drogas (CAPS-AD), dos hospitais gerais e dos consultórios de rua”, acrescenta.
No documento, o CFESS denuncia ainda que “o governo aponta para o repasse de verbas públicas para instituições privadas para tratamento, sem qualquer comprovação da eficácia destas e sem qualquer controle ou monitoramento da sociedade”.
Desideologizar?
A secretária executiva da Plataforma Brasileira de Políticas de Drogas, Maria Angélica Comis, acrescenta que o decreto 9926 enfraquece o próprio governo na formulação de políticas.
“Extremamente arbitrário e pode contribuir para a desestabilização da nossa democracia. É fundamental que pessoas que atuam na política de drogas, que conversam com os usuários, façam parte do conselho, inclusive esse Conselho atualmente se tornou um comitê interdisciplinar do próprio ministério, do Poder Executivo. A gente não tem as pessoas afetadas pela política de drogas construindo a política [pública]”.
Outro aspecto que ela levanta é o discurso contraditório do governo Bolsonaro sobre a suposta "ideologização" do conselho.
“A retirada da sociedade civil, que tem posicionamento técnico diferente do posicionamento do atual governo, é basicamente uma atitude ideológica. Eles [governo] têm atitudes baseadas apenas em ideologia, sem embasamento científico diferente das posições técnicas que os conselheiros que ocupavam o Conad têm”.
Na mesma linha, a terapeuta ocupacional Priscilla Viégas também questiona as justificativas de modernização e ideologia contidas no decreto. “Nos preocupa essas justificativas. De que modernização está se falando? De que ideologia?
Na opinião da terapeuta ocupacional, o governo empunhou a bandeira da guerra às drogas, "reconhecidamente fracassada aqui e internacionalmente", que vai na contramão da Política de Redução de Danos.
As associações Multidisciplinar de Estudos sobre Drogas; de Saúde Mental - GT Álcool e Outras Drogas; e de Pesquisa e Pós-graduação em Psicologia: GT Drogas e Sociedade também assinaram nota repudiando o ataque ao Conad.
De acordo com um dos trechos do manifesto, o desmonte "denuncia a presença de interesses corporativos nas mudanças efetivadas no campo das políticas sobre saúde mental, álcool e outras drogas, usando para sua legitimação posicionamentos anticientíficos e a imposição de ideologias sem respaldo na produção científica internacional".
Ainda segundo a nota, "colocar estas mudanças no campo do 'viés ideológico' e do lobby da indústria da internação, não reconhecendo avanços nesta área, é retroceder as políticas públicas e ampliar os agravos sociais e econômicos em cascata para os Estados e municípios".
Edição: João Paulo Soares