Dona Marlene Martins Rosário tem 60 anos e consegue cerca de R$ 400 por mês trabalhando como manicure. O marido José Lima do Rosário, tem 67 anos e é pedreiro. Foi ele quem construiu a casa onde viveu com a esposa por 43 anos. Nesta quinta-feira (19), Marlene e José viram a casa que construíram juntos ser destruída, na passagem Gracinha, no bairro da Terra-Firme, em Belém (PA).
A demolição foi feita pela empresa responsável por executar as obras de macrodrenagem do canal do Tucunduba. Depois da receber a decisão judicial, a Secretaria de Estado de Desenvolvimento Urbano e Obras Públicas (Sedop) acionou a empresa para que ela faça a retirada das pessoas.
O órgão afirma que forneceu apoio às famílias, mas as pessoas relatam o contrário. A reintegração de posse ocorreu com a presença do batalhão de choque da polícia militar e da equipe das Rondas Ostensivas Táticas Motorizadas (Rotam).
A manicure teve que assistir não só a sua casa, mas a do seu filho, Carlos André, de 43 anos, virar escombros. A outra filha do casal, Carla Andreia, de 41 anos, recebeu no dia do despejo a notificação de que precisará sair de sua casa em -- no máximo -- cinco dias.
O processo de reintegração consiste não só na retirada das famílias das residências, mas na destruição do imóvel. Telhas, janelas, portas, vigas, paredes tudo é posto abaixo com o auxílio de marretas e uma retroescavadeira finaliza o processo transformando lar em escombros.
A demolição começou pela casa de Dona Marlene, por volta das oito horas da manhã. Ela reclama que não conseguiu salvar nada da estrutura da casa, porque a retroescavadeira derrubou seu imóvel em menos de uma hora. Porém, na casa do filho, Carlos André, os familiares interviram para salvar telhas, grades e o que foi possível.
Os moradores que perderam as casas repetem a mesma afirmação: não há para onde ir. Não há dinheiro para começar uma nova vida.
O direito à moradia é garantido na Constituição Federal, mas o Pará tem um dos piores déficits habitacionais do Brasil, segundo a Síntese de Indicadores Sociais de 2018, uma publicação do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). O documento aponta que cerca de 12,4% da população vive com algum tipo de privação relacionado à moradia. A média no Brasil é de 11%.
Dona Marlene alega que o dinheiro ofertado pelo Estado como forma de indenização é insuficiente para comprar uma casa nova e que, no momento, ela não tem recursos para começar uma nova vida em outro lugar: “Primeiro as casas são destruídas, depois é que vem o dinheiro da indenização”, queixa-se.
”Eu não fui notificada, fui avisada por telefone que ia ter uma ação aqui na quinta-feira e hoje eles já vieram e quebraram a casa. Não temos para onde ir. Não temos dinheiro, porque o dinheiro eles dizem que já está na conta, mas só podemos tirar depois que a justiça vem e agora que a justiça veio. A gente só vai poder recorrer de amanhã em diante”, relata a senhora de pouco mais de um metro e meio de altura, pele parda, cabelos brancos e óculos.
Sem casa, Marlene dormirá na casa de Carla Andreia, a filha que recebeu aviso de despejo durante a demolição da casa da mãe. A residência fica praticamente em frente ao local onde ficava a casa dos pais. Na noite de quinta-feira, a casa de Carla serviu de abrigo não são para seus pais, mas para todos os vizinhos que tiveram as suas residências derrubadas.
Por volta das 16h30, a última coisa foi colocada abaixo. Vizinhos e amigos ajudaram a carregar móveis, telhas e eletrodomésticos. À noite, as famílias tiveram uma reunião com o advogado Pedro Cavaleiro, que trabalha junto com a deputada Marinor Brito (Psol) para saber quais serão os próximos passos de suas vidas.
Obra de macrodrenagem
Segundo a Sedop, as casas estão em uma área de interferência das obras do projeto de macrodrenagem da bacia do Tucunduba. Em julho, o Tribunal de Justiça do Pará autorizou a retirada das pessoas. Desde então, as famílias deveriam ter sido notificadas para que saíssem pacificamente, mas elas alegam que não receberam nenhum documento oficial.
O processo de retirada começou em 2017. Os que moravam às margens do canal foram as primeiros a sair. O local onde antes haviam casas está abandonado, transformou-se em depósito de resíduos sólidos como lixo doméstico e restos de construção, todos dispostos a céu aberto.
Dona Marlene, reclama da falta de utilização do local e do abandono no bairro. “Está virando um lixão, abandonado, porque eles só estão limpando o canal e o resto todo fica à mercê dos moradores, da malandragem, do lixo, a sujeira, fica toda para os moradores”, argumenta.
