ÁFRICA

Instabilidade política na Argélia pode precipitar ditadura ou insurreição popular

Manifestações no país já duram mais de seis meses e exigem implementação de assembleia nacional constituinte

Brasil de Fato | São Paulo (SP) |

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Atos começaram após o então presidente Abdelaziz Bouteflika anunciar que concorreria a um quinto mandato
Atos começaram após o então presidente Abdelaziz Bouteflika anunciar que concorreria a um quinto mandato - Foto: Ryad Kramdi/AFP

Desde 22 de fevereiro deste ano, dezenas de manifestações tomaram as ruas da Argélia contra a permanência do então presidente do país, Abdelaziz Bouteflika, no cargo. Os atos começaram após o ex-chefe de Estado, que governou de forma ininterrupta de 1999 até 2019, anunciar que concorreria a um quinto mandato. 

A renúncia de Bouteflika, em 2 de abril, não amenizou o ânimo dos argelinos, que deram continuidade aos protestos mesmo após a queda ou prisão de ministros e figuras chave do Exército -- força que governa o país de fato -- implicados em casos de corrupção. 

De fevereiro para cá, a situação política da Argélia virou o governo ao avesso e abriu caminho para um prolongado período de instabilidade política.

De um lado, há o discurso oficial, que defende a organização de novas eleições como única solução para o impasse institucional. De outro, os manifestantes, que afirmam que um pleito neste momento só serviria para garantir a manutenção da Frente de Libertação Nacional (FLN), partido que governa desde a independência argelina, no poder. 

Em entrevista ao Brasil de Fato, o professor de história da Universidade de São Paulo (USP) Everaldo de Oliveira Andrade afirma que os manifestantes se opuseram às eleições que ocorreriam em 18 de abril por não considerarem que se trataria de um processo legítimo. 

“O antigo presidente [Bouteflika] queria se eleger para um quinto mandato. Aparentemente era um processo democrático, mas visava contornar a reivindicação principal do movimento democrático na Argélia, que é o de que haja eleições legítimas para que todos os partidos possam participar de maneira igualitária e o regime não se autoperpetue. Essas eleições estavam marcadas pela fraude. Uma fraude já preparada anteriormente”, diz. 

O professor explica que o Hirak, como ficou conhecido o movimento, se trata de “um processo mais profundo de modificações por meio de uma assembleia constituinte. Essa é a principal reivindicação que acabou provocando um aumento da repressão contra a população”.

As eleições foram remarcadas para 4 de julho, mas acabaram sendo canceladas novamente após intensa pressão popular.

O choque entre Estado e manifestantes pode desencadear, de acordo com Andrade, “uma ditadura aberta de novo, como ocorreu nos anos 90. É muito instável, pode precipitar tanto uma insurreição popular, uma revolução, quanto um golpe de estado sangrento. Está nesse patamar a situação da Argélia”, relata.

Frente de Libertação Nacional

A FLN foi a principal força por trás da libertação da Argélia, que permaneceu como colônia francesa até 1962. De lá para cá o partido governou o país de forma ininterrupta. A revolução de cunho nacionalista deixou sua herança, que pode ser vista no grande número de estatais. A nação também possui um enorme controle de seu setor energético. 

No entanto, o governo perdeu adesão no decorrer dos anos. Em 1988 o país passou pelo maior distúrbio popular de sua história recente, quando uma série de manifestações levaram ao fim do sistema de partido único no país. A situação política também foi responsável por fomentar a guerra civil que assolaria o país a partir de 1991.

“Por pressão desses novos partidos [que surgiram após o fim do sistema de partido único], o regime começou a recuar nessa visão autoritária da Argélia. Autoritária, mas nacionalista, é importante dizer, porque preservou uma série de conquistas de soberania nacional”, conta Andrade. 

O professor explica que um dos motivos de insatisfação por parte da população advém do fato da Argélia estar dando uma guinada conservadora. “Eles querem privatizar tudo lá. A pressão é muito grande e se reflete na instabilidade do país”. 

Impasse e perseguição a opositores

Após a renúncia de Bouteflika, seu aliado Abdelkader Bensalah assumiu interinamente o posto de presidente. O homem forte do país, no entanto, é o general do Ahmed Gaïd Salah, chefe do Estado-Maior do Exército. 

Para Gaïd Salah, as “exigências fundamentais” do movimento foram “plenamente satisfeitas”. Os manifestantes, no entanto, seguem por mais de seis meses fazendo protestos semanais que devem se intensificar a partir de setembro, mês em que as universidades voltam a funcionar. 

A duração dos atos fez com que o governo passasse a perseguir figuras identificadas como líderes do movimento. Entre elas está Luisa Hanune, deputada do Partido dos Trabalhadores (PT) da Argélia e primeira mulher a se candidatar à presidência do país. 

Segundo Andrade, Hanune foi encarcerada porque o objetivo do regime era desarticular a resistência e a mobilização de seu partido. "Ela também foi presa porque os militantes, os deputados do PT decidiram renunciar aos seus mandatos, sair do Parlamento e chamar novas eleições e a assembleia constituinte”, conta. 

Além da renúncia dos deputados do PT, a prisão de Hanune, gerou uma mobilização global pedindo sua soltura. No fim de maio o ex-presidente brasileiro Luiz Inácio Lula da Silva, maior nome do PT brasileiro, aderiu à campanha que pede a libertação da deputada, acusada de “conspiração para mudar o regime”. 

O fato do poder argelino e o povo defenderem caminhos opostos gera um impasse: de um lado o governo quer eleições. De outro, a população pede que o pleito só ocorra alinhado a uma mudança radical na estrutura do Estado. 

“O governo sinaliza que não há data para eleição, mas tenta criar um calendário e dividir a mobilização. O que existe é uma tentativa das forças de oposição de transformar essa mobilização popular, que semana a semana se choca com o governo, em uma organização popular, de baixo para cima, que viabilize a assembleia constituinte”, afirma Andrade.

Edição: Rodrigo Chagas