Entrevista

"Reformismo tornou-se hegemônico na esquerda", diz militante dominicano Isa Conde

O presidente do Movimento Continental Bolivariano pede esforços para superação do clientelismo eleitoral e do reformismo

Brasil de Fato | Caracas (Venezuela) |
Segundo Conde, o imperialismo atravessa uma crise de decadência e evoca Rosa Luxemburgo: "Socialismo ou barbárie, comunismo ou o caos"
Segundo Conde, o imperialismo atravessa uma crise de decadência e evoca Rosa Luxemburgo: "Socialismo ou barbárie, comunismo ou o caos" - Foto: Kevin de la Cruz

O dominicano Narciso Isa Conde, de 76 anos, é presidente do Movimento Continental Bolivariano, fundado em 2009 por diversas organizações de esquerda latino-americanas. Autor de 20 livros, Conde foi secretário-geral do Partido Comunista Dominicano na década de 1960, período em que combateu um golpe militar financiado pelos Estados Unidos contra o seu país. Naquela época, ajudou a fundar o movimento caamañista, que chegou a tomar o poder da República Dominicana durante alguns meses, em 1963, até ser derrotado pelas tropas estadunidenses.

Conde foi exilado pelo regime de Joaquin Balaguer (1966-1978) e viveu na Europa até 1973. Recentemente, foi um dos responsáveis por escrever o Acordo de Paz assinado entre o governo colombiano e a guerrilha Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia (Farc), que se transformou em partido político em 2016.

Durante o 25º Foro de São Paulo, em Caracas, Isa Conde conversou com o Brasil de Fato sobre os desafios para barrar o crescimento da extrema direita no continente americano. Reformismo, corrupção, burocracia estatal, clientelismo eleitoral, utopias e socialismo do século 21 estão entre os temas abordados pelo presidente do Movimento Bolivariano.

Brasil de Fato: Quais são os desafios da esquerda numa América Latina, onde a extrema direita volta a ganhar governos, a exemplo da Colômbia, Brasil e Chile?

Narciso Isa Conde: Primeiro, as esquerdas são muito diversas, há de todos os matizes. Penso que esse conjunto diverso está condenado a enfrentar um contra-ataque imperial, sob a hegemonia dos Estados Unidos.

A política imperialista dos EUA sofre revezes devido a sua decadência, porque a crise atual do capitalismo é uma crise típica de decadência. Não é apenas econômica, mas também financeira, social, política institucional, urbanística, ambiental. Sua fortaleza está no poder militar e midiático, que tem uma capacidade de alienação inédita na história universal.

Esse é um grande desafio: enfrentar o contra-ataque, com a confiança de que é possível deter e mudar o quadro.

Qual o papel dos governos progressistas dos anos 2000 nesse processo de fortalecimento da esquerda?

As políticas reformistas que emanam da capacidade de influência, sobretudo do ponto de vista ideológico, do sistema capitalista provocaram um fato que não podemos deixar de identificar: conseguiram imobilizar boa parte da esquerda no reformismo. Esses processos se tornam um pouco funcionais ao sistema.

Nossa América, em um ciclo amplo de mudança, que começa nos anos 1950 com a Revolução Cubana, teve diferentes ondas de mudanças, que tem muito a ver com a conversão da indignação em capacidade de mobilização e em ação ofensiva política.

Estamos numa espécie de quarta onda -- que recebeu uma contraofensiva muito forte dos Estados Unidos -- com uma ação que procura reverter essa nova onda de mudanças, liderada pela Venezuela.

Naturalmente, o capitalismo ataca tudo que representa a autodeterminação, tudo que representa a perda do seu controle. Então começa golpeando os elos mais fracos ou processos que se tornam vulneráveis.

Por isso existe um desafio: não basta identificar a profundidade da ofensiva e enfrentar com radicalismo o imperialismo estadunidense e suas forças aliadas, mas também olhar para dentro, para nós mesmos. Onde estão as debilidades que nos tornam vulneráveis?

Esses processos de mudanças não chegaram a culminar em uma revolução, no seu sentido completo da palavra, que implica a abolição do Estado, um processo de socialização do poder, de criação do poder popular. Não podemos manter só a lógica da tomada do poder, mas de ruptura.

Quais teriam foram os erros dos processos latino-americanos mais recentes?

Estamos falando de processos em que o capitalismo coexiste. Ele é violento, junto a todo resultado dos processos neoliberais, de privatização, que em muitos casos não se reverteram, como Brasil e Argentina.

Apesar das políticas de distribuição de renda, políticas assistencialistas audazes, de melhorias econômicas, não houve ruptura com a ordem do sistema dominante e essa coexistência contamina.

Um processo que proclama uma orientação socialista, que ao mesmo tempo coexiste com um poder exportador, financeiro, privado, como é o caso venezuelano, se não supera a lógica do sistema capitalista, tudo isso deixa o processo vulnerável.

