Por Michele de Mello
De Caracas (Venezuela) | 31 de julho de 2019
Neste mês de julho, completa-se dois anos desde que o Plano Nacional de Parto Humanizado foi aprovado pelo presidente venezuelano Nicolás Maduro como uma política de Estado que busca promover e dar condições para que as mulheres possam escolher outras formas de dar a luz. Com a medida, a Venezuela é pioneira em criar uma política pública que incentive um parto sem interferências cirúrgicas, nem medicamentosas.
Mais de 50% da população venezuelana é feminina e, entre estas, cerca de 9 milhões estão em idade fértil. Anualmente, são realizados 520 mil partos no país, segundo dados de 2014 da UNICEF.
Além disso, é um dos países sul-americanos com maior taxa de gravidez na adolescência: 23% dos nascidos são filhos de mães com idades entre 15 e 19 anos. Os outros 75% dos registros de gravidez acontecem entre 25 e 35 anos.
“É um desafio, porque representa a superação de um tema que é considerado tabu. Também a construção e um projeto de vida com essas jovens, não só construir uma sociedade justa entre iguais, senão que no âmbito particular elas possam ter um projeto, um horizonte nessa sociedade socialista que queremos construir”, afirma a médica e vice-ministra para a Mulher e Igualdade de Gênero, Asia Villegas.
O programa social busca fazer com que esses nascimentos sejam realizados respeitando as vontades da futura mãe, independente de classe social. No entanto, o Estado também cria mecanismos para que os setores mais empobrecidos da população venezuelana possam acessar o Plano.
Desde 2017, existem três bônus de apoio financeiro às mulheres: bônus de lactação materna, de parto humanizado e outro para as promotoras do Plano. Atualmente, o subsídio é de 26.600 bolívares (Bs.S), depositados mensalmente através do Sistema Pátria a aproximadamente 760 mil venezuelanas.
“Como plano, estamos aliados e de acordo de que as mulheres tenham um acompanhamento médico. Não incentivamos partos em casa, pelo menos não faz parte do Plano Nacional. A orientação é de que a gestante seja atendida de maneira respeitosa, amorosa, dentro dos centros de saúde”, conta a facilitadora de parto e coordenadora do Plano, Anabel Pérez.
A Organização Mundial da Saúde estabelece um consenso mundial de que cada país deveria ter um máximo de 10 a 15% de partos por cesárea, no entanto, na Venezuela a prática representa 52% dos nascimentos, cerca de 250 mil procedimentos por ano.
O número se mantém elevado, apesar dos altos custos da cirurgia. Numa clínica privada, uma cesárea pode custar entre mil e 6 mil dólares (R$ 4 mil – R$24 mil). No entanto, os seguros médicos nas empresas estatais cobrem procedimentos de até 250 mil Bs.S Enquanto isso, no sistema público de saúde o procedimento tem se tornado quase impossível devido à falta de insumos médicos – resultado do bloqueio econômico. As mulheres que precisam ou que optam por uma cesariana no sistema público devem comprar um kit à parte, que inclui luvas, injeções, antibióticos, gases, entre outros itens e custa em torno de 100 dólares (R$400).
Na realidade, o alto custo da cesárea é justamente um dos principais incentivos médicos para que as gestantes optem pela cirurgia. Anabel Pérez critica a mercantilização do parto e defende a humanização como a saída para conferir mais respeito ao bebê e à gestante.
“O ato, quando se converte humano e em algo natural, não depende de nada nem ninguém. É um processo natural da mulher de trazer ao mundo um ser vivo. Assim como gestá-lo, procriá-lo, são processos que todos sabemos naturalmente como executar. O transcurso social dentro do capitalismo nos fez crer que a única forma de nascer é a que conhecemos e nos esquecemos da ancestralidade”, garante.
Além de diminuir a quantidade de partos que passam por intervenções cirúrgicas, o Plano Nacional de Parto Humanizado, criado em 18 de julho de 2017, também busca combater a violência obstétrica.
“Derrotar a violência obstétrica passa por uma consciência de direitos e uma consciência do desafio da paz”, afirma a vice-ministra, Asia Villegas.
Segundo a Organização Mundial da Saúde, por dia, morrem 830 mulheres no mundo por causas relacionadas à gravidez e ao parto possíveis de evitar, como infecções, hemorragias e hipertensão.
Em 2016, a mortalidade materna na Venezuela aumentou 65%, representando 756 mortes, segundo dados do Ministério de Saúde. Enquanto a mortalidade neonatal subiu 30% no mesmo ano, totalizando 11.466 falecimentos.
É o caso de Dília Ortiz, professora e atualmente formadora do Plano de Parto Humanizado na região de Caucaguita, favela Petare, zona leste de Caracas. Em 2016, Dília perdeu sua primeira filha por complicações no parto e falta de atendimento rápido. Sua mãe, Maria Muñol, que também é promotora do Plano, garante “se esse programa existisse antes, ela não teria perdido a bebê”.
Dília e Maria fazem parte de uma família que tem quatro gerações de mulheres vinculadas ao parto natural. Tanto a bisavó como a avó de Dília foram parteiras, e ela e sua mãe, formadora e promotora de Parto Humanizado, respectivamente.
Dília Peñarosa Barrios, avó de Dília Ortiz, quando criança, acompanhava sua mãe – que esteve internada por cinco meses em um hospital devido a uma apendicite – observava a rotina do lugar e ajudava as enfermeiras. Aos 13 anos, apendeu como ajudar outras mulheres a dar a luz.