A moradora também reprovou a forma como as famílias foram tratadas pelas autoridades. Segundo ela, para as autoridades, que vivem dentro de apartamentos de luxo apoiarem o despejo de quem que não têm onde morar. Marlene se diz revoltada com o posicionamento do governador Helder Barbalho (MDB).
“Nós pagamos os nossos impostos. Se hoje ele está eleito lá, os impostos que ele recebe é da gente. Foram os pobres que colocaram eles lá. Então, não é digno. O governo do Estado tirou a nossa dignidade”, afirma.
Consultados pelo Brasil de Fato, os oficiais do Tribunal de Justiça (TJPA) que estavam no local não quiseram gravar entrevista, mas afirmam que o Estado não precisa garantir um local para as famílias no caso da reintegração de posse, apenas, cumprir a determinação judicial.
A Sedop diz que a indenização já está disponível, por meio de depósito judicial e que é preciso que as famílias façam a retirada ou, caso estejam em desacordo com os valores definidos, acionem a Defensoria Pública do Estado.
O governo avaliou as casas com valores que variam de R$ 13 mil a R$ 38 mil reais. Contudo, na data da destruição, nenhuma das famílias afirmou ter recebido qualquer quantia que lhes garantisse um abrigo ao fim do dia.
Sofrimento em dobro
Elen Nunes tem 34 anos e é professora do ensino fundamental. Ela diz que a profissão por si só já consiste em luta diária devido as inúmeras dificuldades e à baixa remuneração. Mas nesta quinta-feira de despejo, ela enfrentou uma batalha diferente -- viu a casa na qual mora há 16 anos ser destruída sem poder fazer nada para impedir.
A professora vivia no local com outros cinco familiares, entre primos e sobrinhos. A mãe faleceu ano passado, segundo ela, de tristeza depois que surgiram boatos de que todos seriam despejados. “Pelo menos a minha mãe não teve que passar pelo que passei hoje”, conta.
Ela terá se hospedar na casa de amigos, que vão acolhê-la depois da demolição. Segundo Elen nenhum oficial de justiça a comunicou. Há apenas dois dias, ela teve conhecimento sobre a decisão final do despejo.
“O governo alegou que veio nos procurar, mas -- de fato --, ninguém foi encontrado. Eles falaram isso, mas não veio ninguém aqui. Sempre tem um morador aqui na sua casa. Então, eles fizeram o processo à revelia, como se a gente tivesse se negado a aceitar algum tipo de acordo, mas isso não é verdade. Quando eles vieram foi que tomamos algum tipo de conhecimento. A polícia veio fazer uma operação e nos disse que ia ter uma ordem de despejo contra nós. Nós tentamos recorrer dentro do possível, na quarta vara, o juiz não se negou contanto que o governador e seus advogados fossem favoráveis a um prazo maior. A gente queria um prazo para fazer uma mudança digna, sem que fosse necessário força policial, nada disso”, lamenta.
Para Elen, a maior tristeza foi o dia mal ter nascido e ela ter que ser obrigadas tirar as coisas de casa sem saber para onde levar.
“A gente teve que acordar hoje com a polícia às seis horas da manhã. Todo um constrangimento para a gente ver a nossa casa, que construímos com tanto sacrifício ser destruída. Tem famílias que moram aqui há mais de 40 anos. Eu moro há 16 anos, mas tem famílias que nasceram e se criaram aqui. Aí tu vê teu sonho assim, destruído dessa forma. E além disso nós não recebemos nenhum valor. Quanto tu recebes uma ordem de despejo, o teu dinheiro fica depositado em juízo. Tu só podes receber depois que a casa, de fato, for demolida. A gente foi simplesmente jogado às traças, sem o apoio do governo. Os assistentes sociais que vieram com eles não nos deram nenhum tipo de apoio e ainda ficaram do lado deles, e inclusive, foram até hostis conosco”, conta.
Para quem tem a casa destruída fica, apenas, o sentimento de ter sido desrespeitada e humilhada pelas autoridades.
“Eu não tenho para onde ir, eu não tenho uma casa, não tenho recursos para alugar uma casa da noite para o dia. Eu estou na casa de amigos. As minhas coisas estão espalhadas por aí e eu não tenho para onde ir. Então, é algo muito triste. A gente se sente humilhado, desamparado por quem deveria ter cuidado da gente, né? O Estado deveria ter cuidado da gente, nos entregado a nossa propriedade para, sim, nos remanejar”, diz.
Edição: Rodrigo Chagas