Nas últimas semanas, o governo do presidente paraguaio, Mario Abdo Benítez, enfrentou uma forte crise política deflagrada pela assinatura de uma ata diplomática com o Brasil. O documento previa mudanças na distribuição de energia da hidrelétrica de Itaipu, que é controlada pelos dois países.
No texto, o governo de Abdo Benítez se comprometia a comprar energia mais cara. O pacto firmado em maio deste ano foi mantido às escondidas até 24 de julho, quando o presidente da estatal paraguaia Ande (Administração Nacional de Eletricidade), Pedro Ferreira, renunciou após discordar dos termos e se recusar a assinar o acordo.
Depois de sua demissão, outras altas autoridades da administração paraguaia renunciaram, entre elas, o então chanceler Alberto Castiglioni. A crise chegou a ameaçar até mesmo Abdo Benítez e seu vice, Hugo Velázquez. Os ânimos diminuíram nesta quinta-feira (1), após o acordo ser anulado.
O Brasil de Fato explicou nesta reportagem alguns pontos que ajudam a entender o caso:
Itaipu
A Usina Hidrelétrica de Itaipu foi construída após um acordo firmado entre o Brasil e o Paraguai em 1973. O tratado estabeleceu que cada um dos países ficaria responsável por metade dos custos da obra, financiada a partir de um empréstimo com prazo de pagamento de 50 anos. As dívidas serão quitadas em 2023.
Da mesma forma, cada nação é dona de 50% da produção da hidrelétrica. Esta porcentagem é referente à chamada “energia garantida”. O Paraguai, com uma população de aproximadamente 7,1 milhão de pessoas, consome somente 15,6% dessa produção. O Brasil fica com 84%. Isso porque o tratado prevê que o Brasil compre toda a energia garantida que não é utilizada pelo Paraguai.
Há ainda a chamada “energia excedente”, produzida acima da potência oficial de Itaipu, em decorrência, por exemplo, de chuvas fortes e reservatórios cheios. Por não incorporar juros sobre a dívida da usina e ser livre de impostos, a energia excedente é mais barata que a garantida.
Em 2007, o Brasil concedeu ao Paraguai a preferência para compra de toda a energia excedente como parte de um acordo de compensação pela instalação de duas novas turbinas em Itaipu que eram de interesse brasileiro.
Em termos de comparação, o megawatt-hora da energia garantida custou ao Paraguai US$ 43,80 em 2018. A energia excedente custou US$ 6.
Mudanças
A ata diplomática assinada em maio, alvo de indignação entre os paraguaios, propunha alterações sobre o modo em que a distribuição dessa energia passaria a ocorrer.
Segundo dados de Itaipu Binacional, o Paraguai consumiu 1.717 MWmed (megawatts médios) de energia em 2018. Para 898 MWmed desse total foi utilizada energia garantida -- a mais cara. Para os demais 819 MWmed, foi utilizada a energia excedente.
Essa divisão acontece porque o país define, junto com o Brasil, a quantidade de energia que irá utilizar anualmente. Caso o Paraguai necessite de mais do que o negociado inicialmente, o país compra energia excedente, pagando um valor menor.
Com o acordo de maio, que foi anulado nesta quinta-feira, o Paraguai se comprometia a aumentar gradualmente até 2022 a utilização da energia garantida.
Segundo a ex-vice-ministra de Minas e Energia do Paraguai, Mercedes Canese, as mudanças violariam o tratado de Itaipu e representam “um retrocesso com respeito aos direitos que o Paraguai possui e que estão, inclusive, em documentos oficiais”.
“Em todos os pontos de vista essa ata era inconveniente para o Paraguai. [Significava o] aumento da tarifa e incapacidade de usar nossa própria energia para nosso desenvolvimento, crescimento industrial e para venda”, afirmou Canese em entrevista ao Brasil de Fato.
A estimativa é de que as mudanças gerariam cerca de US$ 200 milhões de despesas extras anuais ao Paraguai, o que impactaria diretamente no país. Embora a nação utilize somente 15,6% da capacidade total de Itaipu, a energia corresponde a 90% de toda a demanda energética do país. A título de comparação, a energia de Itaipu corresponde a 15% da demanda brasileira.
