De quem mora em lugares como o acampamento, só se quer a força de trabalho
Andar pelo Acampamento Marielle Vive, em Valinhos, no interior de São Paulo, Brasil, produz uma profunda sensação de déjà vu. O acampamento lembra muitas outras comunidades dos desesperadamente pobres do nosso planeta. Segundo a Organização das Nações Unidas (ONU), uma a cada oito pessoas -- ou cerca de um bilhão de seres humanos -- vive em condições igualmente difíceis e precárias. As casas são feitas de uma variedade de materiais: lonas azuis e pedaços de madeira, telhas metálicas e blocos velhos. Mil famílias vivem na ocupação, batizada em homenagem à socialista brasileira Marielle Franco, assassinada em março de 2018.
A terra onde a comunidade foi construída pertence a uma especuladora imobiliária chamada Fazenda Eldorado. O proprietário passou anos sem fazer nada nessa terra. As pessoas que hoje vivem ali a transformaram em uma pequena cidade em questão de meses.
A questão do acesso à propriedade da terra é um problema sério no Brasil. As pessoas que moram no Marielle Vive trabalham nos arredores de São Paulo, maior cidade do país. É impossível, para os trabalhadores mal remunerados, encontrar um lugar para viver. Com os salários estagnados e os aluguéis em alta, o problema fica mais agudo. Das pessoas que moram em lugares como o Acampamento Marielle Vive, o que se quer é apenas a força de trabalho, não a vida.
No caminho para o acampamento, existe o que parece um sem-fim de empreendimentos de condomínios fechados. Mesmo da estrada, esses condomínios e essas casas parecem alienantes -- moradores presos entre muros altos, interações sociais limitadas. Os especuladores donos da terra em que está o acampamento querem construir mais casas desse tipo. O Estado os favorece, em detrimento das milhares de pessoas que construíram seus lares ali.
Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra
A ocupação Marielle Vive não é uma simples “favela”, palavra de conotação muitas vezes negativa. O clima em muitos desses lugares é desolado, com facções criminosas e organizações religiosas que oferecem um frágil elo social. Mas o Acampamento Marielle Vive emana uma aura diferente. Bandeiras do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) estão por toda parte. Uma dignidade silenciosa e amistosa satura os moradores, muitos com camisetas ou bonés da organização. Há uma escola para as crianças e uma cozinha comunitária onde alguns dos moradores fazem três refeições diárias. A alimentação é básica, mas nutritiva. Perto dali, em uma pequena clínica, há atendimento médico uma vez por semana.
Na entrada do acampamento, há duas barreiras guardadas pelos moradores em esquema de revezamento. Os seguranças são simpáticos, mas cautelosos. O acampamento teme ataques por parte do Estado e dos proprietários da terra.
No dia 18 de julho, os moradores realizaram uma marcha pacífica para exigir o reconhecimento da ocupação pelas autoridades e o fornecimento de água pela prefeitura. Parecia que tudo corria normalmente, a rotina da marcha, o clima pacífico. E aí, Leo Ribeiro, dono de uma oficina, avançou contra os manifestantes com sua caminhonete, onde ostentava uma bandeira do Brasil, e matou Luis Ferreira da Costa, de 72 anos, morador do acampamento. Hoje, a casa da vítima se transformou em um pequeno santuário, com seu boné do MST pendurado na porta da frente. Ribeiro está preso. Mas a tristeza da morte define as conversas dentro do acampamento.
Cerca de dois milhões de pessoas ocupam, com a bandeira do MST, terras em todo o Brasil. A terra do país está entre as mais poluídas do planeta, com alta saturação de pesticidas e fertilizantes no solo. Nesse acampamento do MST, a produção agrícola tem aplicado técnicas agroecológicas. Existem algumas hortas familiares no Marielle Vive. Tassi e Gerson, dois militantes do MST, explicam que quando tiverem acesso a água, os moradores começarão a plantar o próprio alimento.
Mas talvez eles não tenham chance de fazer isso. Em meados de agosto, a juíza Bianca Vasconcelos ordenou o despejo das famílias. Os moradores prometem recorrer da decisão.
Duas meninas, Ketley Júlia e Fernanda Fernandes, contam sobre a vida no acampamento. Por retaliação, o governo municipal proibiu o ônibus escolar de transportar as crianças da ocupação. Mas o Marielle Vive tem sua própria escola. O que alegrava as meninas era que, todo domingo, elas se encontravam para a aula de inglês. “Quando escrever seu artigo sobre o acampamento”, disseram, “vamos traduzi-lo para o português.
*Vijay Prashad é diretor do Instituto Triconetinental.
Edição: Daniela Stefano