Por Pedro Stropasolas
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De Brumadinho (MG)
A buzina irrompe na cidade do grito sufocado. É o ruído do trem da Vale que corta Brumadinho (MG). Sinal de que o minério não para, corre os trilhos em direção ao estrangeiro. Esse trem, contrariando toda uma região destruída pela mineração, não guardou luto durante os últimos seis meses. Ao contrário, o que se vê, se sente e se respira na cidade só atesta o lamento da mãe Andreza, que perdeu o filho: “O zelo pela vida não faz parte da mineração. Onde tem a mineração só sobrevive ela mesma”.
Em 25 de janeiro de 2019, por volta das 12h30, a Barragem I da mina Córrego do Feijão se rompeu em Brumadinho (MG). Construída a montante – o método menos seguro e mais barato –, a estrutura de mais de 40 anos era administrada pela Vale desde 2003. Foram identificados 248 mortos. Outros 22 corpos continuam soterrados pelos 12 milhões de metros cúbicos de rejeitos da mineração.
Este é o primeiro capítulo da série especial do Brasil de Fato sobre os seis meses do rompimento da barragem da Vale em Brumadinho. As próximas reportagens vão retratar os impactos na saúde dos atingidos, os danos nas comunidades ribeirinhas e os problemas causados pelas obras da mineradora no bairro Pires.
Passados 180 dias do rompimento, as 944 mil pessoas atingidas, em diferentes níveis de intensidade, tentam retomar suas vidas. Elas moram nos 18 municípios cortados pelo rio Paraopeba, por onde a lama correu 305 km até o município de Felixlândia (MG).
Primeiro foi o barulho da lama e da destruição. Depois, os helicópteros. Hoje, são as máquinas que não param de escavar e tiram o sono de quem sobreviveu.
Na Córrego do Feijão, onde a sede da mina operava, a comerciante Sara de Souza Silva tem a única papelaria do vilarejo. O comércio não abre desde que a barragem se rompeu. Os cadernos, mochilas e outros materiais escolares permanecem trancados, na penumbra.
Ela lamenta que a mineradora não tenha agido corretamente nem para evitar a avalanche de lama, nem para reparar os danos que causou na localidade com cerca de 400 moradores, onde 27 foram mortos na tragédia.
“É muito triste para nossa comunidade. São problemas de saúde, psicológicos, em pessoas idosas, crianças com feridas no corpo, por causa da lama, do ar. E a Vale não tem feito nada por nós”, relata a moradora, que teve prejuízo de R$ 20 mil no período de volta às aulas.
No Parque da Cachoeira, bairro que antes era reconhecido pela produção de legumes, seis hortas foram engolidas pela lama. Em cada uma delas, com média de 15 hectares de plantação, trabalhavam cerca de 10 famílias.
As hortaliças produzidas nos 18 hectares da propriedade de Adriana Leal abasteciam sacolões da capital Belo Horizonte, a 60 km dali. O trabalho na horta, ela conta, era de domingo a domingo e envolvia outras 11 famílias. Todos ficaram sem renda, sem terra para plantar e sem água para irrigar.
Ficaram as dívidas dos financiamentos e dos fornecedores. “A gente não tem mais renda para cobrir. Até para recomeçar é difícil. Tudo foi destruído. Nossa terra está totalmente coberta. O que sobrou de área produtiva a gente não consegue usar porque dependemos de água”, explica a agricultora.
A Defensoria Pública Estadual de Minas Gerais (DPE-MG) tem prestado atendimento individual às famílias atingidas desde o dia 28 de janeiro e constatado a ocorrência de vários danos em decorrência do rompimento da barragem.
Além dos prejuízos à saúde mental e física, as pessoas que não morreram com a lama perderam a moradia ou outros patrimônios. A produção local de alimentos foi toda comprometida e ninguém pode lavar sua comida, ou mesmo cozinhar, com a água que sai da torneira.
“Temos várias dificuldades com a Vale. Há relatos de funcionários muito educados, mas que não cumprem prazos. Não há respostas, as informações são confusas. Há relatos de violência nas comunidades por parte de funcionários da Vale. Também constatamos a dificuldade de acesso aos direitos já conquistados, como o pagamento emergencial. As pessoas chegam nos pontos de apoio na Vale e recebem a resposta que ela não têm direitos, quando elas têm”, explica a defensora Carolina Morishita.
