Clara Almeida tem 36 anos, é maranhense e não conheceu os pais biológicos. Foi adotada por uma família com a qual perdeu contato ainda jovem, quando saiu "pelo mundo" com um companheiro que trabalhava no circo. Rodou o país até parar em Ipatinga (MG). Mãe de cinco filhos, ela foi abandonada pelo marido, que antes era o responsável pelo ganha-pão. A renda da família de seis pessoas baseia-se hoje nos R$ 500,00 do programa Bolsa Família, que ela recebe por conta dos filhos menores. Para sobreviver, Clara conta com doações de cestas básicas e outros suprimentos.
“Quando eu era casada, meus filhos já passaram fome”, conta. Há algumas semanas, Clara conseguiu um emprego de meio expediente como doméstica. "Se tudo der certo", ela pretende abrir mão do benefício para que outras famílias possam ter a mesma oportunidade.
A esperança de mãe contrasta com as sinalizações do governo Bolsonaro (PSL). Tentar extinguir o Conselho Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional (Consea), um dos principais instrumentos do combate à fome no Brasil, foi o cartão de visitas do capitão na Presidência da República. Não deu certo: uma alteração na Medida Provisória 870 permitiu que o órgão fosse recriado dentro do Ministério da Cidadania. Porém, no site do Conselho não consta nenhuma atividade realizada recentemente, e os dados seguem desatualizados.
A reportagem não conseguiu sequer contato com a assessoria de comunicação do órgão.
O presidente que questiona a existência da fome no país tomou posse dois anos e meio após o golpe contra Dilma Rousseff (PT). Desde aquele processo, entidades internacionais vêm alertando sobre o risco de o Brasil voltar ao Mapa da Fome, por conta dos cortes em políticas públicas realizados pelo governo Michel Temer (MDB). Segundo a Organização das Nações Unidas para a Alimentação e Agricultura (FAO), o mapa contempla países onde 5% da população ingere menos calorias diárias do que o recomendado.
Estima-se que cerca de 5 milhões de brasileiros -- pouco mais de 2% da população -- convivam com a insegurança alimentar, que abrange condições de má alimentação até a fome em larga escala. Essa pode ser uma situação transitória, quando a falta de acesso à alimentação se dá por uma questão financeira conjuntural, como o desemprego de um dos provedores, por exemplo. Conviver com o medo de inanição também é considerado sintoma de insegurança alimentar, embora a notificação desses casos seja mais difícil, porque envolve critérios subjetivos.
Segundo o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), a renda domiciliar per capita de Minas Gerais em 2018 foi de R$ 1.322,00. No leste de Minas, a Região Metropolitana do Vale do Aço (RMVA) é uma das áreas mais desenvolvidas economicamente. É onde estão instaladas empresas como a Usiminas, maior produtora de aço plano da América Latina, que teve alta de 125% no lucro líquido no segundo trimestre de 2019. Na contramão, o índice de desemprego na região e a desigualdade social são cada vez maiores.
Ipatinga, onde vive Clara, é a cidade com maior Índice de Desenvolvimento Humano (IDH) da RMVA. Mesmo assim, a reportagem se deparou com famílias que alegam ter renda mensal inferior a R$ 500,00. Ainda conforme dados do IBGE, o desemprego no Brasil atinge cerca de 12 milhões e 800 mil pessoas. Muitas outras, não incluídas na estatística oficial, estão em situação de sub-ocupação -- quando o indivíduo tem uma carga-horária de trabalho insuficiente para garantir seu sustento.
Luta diária
Durante a campanha eleitoral de 2018, o general Hamilton Mourão, à época candidato a vice-presidente de Jair Bolsonaro, disse que “casa só com mãe e vó é fábrica de desajustados para o tráfico”.
O IBGE estima que mães solos são responsáveis por cerca de 39% dos lares brasileiros. Eliane Aparecida, 50 anos, é uma delas, e reconhece as dificuldades de ser mãe e avó solo em Ipatinga. Sem trabalho fixo desde 2009, em decorrência de um câncer que lhe deixou sequelas, a mineira cuida de três filhos e dois netos. Ela separou-se do pai do seu filho mais novo, que era dependente químico, para preservar as crianças de uma possível "má influência".
