Aos poucos a Romaria vai chegando em Caicó/RN. É a população que mora no Seridó (sertão do Rio Grande do Norte e região central do estado), que se organiza em carros, motos, carroças, bois, cavalos, e até em grupos a pé, para ir ao município e celebrar uma das mais importantes festas religiosas e culturais do RN: os 271 anos da Festa de Sant’Ana, que nesta edição ocorre até o dia 28 de agosto.
A santa padroeira da região, que além de Caicó também engloba os municípios de Currais Novos e Santana do Seridó, é a responsável por unir famílias e amigos, grupos e devotos, de diferentes gerações. É o momento das famílias Medeiros, Vale, Araújo, e entre tantas outras, juntarem seus filhos, netos e sobrinhos, que saíram da cidade em busca de uma formação profissional, trocarem suas experiências de vida.
“Ontem a gente conversou com uma senhora de 80 anos que confessou que roubava cajarana no quintal de uma amiga que estava comigo!”, dizia Dodora Cardoso, famosa cantora potiguar que viveu grande parte de sua vida no município. Ela lembrava algumas dessas histórias um pouco antes de visitar o Colégio Diocesano Seridoense (CDS). A tradicional festa dos ex-alunos, neste ano, escolhia homenagear uma turma que já fazia 50 anos de formação.
Ao centro da cidade os encontros também ocorriam pelas ruas em volta do Mercado Público, da feirinha de artesanato e do lendário bar do Zeca Barrão. No mercado, as pessoas compravam roupas, calçados, brinquedos, plantas, livros e cordéis, tudo feito às mãos do povo seridoense. E, quase que para comprovar isso, mulheres bordavam panos e peças de artesanato ali na feirinha, sentadas embaixo de uma grande lona e ao som de um trio forrozeiro.
Mulheres bordam e produzem artesanato sentadas ali mesmo na feirinha. Foto: Kennet Anderson/Brasil de Fato RN.
Saindo daquela multidão de objetos, o povo se sentava nas mesas do Zeca Barrão, que comemorava mais um aniversário. O boteco, já na hora do almoço, ficava lotado de gente para experimentar um pouco dos petiscos e das comidas típicas da região: feijão verde, paçoca e queijo coalho, sempre acompanhados de uma cerveja ou de um limão com sal e cachaça (Samanaú para quem podia pagar mais). Algumas pessoas passavam horas ali lembrando do passado: sempre antes do almoço, ver a clientela do Barrão virar um copo de cachaça para “forrar” o estômago.
A fé
Durante os festejos, a missa da novena começa sempre às 19 horas. O sino da catedral toca para avisar os fiéis sobre o início da celebração. Todo mundo muito bem vestido, pois é uma honra para cada um ali estar presente a devoção de Sant’Ana. É algo que foge a vaidade, e se aproxima ao respeito pela imagem da padroeira.
Quatro telões, fora da igreja, se colocam a disposição da multidão de pessoas que não couberam ali dentro. Durante a missa, todos param para prestigiar as orações e escutar os ensinamentos do evangelho. Até mesmo os ambulantes aos arredores da Praça de Santa’Ana, que também se organizam para receber as hóstias entregues em mãos pelos sacerdotes que saem da igreja rodeados pelo cheiro de incenso.
Em dado momento começa a tocar o hino de Sant’Ana de Caicó: “vossos filhos desta terra vos suplicam que sejais o se refúgio na guerra e sua alegria na paz”. É a prece do seridoense para sanar os problemas do sertão. Uma canção que representa a resistência através da fé. “Onde é que o povo encontra tanta força para resistir as crises hídricas? Claro que houve uma série de projetos sociais, mas para o povo também tem algo do elemento da fé. A caatinga expressa a alma do sertanejo”, explicava o bispo Dom Antônio Carlos.
Vaqueiros e cavaleiros saem em marcha nas ruas de Caicó/RN em devoção a Sant'Ana. Foto: Kennet Anderson/Brasil de Fato RN.
E esses elementos de fé constroem todo povo que passou pelo menos algum tempo de sua vida ali. Exemplo das pinturas do artista plástico Henrique Araújo, que representa mãos, olhos, folhas, cores fortes, e imagens da padroeira, em suas obras, “uma homenagem a minha família”, e a sua terra; ou também da criatividade de Ronaldo Batista, o “Magão” do Bloco do Magão, que surge a partir de um protesto contra a poluição do poço de Sant’Ana, contra a elitização do carnaval na cidade e pela reconstrução da capelinha de São Sebastião.
Toda essa resistência é ainda mais representativa nas figuras dos vaqueiros e cavaleiros que saem em bando na Cavalgada de Sant’Ana. Uma passeata de cerca de seis quilômetros com mais de dois mil animais pelas ruas de Caicó. Entre acenos e gritos de “viva ao homem e à mulher do campo”, a cavalgada chega à catedral sob uma pequena chuva. É quase uma benção de Sant’Ana pela festa que, hoje, é patrimônio cultural imaterial do Brasil.
Edição: Marcos Barbosa