De geração em geração, de família em família. O cultivo de sementes crioulas, grãos de alimentos naturais sem qualquer alteração genética ou mutação por produtos químicos, é uma valiosa herança defendida e transmitida por agricultores que lutam pela produção saudável de alimentos desde sua germinação.
Protagonistas da resistência ao monopólio de grandes empresas estrangeiras no setor de comercialização de grãos transgênicos para a agricultura, as guardiãs e guardiões de sementes se fortalecem a cada dia por meio da partilha das próprias sementes e dos conhecimentos ancestrais que carregam.
Neste sábado (31), a 18ª Jornada de Agroecologia, que acontece em Curitiba (PR) entre os dias 29 de agosto e 1 de setembro, deu espaço para que essa troca acontecesse entre dezenas de guardiãs e guardiões de diferentes regiões.
Filha de agricultores, Ines Fátima Polidoro, guardiã e integrante da Comissão Pastoral da Terra (CPT), conta que desde criança aprendeu com sua mãe a nutrir a “esperança de colocar a semente na terra e cuidar dessa semente para ela nos dar o alimento”.
Para ela, a resistência popular e a proteção às sementes crioulas são inseparáveis. “Quando falamos de fortalecer a resistência do povo, sempre encontramos uma semente: Seja no quilombo, na aldeia, na comunidade tradicional, com os agricultores. O que segura o povo no campo é o amor às sementes”.
Ines considera que o espaço de partilha dos grãos, como o que ocorreu durante a Jornada, é a principal forma de garantir que o conhecimento ancestral dos guardiões seja transmitido.
“É importante irmos para a rua, criarmos leis. Mas se não tivermos a semente de nada adianta. Quanto mais gente, mais guardiões, seja do campo ou da cidade. Multiplicar os guardiões é a ferramenta mais concreta de luta contra os grandes projetos que tem os monopólios das sementes”, defende.
Conforme dados do Grupo de Ação sobre Erosão, Tecnologia e Concentração (ETC), as maiores empresas que atuam no ramo de alimentos – entre elas Syngenta, Bayer, Monsanto, Dow, Basf e Du Pont – controlam 60% do mercado de sementes e cerca de 70% do mercado de insumos como pesticidas e agrotóxicos.
Guilherme Mazer, da Rede de Sementes da Agroecologia (Resa) e do Coletivo Triunfo, explica que desde a aprovação da legislação que aprovou o Registro Nacional de Sementes e Mudas (Renasem), as multinacionais do agronegócio dominaram todas as variedades de semente. Ou seja: sem acesso à outras opções, muitos agricultores acabam utilizando os grãos adulterados.
Exatamente por isso, Mazer reforça a importância do crescimento dessa rede. “Se existe a opção da comunidade comprar a semente do seu vizinho, se sabem que alguém da cooperativa tem a semente crioula e não forem obrigados a comprar sementes de uma multinacional, se consolida um processo de resistência do modelo de produção e de ser referência para dizer que é possível fazer agricultura sem o pacote tecnológico de uma multinacional”, argumenta.
André Jantara, assessor técnico da AS-PTA, organização sem fins lucrativos que atua em defesa da agricultura familiar, ressalta a partilha de sementes como um rico processo que se opõe a esse modelo de produção que ameaça a saúde e o meio ambiente. “[A partilha] transmite vidas, histórias. As pessoas se organizam e partilham para que novas famílias possam levar e multiplicar em sua propriedade. Temos chamado os agricultores para serem novos guardiões de sementes: que eles as levem, as multipliquem e as tragam na próxima Jornada”.
Defensores da vida
Presente na partilha, seu Antonio Taborda orgulha-se de ser um dos “guardiões mais antigos”. Desde que começou a plantar, aos 20 anos, protege o cultivo de grãos em sua forma natural.
“A gente plantando tudo aquilo que comemos, não dependemos de comprar as coisas no mercado. A saúde da gente é aquilo que a gente come. Eu já estou com 75 anos e nunca tomei remédio de farmácia. Isso porque sempre como coisa pura, sem veneno”, explica.
Seu Taborda relata que já perdeu 4 mil quilos de semente pura de milho que foram contaminados porque o agricultor vizinho, enganado pelas multinacionais, usou uma semente envenenada.
A chilena Neltume Espinoza, moradora de Morretes, município da região litorânea do Paraná, acredita que ser uma guardiã vai muito além de garantir a segurança alimentar.
“Acredito que para nós, guardiãs, há uma relação espiritual que não conseguimos materializar. É nossa união com nossos antepassados. Por isso eu e tantas guardiãs não protegemos só os alimentos. Queremos as adubações naturais para nutrir o solo e que as flores possam florescer. Eu vejo que nosso sentido de guardiã é a nutrição da existência”, diz Neltume.
"Ser guardiã perante o contexto político que temos é muito honroso. Estamos indo para um caminho de honrar a vida. Estamos com a força que vem da natureza. Me emociona ver tantas pessoas trabalhando pela agroecologia, tentando fazer algo diferente”, completa.
Diálogo
A 18ª Jornada de Agroecologia é considerada uma grande oportunidade para que o restante da população conheça o projeto de agricultura popular. Na opinião do guardião Hans Rinklin, coordenador da Associação para o Desenvolvimento para a Agroecologia, é preciso que a população urbana também participe do processo de proteção dos grãos para que esse conhecimento ancestral não se perca.
Dessa forma, para ele, um dos legados das Jornadas de Agroecologia e feiras de sementes crioulas é ajudar a conscientizar o cidadão da cidade que o cuidado com milho crioulo, por exemplo, não é só do guardião.
“Se ninguém mais comprar quirela e canjica transgênica, vai haver um impacto. Vai fortificar quem produz o crioulo, vai haver uma busca dez vezes maior pela semente crioula porque não querem comer transgênicos”, destaca Rinklin.
Edição: Luiz Felipe Albuquerque