Nossa Constituição está próxima de completar 31 anos e, justamente neste mês, no dia 3 de agosto de 1988, foi votado aquilo que representa um dos núcleos fundamentais de seu texto: os direitos individuais e coletivos da atual constituição.
Por isso, essa data representa um marco importante para o fim da censura no Brasil, que calou uma geração. Naquele dia e na promulgação da Constituição, em setembro do mesmo ano, nasceu a liberdade sob aplausos e muita festa na rua. Finalmente, ali, chegou a hora do galo insistir em cantar, de a enorme euforia tomar conta das avenidas, de ir olhar a evolução da liberdade do samba popular.
Foi sob essa ordem, nascida com o festejo da liberdade, que viveu a juventude que hoje resiste à barbárie. Uma geração viveu um tempo de ventos favoráveis que, além de garantir a liberdade, permitiram fazer nascer experiências que transformaram o Estado em diversos países da América Latina. No Brasil, os ventos favoráveis possibilitaram que elegêssemos um presidente de origem operária e, também, a primeira mulher presidenta de nosso país. E não foi qualquer mulher. Elegemos alguém que dedicou sua juventude para construir um país mais justo, para derrotar o autoritarismo que tentava calar os sonhos e as esperanças de uma geração.
Foi essa experiência que permitiu levar médicos a cidades distantes com o Mais Médicos; que possibilitou que o Brasil saísse, por algum tempo, do mapa da fome; que garantiu que o Nordeste vivesse uma das suas maiores secas sem que explodisse a miséria e os saques a supermercados; que fez com que o povo entrasse nas universidades públicas, e que filhos e filhas da classe trabalhadora conquistassem os primeiros diplomas de graduação, de mestrado e de doutorado de suas famílias.
O dia raiou, mas pediu licença. E quem inventou o pecado e esqueceu de inventar o perdão se escondeu da enorme euforia. Se escondeu, para não ser julgado pelos crimes cometidos nos porões da ditadura, para continuar exercendo os poderes nas oligarquias regionais, para manter o controle sobre os meios de comunicação. Se escondeu, mas emergiu na crise dos 30.
A geração que viveu integralmente sob os ventos favoráveis do ciclo passado – nela me incluo –, se depara, pela primeira vez, com o momento de tormenta. Na crise dos 30, a democracia brasileira foi vítima de um golpe que retirou da Presidência da República um projeto que foi referendado pelas urnas quatro vezes consecutivas. No mesmo movimento, impuseram ao povo brasileiro uma fraude ao usar uma operação fajuta para determinar a decisão soberana do povo, e retirar, assim, o líder em todas as pesquisas das eleições presidenciais. Foi essa fraude que permitiu o fortalecimento do autoritarismo latente que aprofundou a crise dos 30.
A segunda trilogia da franquia de filme de Star Wars nos dá uma lição: é também sob aplausos que morre a liberdade. Foi morrendo a liberdade desde o teatro que foi montado no Senado e na Câmara nas sessões que submeteram a presidenta Dilma a mais uma injustiça. Está morrendo a liberdade desde que as ruas foram tomadas por fogos naquele domingo de outubro do ano passado. Está morrendo a liberdade com o projeto de destruição que Jair Bolsonaro está implantando no país, e estão sendo sufocados todos os direitos que melhoraram a qualidade de vida da classe trabalhadora.
Em pouco mais de 6 meses de governo, Bolsonaro e essa coalizão que sustentou o golpe contra Dilma e a fraude à soberania popular conseguiram transformar essa data, que deveria ser comemorativa por marcar um importante passo para o fim da censura, em uma data que, inevitavelmente, reconhecemo-nos apreensivos.
O governo Bolsonaro revive o fantasma da censura ao considerar prender jornalistas por divulgar material que revela a fraude que foi a prisão do presidente Lula; tenta apagar a história ao esvaziar os mecanismos de reparação às vítimas da ditadura; e tenta calar as vozes que dele discordam, ao retirar organismos de participação popular no governo ou ao ameaçar órgãos que divulgam dados que o colocam em situação desconfortável, como no caso do INPE.
Não estamos mais diante de riscos à liberdade, mas da sua efetiva aniquilação, o que revela que, nesses pouco mais de 6 meses de governo, Bolsonaro e a coalizão golpista vêm implodindo a ordem constitucional.
O fato é que a geração que nasceu e viveu em tempo de ventos favoráveis precisará aprender a fazer luta em situação adversa. Hoje, “falando de lado e olhando pro chão”. Mas, há um caminho a percorrer que pode fazer a tapioca virar. Denunciar o caráter destrutivo do projeto de Bolsonaro e da coalizão de classes que ou o sustenta ou que permitiu que sua candidatura fosse viável é um importante passo para que a crise dos 30 seja breve e pouco persistente. Para isso, é essencial que saibamos que não se negocia com quem quer nos aniquilar.
Não há crise dos 30 que seja superada sem que identifiquemos bem as suas causas e sem que exorcizemos cada fantasma que nos levou a enfrentá-la. Por isso, tentar descobrir quais foram os nossos atos que contribuíram para o momento político que nos encontramos e entender quais ações de nossos inimigos e adversários que produziram o momento grave que vivemos hoje é a tarefa de todo militante e toda militante dessa geração.
Fazer a autocrítica, portanto, é uma etapa fundamental para isso. Mas uma autocrítica que saiba que um novo ciclo de lutas sociais não se inaugura com o aniquilamento total dos instrumentos políticos do passado e que, por isso, esteja comprometida com a identificação dos erros para ajustar a caminhada coletiva que está por vir.
Além disso, é preciso que alimentemos nossos sonhos e que resgatemos a esperança. Para isso, não podemos aceitar o cometimento de injustiças que aniquilam a liberdade. Como canta Metá Metá, “Não há justiça se há sofrer. Que não há justiça se há temor. Nem muito menos se a gente sempre se curvar”. Por essa razão, não podemos cogitar a possibilidade de que se naturalize a prisão do companheiro Lula, que foi preso sem provas e porque existiu um conluio entre juiz e acusação, como revela a “Vaza-jato”.
A maior liderança popular da América Latina foi presa porque o golpe não se completaria se ele pudesse disputar as eleições livremente. Portanto, Lula foi vítima de uma injustiça, e, o que nos torna companheiros e companheiras é a nossa capacidade de tremer de indignação diante de uma injustiça.
Saber caminhar quando o vento sopra ao contrário é o nosso principal desafio. Cumprir essa tarefa nos permitirá proteger as liberdades que estão ameaçadas e retomar as rédeas da história. O momento é grave, mas a classe trabalhadora brasileira já esteve em situações piores. Amanhã, certamente será outro dia, e sob aplausos e festa, faremos e veremos a liberdade renascer.
* Militante da Consulta Popular e doutorando em Direito pela Universidade de Brasília (UnB)
Edição: Marcos Barbosa