Com a morte do rio Paraopeba, em Brumadinho, indígenas pedem realocação de território

Morosidade da Vale em cumprir acordo força saída dos pataxó da aldeia Naô Xohâ, às margens do rio contaminado pela lama

Por Pedro Stropasolas

Oito meses após o crime da mineradora Vale, a aldeia Naô Xohã teve seu modo de vida destruído pela morte do rio Paraopeba. A comunidade com cerca de 200 indígenas das etnias pataxó e pataxó Hã Hã Hãe reivindica, desde o fim de agosto, junto ao Ministério Público Federal (MPF), a realocação para outro território.

A área deve ser disponibilizada pela Vale, que irá se reunir nas próximas semanas com os indígenas e o MPF para negociar a disponibilização da nova localidade.

A 22 km de distância da mina Córrego do Feijão, palco da tragédia, a comunidade indígena não tem acesso regular à saúde, à água de qualidade, e sobrevive da venda de artesanatos e da indenização emergencial paga pela Vale no valor de um salário mínimo.

“Na Nahô Xohã, o local que estamos hoje, não tem como a gente estar ali, por causa do rio, da poluição. Nosso solo foi contaminado também. Então, a gente decidiu que a Vale tem que dar outro território pra gente. Todo mundo na Naô Xohã já decidiu. Nós não decidimos nada sozinho. Reunimos todo mundo, e chegamos à conclusão de que é o melhor para os nossos filhos, nossos netos e todos nós”, conta Arakuã Pataxó Hã Hã Hãe, primeiro cacique e fundador da aldeia.

Desde que chegaram à localidade, em 2 de novembro de 2017, os pataxós vinham aguardando pela regularização fundiária do território em que ocupam às margens do rio, no município de São Joaquim de Bicas. Com a morte do rio, a reivindicação mudou.

O pedido de realocação de território foi feito em reunião na sede do Ministério Público Federal (MPF), em Belo Horizonte, no último dia 27 de agosto. No encontro, foram levantadas outras demandas prioritárias pelos indígenas, como a questão da qualidade da água fornecida pela Companhia de Saneamento de Minas Gerais (COPASA) e paga pela Vale.

Rituais às margens do rio foram interrompidos pela chegada da lama tóxica. Indígenas também usavam a água para consumo e irrigação das hortas

Segundo relato das lideranças presentes no local, a alta quantidade de cloro na água vem causando rachaduras na pele e coceiras entre a população da aldeia – por não estarem habituados ao consumo da substância.

A água clorada também vem causando a morte das plantações da comunidade. Foram observadas erupções e manchas na terra, situação constatada pelo próprio antropólogo da Vale em visita a aldeia – e registrada na Ata da reunião.

Além da irrigação das hortas, a água do rio era usada para banho, rituais, lavagem de roupas e louças. Além disso, o peixe era o principal alimento para sobrevivência.

"A poluição impede que eles pesquem. A alimentação tradicional deles está prejudicada, os rituais culturais que eles faziam na beira do rio não fazem mais. A partir de todo esse contexto, eles apresentaram essa deliberação", conta o procurador da república Edmundo Antônio Dias, membro da força-tarefa do Ministério Público Federal de Minas Gerais, responsável por investigar o crime da Vale em Brumadinho.

8 meses do crime da Vale

Em 25 de janeiro, a barragem I da mina Córrego do Feijão se rompeu em Brumadinho (MG), liberando 12 milhões de metros cúbicos de rejeitos de mineração e deixando 249 mortos – 21 pessoas ainda estão soterradas.

O impacto não foi só em vidas. Além de destruir uma área de aproximadamente 300 hectares, a lama tóxica atingiu o rio Paraopeba, que registrou presença de rejeitos de mineração na usina hidrelétrica de Retiro Baixo, a 318 km do local da tragédia.

A lama encontrou o rio em sua confluência com o Córrego-Carvão, a 4km do centro de Brumadinho, onde a Vale está construindo Estação de Tratamento de Água Fluvial (ETAF) Ferro-Carvão, nas proximidades da comunidade do Pires.

“Eu vejo a mineração como uma assassina, uma criminosa, porque tira vidas e mais vidas. E pra quê? Pra enricar, pra ter seu dinheiro. Enquanto eles estão na mesinha deles comendo com a mesinha de prata, eles não estão se importando com quem tá embaixo da lama, não tão se importando com a natureza que eles tão acabando”, desabafa Tanara Santos, uma das lideranças.

