Que as falas dessas mulheres lembrem de nossa vergonha como nação
(para Rioco)
Durante minha adolescência, deparar-me com os documentos do grupo Tortura Nunca Mais foi um divisor de águas. A leitura crua de episódios de tortura, sobretudo de jovens militantes, marcou-me de forma definitiva.
Há exato um ano fui assistir, com a doce e querida Rioco Kayano e sua família, aqui em Brasília, o lançamento do filme “Torre das Donzelas”, que estreou nacionalmente apenas na quinta-feira (19), e do qual ela é uma das protagonistas. Mulheres que reconstroem, para a arte, em recriação cenográfica do espaço original, um fragmento da história política do país durante a ditadura civil-militar, em que foram encarceradas no presídio Tiradentes, em São Paulo, na ala que dá nome ao filme. Narram seu cotidiano, em que é possível reconhecer em suas forças a fragilidade que nos habita, e buscam manter uma fenda de contato com o mundo de fora das grades, organizando o dia a dia, partilhando desejos, sonhos, medos, angústias e afetos.
A violência na tela não é representada, mas contada. É um filme sem metáforas, cuja crueza não afeta a sensibilidade, em que o relato da rotina, aparentemente trivial, de mulheres encarceradas, das coisas simples, como a divisão de tarefas, inclui os processos de tortura física a que são submetidas, levadas para os interrogatórios e devolvidas em ciclos. Uma narrativa que me levou de novo ao impacto da leitura feita por volta de 15 anos de idade. Por meio dos relatos daquelas mulheres, e sentada ao lado delas na grande sala de cinema, pensei em como a dimensão essencial da vida e a compreensão que temos das coisas pode ser deslocada. Chorei copiosamente, em soluços. Senti dor por elas, por nós. Me indignei mais uma vez pela miséria humana que permitiu aquilo. E também ri, não delas, mas com elas, dos momentos espirituosos vivenciados. Porque é impossível ficar indiferente ao todo.
Torre das Donzelas - um nome que paradoxalmente parece tirado de histórias de princesas – tem a participação da ex-presidenta Dilma Rousseff como uma das prisioneiras. Traduz-se em um documento histórico, que nos obriga à memória de uma página que hoje é negada como período de exceção ou, pior, é ovacionada pelo governante maior do país e seus asseclas.
Por isso, penso que a película é lançada nos cinemas no momento exato, para que seja vista por quantos puder alcançar, para que as falas dessas mulheres lembrem de nossa vergonha como nação, e nos façam refletir sobre o absurdo do reencontro com possibilidades que julgávamos soterradas. Tempos em que a democracia vira um conceito relativizado, cujos pressupostos são tratados com deboche, em que leis e regras de convivência cívica com as diferenças são afastadas, que se intenta criminalizar e deixar de reconhecer a legitimidade dos demais sujeitos políticos não alinhados com o projeto reacionário e de desconstrução de direitos. Tempos em que ódio e intolerância, com base no fundamentalismo religioso e uma ideologia distorcida, viraram “política de governo”.
A perseguição político-ideológica que vem sendo posta em curso pelo governo de extrema-direita no Brasil, que também afeta a arte, fazem de Torre das Donzelas uma lição de luta e resistência. O fato, não menos relevante, de que o machismo de Bolsonaro e do bolsonarismo alcança o nível de enxergar, em discursos, símbolos e narrativas, as mulheres não apenas como objetos, mas como inimigas, faz da força e calmaria dessas “donzelas” que viveram o cárcere e a tortura, e não se deixaram abater ou apreender por eles, um bálsamo e um ensinamento à contraposição a um projeto político explicitamente autoritário.
Ver o filme é obrigatório. Aprender com elas é o desafio.
Edição: João Paulo Soares