Quando as pesquisas começaram a apontar para o favoritismo da dupla Alberto Fernandez/Cristina Kirchner nas eleições presidenciais argentinas, Jair Bolsonaro partiu para o ataque. Utilizou-se dos mesmos expedientes da campanha eleitoral brasileira do ano passado, invocou a possibilidade da “Argentina virar uma Venezuela”. Como se não bastasse, chamou os candidatos de “bandidos de esquerda”. Pelo visto, as agressões não surtiram efeito e só serviram para fortalecer a chapa peronista.
Dizem que o medo e o ódio tem a mesma origem. No caso em análise, não é preciso ser psicanalista para perceber algo tão óbvio.
Cristina reúne todos os atributos que Bolsonaro mais teme. Em primeiro lugar, ela é mulher - e o capitão já deu mostras de possuir um pânico que beira o irracional em relação ao sexo feminino. Seus objetos de admiração e amor são homens, geralmente autoritários e armados. Ele apenas aceita (suporta) a mulher em uma condição de submissão. Seus embates na vida política com Maria do Rosário e Dilma Rousseff demonstram claramente o nível da fobia, chegando ao limite de exaltar a figura de um torturador como o Coronel Ustra, que não hesitava em agredir mulheres sem a menor possibilidade de defesa.
Cristina Kirchner, a primeira mulher eleita presidente pelo voto direto na Argentina, não se colocava em uma posição de subalternidade em relação ao marido Nestor. Os dois se conheceram durante a graduação na faculdade de Direito e construíram a vida profissional e política em parceria. Em 1985 foi eleita deputada estadual; de 1995 a 2001 foi reeleita deputada federal e senadora. Estamos falando de uma advogada e política com luz e caraterísticas próprias.
Mas não é só isso. Para “piorar” a situação, Cristina é peronista! Sim, ela faz parte de um movimento político que, apesar de suas contradições internas, tem uma tradição histórica, retomada com Nestor a partir de 2003, de lutar pela soberania nacional e melhora das condições de vida dos trabalhadores.
Ao contrário do entreguismo bolsonarista, o kirchnerismo/peronismo não teve medo de enfrentar os interesses estadunidenses ao se posicionar contra a ALCA (Área de Livre Comércio das Américas).
Também promoveu o resgate da memória argentina sobre os crimes praticados durante a ditadura naquele país (1976-1983). Quem não se lembra de Nestor ordenando “bajar los cuadros” (tirar as fotos) dos ditadores Rafael Videla e Reynaldo Bignone, na escola militar?
Para completar esse cenário “tenebroso” para a extrema direita brasileira, Cristina promulgou a lei de democratização dos meios, enfrentando o monopólio do Clarín (a Globo argentina). No seu mandato foi aprovada a lei do matrimônio igualitário. Também se posicionou pela descriminalização do aborto.
Não custa lembrar que estamos falando da candidata à vice-presidência; mesmo assim Bolsonaro não consegue disfarçar sua paúra.
Mas eu entendo o capitão. Não deve ser fácil engolir uma mulher independente, articulada e popular colocando toda a sua energia no combate ao neoliberalismo tardio que devastou a economia do nosso vizinho e era visto pelos formadores de opinião da grande mídia como um modelo a ser seguido no Brasil.
É para sentir medo mesmo, já que temos milhares de “Cristinas” construindo a resistência a um sistema econômico autoritário e ultrapassado, que assim como na Argentina, já está caindo de podre.
*Rafael Molina Vita é formado em Direito, membro do coletivo estadual de Direitos Humanos do PT/SP e da ABJD.
Edição: Daniela Stefano