Durante toda sua vida, na zona rural de Cartagena de Índias, na Colômbia, Dona Dília foi parteira. Mãe de 11 filhos, conta que sabia exatamente quando ia parir e, pelas dificuldades da época, limpava a casa, arrumava todos os seus filhos, dava banho, comida, penteava os cabelos e dizia: "Se eu morrer não busquem outra família, busquem os seus padrinhos", relembra.
Hoje, dona Dília leva seus conhecimentos às atividades do Plano Nacional de Parto Humanizado, já que sua filha e neta fazem parte do programa social desde a criação.
Também de maneira quase intuitiva, a família descobriu o plano. Maria Muñol termina os estudos da educação básica no Instituto Nacional de Capacitação e Educação Social (INCES), onde escutou pela primeira vez a expressão parto humanizado durante a divulgação do início de um curso para promotoras. Com a experiência que adquiriu dentro de casa, de imediato, Maria quis se somar à proposta. Dília ia apenas acompanhar a mãe às aulas e acabou se somando ao plano.
“Eu tinha minha tristeza, minha dor, minha raiva, e só fui acompanhá-la. Nessa época, eu chorava todos os dias pelas coisas que diziam, mas aí eu pude me reencontrar, através do parto humanizado. Dessa maneira, me entusiasmei e me apaixonei pela ideia de poder compartilhar minha experiência tão triste e poder ajudar outras mulheres com isso”, conta a professora.
O plano
Desde julho de 2017, o plano promove um trato humano do parto dentro dos hospitais públicos do país, uma política que passava pelo conhecimento do território nacional e da diversidade das mulheres. Atualmente, estão registradas 12 mil promotoras e outras 2500 em formação. A meta, estipulada por Maduro, é chegar a uma equipe de 20 mil mulheres até o próximo ano.
O Ministério para a Mulher e Igualdade de Gênero designou 24 responsáveis políticas pela aplicação do plano, uma em cada estado venezuelano, que além de fiscalizar os 30 espaços de parto humanizado no país, devem captar mais promotoras para o programa social.
Para ser promotora, basta ter ente 18 e 60 anos e ter a capacidade de dar amor a essa família que vai acompanhar; este é o principal requisito segundo Anabel Pérez.
Depois da inscrição, as mulheres passam por uma formação com professoras do plano, em espaços de convivência dentro das suas próprias comunidades. Durante seis semanas de curso, as promotoras aprendem noções básicas do processo de gestação, parto e pós-parto, lactação materna e criação respeitosa, métodos para abordagem nas áreas de saúde integral comunitária território social, e noções básicas para vigiar a cotidianidade da gestante e verificar fatores de risco.
"A intenção é que as gestantes estejam empoderadas, seguras de si, de sua gestação, que saibam respirar, entendam o que vai acontecer”, afirma Dília Ortiz.
Nos centros de atenção primária, as promotoras fazem parte da equipe básica de saúde ampliada. No entanto, ao invés de esperar pelas pacientes nas unidades, as promotoras andam pelas comunidades buscando estabelecer contato com as mulheres que estão grávidas ou em idade fértil.
“Ela é a vizinha, a amiga, aquela que convive na própria comunidade e conhece a realidade do local. Ali ela faz essa aliança amorosa, de sororidade, na qual gestante e promotora se aproximam. A promotora convida essa mulher grávida a um círculo de formação sobre a gravidez, no qual se verão uma vez a semana para fazer exercícios, para relaxar, para aprender tudo o que tenha que ver com a gestação, parto, lactação e criação”, conta a facilitadora de parto Anabel Pérez.
Em Caracas, o Hospital Materno Hugo Chávez foi o primeiro a se adaptar e abrir para o programa. Nessa unidade, as promotoras do Plano podem fazer plantões e doulas podem acompanhar as gestantes na hora parto. No entanto, essa realidade nem sempre se expressa em todo o país.
Segundo Villegas, ainda existe resistência dos profissionais da saúde em relação ao parto humanizado. “Temos que atualizar nossas equipes médicas, convocar as equipes de saúde, para além da institucionalidade”.
Por isso, para ampliar a abrangência do plano, o Ministério da Mulher aposta na ação coordenada com outras instituições, como o Ministério de Saúde e do Trabalho.
História
O programa social é fruto da luta de aproximadamente 10 anos de movimentos feministas em defesa dos direitos reprodutivos e sexuais das mulheres. “Foi sua expertise, sua experiência que nos acompanhou na elaboração da proposta do plano”, afirma a vice-ministra, que também assume que tudo que sabe sobre parto humanizado aprendeu fora da academia, junto aos movimentos sociais.
Para Anabel Pérez, o fato de que o filho do presidente, Nicolás Maduro Guerra, haja nascido em um parto humanizado, contribuiu para que o presidente se sensibilizasse com a reivindicação e decretasse a lei. Sem juízo ao mérito, o que todas as mulheres envolvidas no programa concordam é que um Plano Nacional como este só é possível dentro da Revolução Bolivariana.
“Que um Estado assuma, não somente a defesa da dignidade da sua população, da pessoa no território, mas também que assuma a responsabilidade de cada grávida em cada localidade é transformador, é revolucionário”, finaliza Asia Villegas.
Reportagem e apresentação: Michele de Mello | Edição: Luiza Mançano | Coordenação: Daniel Giovanaz e Vivian Fernandes