“Fizemos alguns cálculos e representaria um aumento de 18% [no preço da conta de luz]. Então iria ter um impacto real. O governo disse que não iria transferir a tarifa, mas alguém teria que pagar esse custo”, diz Canese, que também criticou o fato da contratação ter duração de três anos, ao contrário do que havia sido feito desde a criação da usina.
Crise
Como o acordo assinado em maio não foi divulgado, a crise no Paraguai só foi deflagrada na última semana, quando Pedro Ferreira, então presidente da estatal de energia Ande, renunciou por discordar dos termos do pacto. Em 24 de julho, data da renúncia, assumiu Alcides Jiménez, que caiu na segunda-feira (29), depois de cinco dias no cargo.
Também pediram demissão o Ministro das Relações Exteriores do Paraguai, Luis Alberto Castiglioni, o embaixador do Paraguai no Brasil, Hugo Saguier, e o titular paraguaio da usina hidrelétrica binacional de Itaipu, José roberto Alderete.
As renúncias não diminuíram as insatisfações dos paraguaios. Na noite de quarta-feira (31), foi a vez dos olhares se voltarem ao presidente, Mario Abdo Benítez, e ao seu vice, Hugo Velázquez.
Além da oposição, que protocolou o processo de impeachment contra os dois principais líderes do governo, parte do partido de Abdo Benítez, o direitista Partido Colorado, também se colocou contra a permanência do mandatário no cargo. Somados, eles possuíam a maioria necessária na Câmara e no Senado para aprovar a destituição. O impeachment só saiu de cena após Brasil e Paraguai cancelarem o acordo.
Segundo Canese, a indignação paraguaia aconteceu “em parte porque não foi o governo quem deu a conhecer o pacto. E passando os dias, soubemos de mais dados preocupantes. É uma ata feita com a complacência das autoridade mais importantes do Paraguai”.
Para ela, no entanto, houve um lado bom. “Creio que é positivo o fato das pessoas se darem conta do quão importante isso é”. De acordo com Canese, isso dificulta a possibilidade de que novas mudanças drásticas sejam tomadas pelo governo.
“As negociações com o Brasil devem ser pensadas com justiça para ambos os países sobre os direitos que cada um tem. E também em um processo que contribua para a integração de nossa região e ao bem-estar dos nossos povos. Isso deveria ser o marco geral das negociações de 2023, não esses negócios privados, estes documentos secretos que vimos nos últimos dias”, conclui.
Léros Energia e Participações S.A
Um fato adicional, envolvendo a empresa brasileira Léros Energia e Participações S.A, acirrou as tensões no Paraguai, levando o país a quase passar por um processo de impeachment.
Uma matéria do jornal paraguaio ABC Color, revelou que o advogado José Rodríguez González teria participado, em maio, de uma reunião com dirigentes da Ande se apresentando como assessor jurídico do vice-presidente Hugo Velázquez. González teria pedido para que o ponto 6 do acordo fosse subtraído do texto.
A cláusula permitiria que o Paraguai comercializasse com empresas privadas brasileiras a venda de energia de Itaipu. A subtração, segundo o advogado, seria feita a pedido da Léros.
Ainda segundo a matéria, González teria se reunido com Alexandre Giordano, empresário brasileiro filiado ao PSL, partido de Jair Bolsonaro, que é suplente do senador Major Olímpio, também do PSL. De acordo com o ABC Color, Giordano teria atuado como lobista da Léros em nome da família Bolsonaro.
Em entrevista à revista Piauí, o empresário brasileiro confirmou nesta sexta-feira (2) ter participado da reunião, no entanto negou que tenha feito lobby para a Léros e que tenha falado em nome da família Bolsonaro.
Nesta quarta-feira, o vice-presidente paraguaio Hugo Velázquez compareceu ao Congresso do país, onde se explicou sobre o escândalo. Segundo ele, González não trabalha como seu assessor. O vice também negou que tenha pedido modificações no acordo com o Brasil.
Edição: Rodrigo Chagas