Erguida às margens do rio Paraopeba, a pequena Mário Campos também tem sua economia pautada na agricultura familiar. O município deixou de ser um celeiro para a região e pode nunca mais retomar esse posto.
“As pessoas têm medo de comprar os alimentos do município. Todos acham que estão sendo regados com a água do rio”, relata Andreza Rodrigues, única vereadora – entre os nove parlamentares do município – a ter um familiar morto na tragédia.
A saudade aperta ao falar do filho Bruno, de 26 anos, um dos trabalhadores da Vale engolidos pela lama enquanto almoçava no refeitório da empresa. Só em Mário Campos, 20 pessoas morreram – um a mais que os 19 mortos após o rompimento da barragem em Mariana, em 2015.
“Eu nunca recebi uma ligação da Vale. Todos os nossos filhos saíram de casa saudáveis, com projetos de vida. E ninguém fez contato comigo, nem com as outras famílias”, conta.
A vereadora faz parte da comissão de famílias dos não encontrados, grupo criado em março, após reunião convocada pelo Ministério Público do Trabalho (MPT), na Câmara Municipal de Brumadinho. Segundo ela, a luta é para que não cessem as buscas. “Porque a dor é cada vez maior. Cada dia é uma eternidade. Nós estamos morrendo um pouco a cada dia”, desabafa.
A comissão pressiona para que sejam enviados mais bombeiros e para que o Instituto Médico Legal (IML) tenha acesso a aparelhos para reconhecimento – uma das demandas essenciais é a presença de cães nas operações de busca.
“Houve semanas sem nenhum cão, e os cães são responsáveis por mais de 90% do sucesso das buscas. Muitos adoeceram no contato com a lama e não puderam retornar. Nossa pauta é que se comprem cães de onde tiver que vir, mas os cães não podem ser fator de insucesso ou postergar o encontro das nossas joias”, argumenta a vereadora.
Cerca de 124 fragmentos de cadáveres estão no IML em processo de identificação. O mais recente foi concluído no dia 11 de junho, associado a uma vítima identificada em fevereiro. Pelo menos 30 partes de corpos passaram por várias análises de DNA sem que fosse possível finalizar o reconhecimento.
Vítimas sem reparação adequada
Eloá Magalhães, militante do Movimento dos Atingidos por Barragens (MAB) na região de Brumadinho, conta que os trabalhadores se uniram para evitar que houvesse atraso nas reparações, como no crime de Mariana (MG), em 2015.
“Primeiro, o MAB conseguiu afastar as empresas terceirizadas da Vale do processo de identificação dos atingidos”, lembra.
O MAB considerava que, se o levantamento fosse realizado por instituições públicas, sem vínculo com a Vale, seria maior a chance de garantir os direitos das vítimas do rompimento da barragem da mina Córrego do Feijão.
“Construímos comissões de atingidos dentro das comunidades para poder participar das negociações do acordo preliminar com a Vale junto ao Ministério Público e à Defensoria Pública. Esse esforço resultou na conquista do auxílio emergencial para parte dos atingidos”, completa Magalhães.
A Vale diz que tem atuado com “foco total na reparação de danos”, com ações que incluem indenizações, doações a órgãos públicos e pessoas impactadas, assistência médica e psicológica, compra de medicamentos, entre outros serviços. No total, foi investido R$ 1,5 bilhão em serviços ambientais, materiais de saúde, transporte e outros custos logísticos, segundo a empresa.
Em 30 de abril, a Vale anunciou a criação da Diretoria Especial de Reparação e Desenvolvimento, com mais de 400 funcionários, para coordenar o restabelecimento socioeconômico e ambiental dos municípios impactados.
Segundo a DPE, 98.146 pessoas recebem da Vale um salário mínimo mensal. O pagamento está previsto no Termo de Acordo Preliminar (TAP), firmado entre a mineradora e a DPE, em 20 de fevereiro. O número representa menos de 10% do total de atingidos, de acordo com o levantamento do MAB.