A renda da casa gira em torno de R$ 378,00 por mês. Para pagar as contas, ela recebe alguns "trocados" dos vizinhos, cestas básicas de um amigo e pão, cedido pela padaria do bairro. “As pessoas precisam ser mais solidárias umas com as outras. No meu caso, por exemplo, só não passei fome por causa dessas pessoas”, relata.
Entre a fome e o sonho
Com a luz cortada há mais de um mês, Leonardo Evangelista, de 15 anos, tem dificuldades para desenhar. Ele sonha em ser arquiteto e tem o apoio da irmã Jaqueline Evangelista, de 13, e da mãe Romilda Evangelista, mãe solo de 44. Os três vivem em uma casa simples com uma renda mensal de R$ 230,00, também oriunda do Bolsa Família.
No corredor externo, entre várias casas, fica uma lata improvisada como fogão, para "usar quando não tem gás". Os cômodos estão sem lâmpada, a geladeira, vazia, e uma goteira pinga incessantemente no banheiro.
Romilda tem problemas de saúde e toma remédios tarja preta. Recentemente, ela e os filhos ficaram três dias seguidos sem ter o que comer. Ao final, deram um jeito: “Tinha só uma farinha de mandioca, e eu já tinha um feijão cozido, mas frio. Aí eu peguei e pus uma vasilha com tempero, pus sal, misturei e nós comemos com feijão”, conta.
Saídas
O economista Robinson Ayres não vê perspectivas positivas para recuperação econômica do Brasil a médio prazo. Segundo ele, o presidente tem "criado problemas com grandes parceiros econômicos internacionais, como a China, e mais recentemente com o principal destino da produção de manufaturados brasileiros, que é a Argentina”.
Além disso, Ayres avalia que o “ultraliberalismo” praticado pelo Ministério da Economia também não favorece a retomada do crescimento, porque a renda familiar está em queda, o que afeta diretamente o crescimento do Produto Interno Bruto (PIB). Com isso, aumenta o contingente de usuários de serviços públicos, como saúde e educação, que estão em fase de sucateamento e privatização. "O Estado brasileiro está sem disponibilidade de recursos, e a política econômica ideológica do liberalismo não tem caráter protetivo", resume o especialista.
Em relação à economia do Vale do Aço, Ayres explica que a região possui dependência quase absoluta da siderurgia. Esse setor enfrenta, desde 2004, dificuldades no aspecto estrutural e de mercado. “A indústria automobilística utiliza muito menos aço do que alguns anos atrás, a construção civil também. A China, quando estava com metas de expansão de 15%, comprou e estocou muito minério e aço. Com a queda dessa taxa para cerca de 8%, ela começou a desovar esse excedente a preços deprimidos. O Estado brasileiro não tinha uma proteção imediata como deveria ter, o que afetou a siderurgia nacional, em especial no Vale do Aço”, explica.
Em 2018, tendo em vista os retrocessos sociais no Brasil pós-golpe, foi apresentado o Plano Diretor de Desenvolvimento Integrado para a RMVA, com previsões de estratégias e ações de curto e médio prazo para qualificar a geração de emprego e enfrentar a pobreza na região. Por meio de sua assessoria, a Agência de Desenvolvimento da Região Metropolitana do Vale do Aço disse que “o Plano está em fase de revisão para a elaboração do projeto de lei que será enviado para a Assembleia Legislativa de Minas Gerais (ALMG). De acordo com a Lei Federal N.º 13.089/2015, o Estatuto da Metrópole, para o Plano ter vigência, o documento deve ser aprovado como lei estadual”. Portanto, as ações previstas no PDDI ainda não estão em andamento: o projeto de lei está previsto para ser entregue em dezembro de 2019.
Edição: Daniel Giovanaz