É o que Chávez disse no [discurso] golpe de Timón: ‘se acreditamos que aqui já superamos o capitalismo se enganam, o capitalismo segue sendo dominante’. E disse que havia que pulverizar o próprio Estado que o chavismo havia conformado.

Em alguns casos tão vulneráveis que os EUA conseguiram revertê-los, como é o caso de Honduras, Paraguae, Brasil e El Salvador.

Mas qual o elemento importante disso tudo? Eles conseguem reverter esses processos, mas não conseguem estabilizar a situação. O sistema de partidos está deslegitimado. Devemos procurar que as correntes revolucionárias tomem mais espaço.


Isa Conde participou da Zona Constitucionalista de Santo Domingo, uma experiência de poder popular cercada pelas tropas estadunidenses, em 1963 (Foto: Arquivo)

Neste semestre teremos três eleições presidenciais no nosso continente: Argentina, Bolívia e Uruguai. Qual a perspectiva de ascensão de um governo progressista pela via eleitoral?

Na Argentina o desafio é derrotar Macri, ainda com todos os danos que ele causou, mas também devemos refletir sobre a opção que poderia substituí-lo. A opção dos Fernández tem seus recortes, Alberto Fernández que lidera a chapa – e nós sabemos o peso do presidencialismo no nosso continente – é um empresário com uma lógica neoliberal, capitalista.

Então se frente a Macri ele pode representar um avanço, eu creio que seguimos com o mesmo dilema. Quando haverá uma opção realmente transformadora, revolucionária?

Bolívia é o processo mais avançado. Evo deve ganhar no primeiro turno. Ir para o segundo pode ser arriscado e isso nos faz refletir sobre muitas coisas.

A Bolívia alcançou reformas importantes, com resultados econômicos e culturais. No entanto, continuar no limite do capitalismo implica em riscos, ainda mais na lógica eleitoral, porque a direita é especialista em fomentar um clientelismo na política e rapidamente pode criar uma maioria que reverta muitos dos avanços. É isso que estamos vivendo.

Não é que partimos do zero, eu não acho que na Argentina as lutas atuais partem do zero, todos os processos foram válidos e têm seus tempos. Não podemos cair numa análise catastrófica. O central é como você consegue ir fortalecendo as consciências e as forças da mudança.

E a Venezuela?

Até agora, um dos movimentos mais avançados. A Venezuela, com todo o antecedente de Hugo Chávez, conseguiu criar uma consciência bolivariana, anti-imperialista e anticapitalista nos setores populares.

No entanto, não conseguiu superar a lógica capitalista, o nutriente do grande capital, que controla as importações, os negócios com o sistema financeiro, que tende a corromper o Estado, que absorve a renda.

Tivemos vitórias táticas importantes na Venezuela, como por exemplo, o controle da soberania nas mãos do poder cívico-militar, criado pelo chavismo, mas há enormes riscos com a crise econômica.

Definitivamente não dá para coexistir um processo de orientação socialista com um peso do capitalismo tão grande, sobretudo em setores chaves. Temos que aprofundar as transformações e refletir sobre assuntos que não são fáceis, como a corrupção.

A corrupção dentro desses processos serve para a campanha de uma direita mafiosa, como vemos na Argentina, no sistema político brasileiro, dominado por grandes consórcios. O que a Odebrecht, Andrade Gutierrez e outras fizeram foi exportar a corrupção, com uma intermediação política.

Então como criar bases para uma mudança substantiva nos processos progressistas latino-americanos?

Acredito que tudo que se diz ‘progressista’ está em crise. O desafio é como fazer predominar uma corrente transformadora, que deve ter um forte conteúdo anti-imperialista e também anticapitalista, que deve pensar na socialização do poder, da economia, da cultura.

Porque através das reformas pode se ter um resultado importante, mas se você não consegue desalienar, criar uma consciência política integral de novo alcance e profundidade, não alcançaremos a segurança e permanência desse processo.

Quais mudanças substanciais seriam essas?

O sujeito da mudança não é só um sujeito de classe, mas está no gênero, no racismo, no ambientalismo, todos fatores de alta mobilização e com profundo caráter anticapitalista. É o que temos que fundir.

Precisamos criar um movimento de transformação com uma proposta política que desmonte esse Estado. Eu acho que temos condições, porque as pessoas já provaram o ‘progressismo’. Acredito que a indignação pede que essa fórmula dê mais. Não é um desprezo. Foi importante passar por esse processo.

Não se trata de reinventar a velha concepção de socialismo de Estado, de estadismo, senão de apaixonar novamente os povos com uma proposta, criar uma mística, como dizia [José Carlos] Mariátegui: cada época tem um mito revolucionário.

