Literatura

Romance de 1890 narra como viveriam as pessoas em uma sociedade comunista utópica

Em entrevista, intelectual marxista Michael Löwy fala sobre livro recém-reeditado pela editora Expressão Popular

Brasil de Fato | São Paulo (SP) |

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"Notícias de Lugar Nenhum", do romancista William Morris, é o lançamento de agosto do Clube do Livro
"Notícias de Lugar Nenhum", do romancista William Morris, é o lançamento de agosto do Clube do Livro - Brasil de Fato

Imagine dormir e acordar em uma sociedade na qual não há propriedade privada nem divisão entre classes. Para chegar nesse estágio, uma revolução socialista foi feita pelas mãos dos trabalhadores e trabalhadoras. Essa é a ideia que o romancista inglês William Morris (1834-1896) apresenta em sua obra Notícias de Lugar Nenhum, publicada pela primeira vez em 1890.

O livro agora é reeditado pela Editora Expressão Popular, em parceria com a Fundação Perseu Abramo, como parte do projeto Clube do Livro, que mensalmente realiza novas publicações.

Para entender melhor as ideias apresentadas na obra, o Brasil de Fato conversou por telefone com o intelectual marxista Michael Löwy. O sociólogo foi responsável pela apresentação do livro ao lado do filósofo Leandro Konder (1936 - 2014).

“Mais do que um instrumento de análise do capitalismo, Notícias de Lugar Nenhum é um instrumento de imaginação. Imaginar como poderia ser uma outra sociedade, como vivem as pessoas no comunismo”, descreve Löwy. Para aqueles que desejam conhecer o chamado “socialismo revolucionário”, ele destaca que a obra é uma boa opção.

Confira a entrevista na íntegra:

Brasil de Fato: Para começar, gostaria que o senhor nos ajudasse a entender: qual outra sociedade possível William Morris nos apresenta em Notícias de Lugar Nenhum?

William Morris apresenta uma forma de utopia comunista sob a forma de uma narração. Não é um manifesto, ou um programa de partido, mas sim uma obra literária em que ele conta a história imaginária de alguém que adormece, acorda em Londres, vai passear e descobre que tudo mudou. É outro mundo onde, efetivamente, já não existe capitalismo, dinheiro ou exploração, e a natureza volta a florescer.

É feito também com bastante humor. Ele [Morris] diz, por exemplo, que não precisamos mais de parlamentos. O edifício do parlamento inglês, na história, agora serve de estoque de adubo para a agricultura. Esse é o feitio desta obra maravilhosa, que é um dos grandes livros da história das utopias comunistas.

Uma coisa que temos que ressaltar é que as pessoas que vivem neste mundo contam para o visitante, que veio do passado, como foi que eles estabeleceram essa sociedade. Contam que tiveram que fazer uma revolução. Uma revolução violenta, porque as classes dominantes resistiram. Então, também é uma utopia revolucionária.

O livro é realmente uma das grandes obras da cultura socialista. É marxista, em certo sentido, e libertário ao mesmo tempo, porque William Morris era alguém que procurava combinar ideias do anarquismo com o pensamento de Marx.

Isso tudo está presente na obra: a dimensão comunista, de luta de classes e o anarquismo.

Agora gostaria de falar sobre o uso da literatura como ferramenta de discussão sobre a política e a sociedade. Às vezes pensamos que apenas ler teoria pode ajudar nesse sentido. Mas autores como William Morris nos mostram que o romance também pode, certo?

Acho que a literatura é um aspecto fundamental de qualquer cultura revolucionária e crítica. Muitas vezes, a literatura nos faz entender melhor a sociedade, ou as alternativas sociais, do que os textos teóricos ou propriamente políticos.

Para mim a literatura tem um papel ao mesmo tempo crítico, de compreensão da realidade, e de estímulo da busca de alternativas radicais. Esse é um aspecto fundamental que está presente na obra de William Morris.

Também é importante ressaltar que William Morris é um herdeiro da literatura e da cultura românticas. O romantismo não é só poesia. É uma maneira de pensar, uma crítica da civilização moderna, capitalista e industrial em nome de certos valores do passado. Há esse elemento da valorização do passado pré-moderno, pré-capitalista.

Isso pode tomar formas reacionárias e conservadoras, mas também formas revolucionárias e utópicas. No caso do William Morris, justamente, é um exemplo fascinante do que pode-se chamar de romantismo utópico ou romantismo revolucionário.

É uma dessas obras em que a força subversiva da literatura se manifesta. Aliás, Marx e Engels sempre reconheceram isso. Eles têm, por exemplo, muita admiração por [Honoré de] Balzac, ou por [Charles] Dickens. Marx dizia “eu aprendi mais com Balzac do que com dezenas de tratados de economia política”.

No caso de Notícias de Lugar Nenhum, mais do que um instrumento de análise do capitalismo, é um instrumento de imaginação. Imaginar como poderia ser uma outra sociedade, como vivem as pessoas no comunismo. E em vez de fazer isso de forma abstrata e puramente teórica, ele oferece essa forma viva que é a literatura.

Edição: Tayguara Ribeiro