Vale demorou em reconhecer impactos na aldeia

A Vale assinou, no dia 5 de abril, um acordo com o Ministério Público Federal (MPF), a Fundação Nacional do Índio (Funai) e lideranças indígenas da Naô Xohã, definindo medidas emergenciais para reparar os danos socioeconômicos e ambientais causados na aldeia, principalmente em relação à contaminação do Paraopeba – que impactou mais de 900 mil pessoas nos 18 municípios cortados pelo rio.

O Termo de Ajuste Preliminar Extrajudicial Pataxó garante pagamento de um benefício mensal no valor de um salário mínimo e a distribuição de cestas básicas, além de assegurar direitos como o acesso à saúde e água potável.

Inicialmente, o acordo contemplava 46 núcleos familiares, com 153 pessoas. Mas, por solicitação do MPF a pedido da comunidade, a Vale reconheceu mais 15 famílias neste mês de setembro. Segundo o procurador da República Edmundo Antônio Dias, esses nomes foram incluídos "depois de muita resistência e demora" por parte da mineradora.

Para Alda Maria Oliveira, Coordenadora da Regional Leste do Conselho Indigenista Missionário (Cimi), a demora da Vale para registrar as famílias se deve ao fato de a mineradora não reconhecer a tradicionalidade migratória dos pataxós.

Ela explica que o grupo é oriundo do extremo Sul da Bahia, e desde que ocupou a terra, há dois anos, vem mantendo a dinâmica de retornar periodicamente à terra natal, visitando os parentes e colhendo matéria-prima para o artesanato, sua principal fonte de renda.

"Índios têm uma demanda de circular. Isso é próprio dos povos indígenas. Quase todas as etnias têm essa demanda. Só que a Vale não quer saber disso. Agora eles vão ter que mudar o ritmo natural de vida por conta de um benefício de um salário mínimo", argumenta.

As queixas do Cimi e do MPF quanto à morosidade da Vale também é consenso entre as lideranças pataxós. “De vir, ela veio umas duas vezes através da justiça, porque a justiça tá obrigando ela a ver o que causou com a gente. Mas por ela vir espontânea, ela não veio, conversar com a gente, vê o que a gente tá precisando por conta do rio”, denuncia Tanara Santos.

No acordo está previsto que, no prazo de doze meses, caso não se conclua a reparação integral dos danos socioeconômicos e socioambientais, as partes optem pela continuidade das medidas emergenciais necessárias.

Acesso à saúde pública é precário

Outro ponto sem medidas efetivas é quanto ao acesso regular à saúde. No texto, a mineradora se responsabiliza financeiramente pelo Plano de atendimento na área, que inclui instalações sanitárias e implantação de uma Estação Modular de Atendimento à Saúde.

O Plano seria articulado pela Secretaria Especial de Saúde Indígena (Sesai) e pelo Distrito Sanitário Especial Indígena de Minas Gerais e Espírito Santo, após diagnóstico da situação da saúde da comunidade indígena.

Segundo Dias, os pataxó e os pataxó hã hã hãe sugeriram que seja feito um modelo de instalação similar ao realizado na aldeia Gerutucunã, no leste de Minas, liderada pelo cacique Baiara Pataxó. Uma instalação móvel, que possa ser depois desmontada e levada para outro local.

A Vale concordou com o modelo, mas dependeria do aval da Sesai para implementar as instalações. A secretaria, porém, não deu retorno à solicitação da mineradora.

Diante da falta de resposta por parte do órgão, o MPF e a Defensoria Pública do Estado (MG) encaminharam um ofício à Sesai na semana passada, solicitando que o órgão autorize a implementação dessas instalações – que permitiria a contratação de profissionais para atendimento aos indígenas nas áreas de enfermaria e saúde mental.

A falta de atuação da Sesai expõe a fragilização da rede de saúde pública voltada às comunidades indígenas no governo de Jair Bolsonaro. Recentemente, o governo federal excluiu os indígenas da formulação de políticas de saúde, após extinguir o fórum que reunia representantes de conselhos de saúde.

Alda conta que a equipe de saúde da Sesai, segundo relato dos indígenas, não está indo periodicamente à comunidade, e que os pataxós, por vezes, precisam se locomover até o centro de São Joaquim de Bicas para serem atendidos em alguma unidade de saúde.