Acordo sob risco
Até o momento, R$ 2,3 bilhões foram aplicados em serviços ambientais, suprimentos da área de saúde, transporte e outros custos logísticos. Cerca de 256 famílias estão alocadas em moradias provisórias, hotéis, pousadas ou casa de amigos e parentes.
No dia 15 de julho, a Vale aceitou assinar junto ao MPT um acordo de indenização por danos morais às famílias de 242 vítimas fatais. Pais, filhos e cônjuges dos operários mortos receberão R$ 700 mil cada. Irmãos terão direito a R$ 150 mil.
Além disso, deverão ser pagos R$ 400 milhões a título de dano moral coletivo. Com a assinatura do acordo, a Vale conseguiu liberar R$ 1,6 bilhão de contas bloqueadas.
Trata-se da maior indenização por dano moral individual da história da justiça trabalhista brasileira, segundo o procurador Geraldo Emediato de Souza.
O acordo, porém, pode não vigorar, já que conflita com a reforma trabalhista aprovada durante o governo de Michel Temer (MDB), que restringe esse tipo de pagamento a 50 salários mínimos. O Supremo Tribunal Federal (STF) deverá deliberar sobre o tema no dia 3 de outubro.
A Vale não para
Enquanto isso, no mundo dos negócios, as atividades da Vale em Brumadinho não cessaram. Além da mina Córrego do Feijão, desativada logo do rompimento da Barragem I, a empresa possui concessão de outras quatro reservas de minérios na região: Jangada, Mar Azul, Capão Xavier e Capim Branco. São 308,5 milhões de toneladas de minério de ferro, com alto teor de pureza.
Apenas no primeiro trimestre de 2019, a Vale produziu 72,87 milhões de toneladas de ferro. Em maio, o valor da tonelada do minério atingiu US$ 100, a maior cotação em cinco anos.
A empresa é a líder mundial na produção de minério de ferro e de níquel. No período entre 2008 e 2017, acumulou um lucro aproximado de US$ 57 bilhões, quase R$ 220 bilhões. A empresa divulgou, porém, um prejuízo de R$ 6,4 bilhões no primeiro trimestre deste ano.
Quase todo minério extraído no Brasil é para exportação. Em 2018, a Vale teve um lucro líquido de R$ 25,657 bilhões, por meio da produção de 384,6 milhões de toneladas de minério.
Em que pese o esforço da empresa em expandir suas atividades para outras regiões do país, 80% de suas 133 barragens de minério de ferro estão localizadas em Minas Gerais.
Outras quatro barragens da Vale no estado já atingiram o nível máximo de perigo, em risco de rompimento iminente.
Histórico
O início das atividades na mina Córrego do Feijão se deu em 1956, por meio da Companhia de Mineração Ferro e Carvão. Desde 2003, ela é comandada pela Vale.
A barragem que se rompeu não recebia mais rejeitos desde 2015. Em dezembro de 2018, porém, após a Vale solicitar uma licença de operação, a Câmara de Atividade de Minerária do Conselho Ambiental de Minas Gerais permitiu que a empresa recuperasse o minério de ferro disposto entre os rejeitos.
Com essa alternativa, as minas Jangada e Córrego do Feijão, que possuíam capacidade de 10,6 milhões de toneladas por ano, passaram para 17 milhões de toneladas por ano, reduzindo a vida útil da barragem. A ideia da Vale era reminerar os rejeitos contidos na Barragem I e depositar as sobras na própria cava da mina.
A mina Córrego do Feijão gerava 613 empregos diretos e tinha outros 28 terceirizados em três turnos diferentes, operando 24 horas por dia. O escoamento da lama soterrou cerca de 300 hectares de terra no vale do Córrego do Feijão.
Segurança comprometida
A Lei Federal nº 12.334 que estabeleceu a Política Nacional de Segurança de Barragens (PNSB), determinando que a Agência Nacional de Águas (ANA) realize anualmente um Relatório de Segurança de Barragens (RSB), existe há menos de uma década.
Estima-se que no Brasil existam cerca de 24 mil barragens – de rejeitos, de geração de energia e para abastecimento de água. Destas, apenas 4,5 mil estão submetidas à PNSB e apenas 3% foram vistoriadas.
Quando ocorreu o rompimento em Brumadinho, a agência tinha oito servidores para fiscalizar mais de 400 barragens em todo o Brasil. Nos últimos seis meses, o governo remanejou 33 funcionários de outros ministérios para o setor de fiscalização, mas não resolveu o déficit.