O mito socialista do século XX foi golpeado, há que reformular uma nova proposta socialista.

Qual o aporte do Foro de São Paulo para a criação dessa mística?

Num momento de contraofensiva tremenda, sobrepassar o continente, reunir forças do mundo, de uma grande diversidade e se propor a enfrentar essa contraofensiva tem um grande valor. Mas ainda não há uma proposta superadora, alternativa comum, porque a diversidade nos impede, e também as hegemonias.

A proposta revolucionária não é hegemônica no movimento social, popular, na esquerda. Tem predominado a política de reformas.

Estamos numa espécie de laboratório, no qual ainda não se vê tão claramente a luz ao final do túnel, mas se vai construindo o caminho ao andar.

Então, há otimismo sobre o futuro?

Claro, o sonho tem um poder. A utopia é um meio para avançar. Sempre haverá uma conquista acima de outra conquista. É muito importante o otimismo da vontade, até mesmo nas piores circunstâncias.

Os Estados Unidos estão perdendo sua hegemonia com os imperialismos emergentes. Às vezes as pessoas pensam que a China e a Rússia são aliados do socialismo. Não é que não se pode aproveitar essas contradições, mas não podemos nos enganar, temos que ter um enfoque crítico.

O capitalismo é fracionado. Existem capitalismos emergentes. A Rússia como potência militar está superando os Estados Unidos e a China no aspecto econômico.

Esses fatores são favoráveis para o surgimento de uma corrente revolucionária. É como dizem os vietnamitas: há que aproveitar a contradições dos nossos adversários.

Períodos de crise estrutural do sistema também têm seu potencial revolucionário por trás. No momento atual, a esquerda não estaria sabendo aproveitar esse possível potencial?

A crise por si só, nem sequer uma crise decadente como essa, produz a mudança. É como uma árvore de Caimito, a sua fruta não cai, nunca cai, você tem que derrubá-la com algo. O capitalismo é como o Caimito, não cai sozinho.

A tendência numa crise de decadência é o caos. Agora sim o que dizia Rosa Luxemburgo tem um peso enorme: socialismo ou barbárie, comunismo ou o caos.

E falo de um comunismo do século XXI, sobre as várias reflexões que devemos fazer de uma proposta comunista ou socialista nos tempos atuais.

Precisamos que as forças condutoras da indignação tenham uma proposta política que as una, e essa força não é a vanguarda predestinada, com organização vertical, temos que reformular isso, mas tem que existir uma força condutora.

O inimigo tem sua vanguarda, seus pensadores e condutores.

Essa vanguarda não estaria sendo criada na América Latina, com Cuba, Venezuela e Bolívia?

Eu vejo que existem muitos movimentos populares politizados que têm bastante autonomia e independência do Estado, porque também na estrutura do Estado se criam interesses. Até nos governos estadistas, algumas pessoas falam de uma ‘classe imprevista’ que é a burocracia, os sistemas burocráticos, de privilégio, a corrupção burocrática.

Dentro desses Estados existem revolucionários, mas isso vai ser o resultado de uma articulação de o que vem de baixo com aqueles que estão no Estado com uma postura ética, moral e vontade de mudar as coisas.

Estamos muito atados ao pensamento estadista do socialismo, que dominou todo o século XX, está na cabeça de muitos dirigentes.

Por quê? O que implica isso? Implica dar mais poder à sociedade. É o dilema entre Estado e poder popular.

Precisamos superar o egoísmo de cada geração e entender que a história não se move dessa maneira, mas entender como cada um contribui para que as novas gerações caminhem em direção a esse projeto, a esse sonho. Para isso há que militar, que criar forças e teoria revolucionária.

As comunas são uma base formidável para a socialização, mas no Estado se criam interesses e há um receio desse poder que vem de abaixo. E aí vem um freio e é uma batalha complexa, porque temos um inimigo pronto para o ataque e com um problema interno dessa natureza.

Precisamos de uma vanguarda que pense uma lógica de superação não estadista, que proponha uma lógica de superação do capitalismo, não um discurso retórico socialista.

O socialismo ou será internacional, mundial ou não será. E isso requer uma política internacionalista com os sujeitos sociais da mudança. Não é um pacto de Estados avançados ou progressistas.

O império tratou de usar diferentes táticas de acordo com cada circunstância. Eles estão dentro da estrutura, sabem como atacar e como podem dividir. A extrema direita é uma manifestação da decadência da atual sociedade.

Eu acho que a esquerda tem que potencializar muito mais a democracia das ruas que a via institucional. A via institucional tem muitas trapaças para contaminar. Não devemos menosprezá-la, mas devemos priorizar é mudar o sistema atual desde as ruas, junto com quem esteja no Estado e seja favorável a essa ruptura.

Edição: Rodrigo Chagas