Perguntada pela reportagem do Brasil de Fato como vem monitorando e cumprindo as demandas previstas no acordo sobre a situação da aldeia Naô Xohã, a Vale informou que está em contato permanente com a Fundação Nacional do Índio (Funai) e com a Sesai, para mapear necessidades junto à comunidade indígena Pataxó. Tanto a Secretaria como a Funai não responderam às perguntas sobre a atuação na aldeia.

Os pataxó

O histórico do contato dos pataxó com os não-indígenas se caracterizou por expropriações de terra, transmissão de doenças e violência. A terra concedida pelo Estado em 1926 foi invadida e em grande parte convertida em fazendas particulares de coronéis do cacau na região do Sul da Bahia.

Atualmente, a predominância dos pataxós em Brumadinho se deu por conta das dificuldades de venda de artesanato nas imediações da praça Afonso Pena, na capital Belo Horizonte, onde chegaram em 2011.

A vida na capital mineira tornou-se insustentável pela apreensão de artesanatos e a ausência de um espaço coletivo para viverem. Por isso, a mudança definitiva para o território em São Joaquim de Bicas.

A aldeia Naô Xohã foi criada após o Movimento dos Trabalhadores Rurais sem Terra (MST) disponibilizar aos indígenas uma parte da área ocupada pelo movimento para a formação do Assentamento Pátria Livre, que hoje abriga cerca de 400 famílias.

A localidade, baseada na produção agroecológica e orgânica, também foi afetada pela contaminação do Rio Paraopeba.

O território onde hoje atua a reforma agrária e vivem os pataxó foi ocupado pelo MST em 26 de julho de 2017, após uma jornada de lutas do movimento contra o governo de Michel Temer. A área pertencia ao grupo falido MMX, do empresário Eike Batista, condenado em 2018 a 30 anos de prisão por corrupção ativa pela Justiça do Rio de Janeiro.

Mesmo com dificuldade de infraestrutura, como acesso a água, energia, estruturas de saúde e de educação, os pataxós permaneceram no local e retomaram seu modo de vida comunitário e tradicional que cultivavam na Bahia.

Alda, do Cimi, conta que essas famílias precisaram rapidamente enfrentar os desafios impostos pela sociedade que não apoia a luta indígena após o crime da Vale.

“Eles perderam um pouco da vivência em grupo, tiveram que lidar muito rapidamente com o modo de vida urbano, e agora voltaram à comunidade e precisam reaprender de forma rápida a enfrentar a Vale e seus aliados”, relata.

Recentemente, os pataxó mudaram sua forma de auto-organização na Naô Xohã. Foi formado um conselho de lideranças, com 8 indígenas, em substituição à liderança do antigo cacique Hayô. "Antes tinha só cacique que resolvia tudo, hoje são oito que decidem pela aldeia”, conta Arakuã.

Para Edmundo Dias, do MPF, a realocação do território, desde que parta do desejo dos próprios pataxó, é um passo importante por permitir a coesão e auto-organização da própria comunidade.

“O território tradicional não é um lote, é um espaço do simbólico e do sagrado. E esse espaço foi inviabilizado em decorrência do desastre de 25 de janeiro. A Vale, como poluidora, precisa viabilizar a eles um novo espaço”, destaca.

Há 13 etnias pertencentes ao tronco linguístico Macro-Jê, com cerca de 15 mil indivíduos aldeados em Minas Gerais, de acordo com o Centro de Documentação Eloy Ferreira da Silva. Só na capital, segundo o Instituto Brasileiro de Economia e Estatística (IBGE), há 3.477 membros de alguma etnia indígena.

No último censo do IBGE, em 2010, havia 817.693 indígenas no Brasil, dos quais 502.783 vivem no meio rural e 315.180 no meio urbano.

FICHA TÉCNICA

Texto, vídeo e fotos: Pedro Stropasolas | Edição: Luiz Felipe Albuquerque | Artes: Leonado Rodrigues | Edição de vídeo: Marcelo Cruz e Pedro Stropasolas | Versão para rádio: Geisa Marques | Coordenação: Daniel Giovanaz, Vivian Fernandes e José Bruno Lima | Coordenação de Rádio: Camila Salmazio