Segundo a Associação Contas Abertas, que tem acesso ao Sistema Integrado de Administração Financeira do Governo Federal (Siafi), o governo realizou um bloqueio de 29% nas despesas não obrigatórias da agência.
No Brasil, a Vale extrai minério de ferro em três estados: Minas Gerais, Pará e Mato Grosso do Sul. Minas Gerais corresponde a 53% da produção.
Conforme dados da PNSB, existem 114 barragens de rejeito em todo o Quadrilátero Ferrífero, centro-sul de Minas, mais 104 estruturas não cadastradas no plano, entre diques, gabiões e barragens. Deste total, 70 têm alto dano potencial caso ocorra uma ruptura. Além das barragens, existem 56 minas paralisadas e abandonadas em Minas Gerais.
O método de alteamento a montante, utilizado tanto no reservatório I da Mina Córrego do Feijão como na barragem de Fundão, em Mariana (MG), que se rompeu em 2015, é considerado o mais barato e mais inseguro. Ele permite que o dique inicial seja ampliado para cima quando a barragem fica cheia, utilizando o próprio rejeito da mineração como parte da barreira de contenção.
No estilo convencional – ou a jusante –, o maciço da barragem é construído em solo compactado, independentemente do tipo de rejeito depositado na mesma. Os alteamentos são realizados no sentido do fluxo de água.
Em entrevista recente ao Brasil de Fato, Bruno Milanez, professor do Departamento de Engenharia de Produção Mecânica da Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF), explica o que causa instabilidade no primeiro modelo. “À medida que a barragem vai se tornando mais alta, fazendo os 'degraus' que vemos, ela tem uma inclinação, subindo sobre o rejeito. Chega um momento em que se faz a barragem sobre o próprio rejeito, um material, pelo seu teor de água, que não é muito estável”, analisa.
O deputado federal Rogério Correia (PT-MG), que propôs a desativação de todas as barragens construídas com o método de alteamento a montante no Brasil, acrescenta que a luta pela implementação de modelos mais seguros depende da pressão das ruas: “Infelizmente, já sabemos na prática a inviabilidade desse modelo de barragem, pois ele é 'seguro' até que caia, trazendo danos irreparáveis à vida humana e ao meio ambiente. Somente a mobilização popular será capaz de furar o bloqueio das mineradoras, cujo lobby tem muita influência”.
Após o rompimento da barragem de Fundão, a Vale anunciou que desativaria todas as 19 barragens desse modelo em Minas Gerais. Porém, 10 delas continuaram com rejeitos, apesar de inativas. É o caso da Barragem I, que se rompeu em 25 de janeiro. Segundo a Vale, as outras nove foram descomissionadas.
Minas Gerais é o estado que mais tem barragens com potencial de dano considerado alto: são 132 de um total de 200 catalogadas pela Agência Nacional de Mineração (ANM). A Vale e suas subsidiárias têm 59 barragens nessa categoria, incluindo as de Brumadinho.
A reportagem entrou em contato com a mineradora Vale, que disse ter apresentado às autoridades brasileiras um plano para acelerar a descaracterização das suas barragens construídas pelo método de alteamento a montante. “O plano apresentado visa descaracterizar as estruturas para reintegrá-las ao meio ambiente. O objetivo da empresa é que nos próximos três anos todas essas barragens construídas pelo método de alteamento a montante estejam descaracterizadas ou com fator de segurança adequado, sem oferecer nenhum risco às pessoas e ao meio ambiente”, diz a nota.
Desde a tragédia, o Congresso Nacional apresentou 78 projetos de lei para fiscalizar e punir mineradoras que infringirem o Código de Mineração. Até agora, nenhum teve a tramitação concluída.
FICHA TÉCNICA
Texto, vídeo e fotos: Pedro Stropasolas | Edição: Rodrigo Chagas | Artes: Fernando Bertolo e Fernando Badharó | Edição de vídeo: Marcelo Cruz | Versão para rádio: Katarine Flor | Coordenação: Daniel Giovanaz, Vivian Fernandes e José Bruno Lima | Coordenação de Rádio: Camila Salmazio