A “quadrilha organizada” que se formou em torno da Lava Jato, atendendo ao comando do Departamento de Justiça norte-americano, tornou o Brasil refém dois interesses econômicos dos Estados Unidos – cujo objetivo central seria o controle sobre as gigantescas reservas de petróleo concentradas na cada de pré-sal da costa brasileira.
A avaliação é do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva, feita em entrevista ao site Ópera Mundi, em Curitiba (PR), onde ele está preso há mais de um ano, condenado que foi, sem provas, por esse mesmo grupo – os promotores da Lava Jato em aliança com o então juiz Sergio Moro.
“O Ministério Público brasileiro se submeteu ao Departamento de Justiça dos Estados Unidos da América do Norte. Embutido por trás disso, está o interesse no pré-sal”, afirmou Lula. “Se tem uma quadrilha organizada nesse país, chama-se a Lava Jato. É uma quadrilha organizada. Feita com o objetivo inclusive de roubar dinheiro”.
Segundo Lula, a grande pressão contra o Brasil e os governos do PT, que culmina com o impeachment da presidente Dilma Rousseff, começa quando o país anuncia a descoberta de petróleo na camada de pré-sal.
“Veja, pega o mapa e dê uma olhada. O pré-sal está na divisa da fronteira marítima do Brasil. Se não tivesse estendido para 200 milhas, que dá quase 300 quilômetros, o pré-sal estaria em águas estrangeiras, em águas internacionais. Ele está ali no limite, na divisa. Então, o que aconteceu é que quando nós descobrimos o pré-sal, os americanos logo colocaram para funcionar a 4ª Frota, que tinha sido desativada na Segunda Guerra Mundial”, recorda o ex-presidente.
Na entrevista, em que o Ópera Mundi buscou abordar apenas temas da geopolítica internacional, Lula falou sobre seus esforços, quando presidente, para a integração latino-americana e para o incremento das parcerias do Brasil com África e os países árabes.
Lula abordou ainda a questão das tropas brasileiras no Haiti, enviadas em seu governo, e revelou bastidores do acordo nuclear fechado mem 2010 entre as potências ocidentais e o Irã – no qual o Brasil e a Turquia tiveram papel de destaque enquanto mediadores, com o ex-presidente envolvendo-se pessoalmente nas negociações.
Ele também criticou na subserviência do atual presidente brasileiro, Jair Bolsonaro (PSL), aos Estados Unidos.
“Eu acho humilhante para o Brasil. Isso não faz bem para o Brasil. Não faz bem para o Bolsonaro, se você quer saber. Ninguém gosta de quem não se respeita, ninguém gosta de lambe-botas”.
Sobre a indicação de Eduardo Bolsonaro, filho do presidente, para ser embaixador nos EUA, Lula lembrou ainda é necessária a aprovação do Senado e ironizou:
“É o Senado que, em última hipótese, vai investigar, vai pedir para ele fritar um hambúrguer lá dentro do Senado. Pede para ele assar uma linguiça, pede para ele fazer qualquer outra coisa, pois só hambúrguer não é credencial para alguém ser embaixador. Ser filho do presidente também não é. Isso aqui não é monarquia”.
Leia abaixo a íntegra da entrevista:
Ópera Mundi: Presidente, o mundo parece caminhar para uma nova Guerra Fria, dessa vez entre China e Estados Unidos. Como o senhor vê essa questão, essas disputas políticas acirradas e ferrenhas entre esses dois países? E de que lado o senhor se coloca?
Lula: O mundo, depois de algumas décadas de febre de globalização, onde você dificultava o trânsito das pessoas e facilitava o trânsito de dinheiro, em que a China virou uma espécie de porto seguro para as empresas americanas irem produzir a preços muito baratos ou o Vietnã e vai por aí a fora, ou seja, o mundo, depois dessa febre da globalização, resolveu voltar a favorecer o chamado Estado nacional de uma forma totalmente equivocada. Eu lembro que, em 2009, quando nós fizemos a segunda reunião do G20, em Londres, eu lembro que uma das preocupações nossas era que a gente não deveria deixar de pensar em evitar o protecionismo. Porque, em função da crise econômica, era preciso que a gente fomentasse o comércio ao mesmo tempo que a gente fomentasse o desenvolvimento dos chamados países mais pobres. Essa era ideia básica. Eu lembro que foi na famosa reunião que o [Barack] Obama [ex-presidente dos EUA] me chamou de “o cara”. Foi na reunião em que o Gordon Brown [ex-premiê do Reino Unido] aceitava muitas das coisas que eu propunha na reunião, talvez pelo respeito que ele tinha na minha origem do mundo sindical. E foi uma reunião que produziu coisas extraordinárias, inclusive produziu o efeito de mudanças no controle das organizações multilaterais, como o FMI e o Banco Mundial. Ali se aprovou que tivesse novos personagens, novos dirigentes participando, o que não aconteceu porque o parlamento de alguns países, sobretudo dos Estados Unidos, não referendou a decisão.
Bem, quando eu imaginava que as decisões do G20 iriam proporcionar que tivéssemos mais comércio no mundo, mais abertura e mais dinheiro dos países ricos que estavam com problema de demanda interna, e que portanto poderiam suprir a demanda interna facilitando a venda para países que precisavam de acesso à tecnologia e máquinas novas, isso não aconteceu. Voltou o protecionismo. E aí vem a eleição do Trump, que não causa mal apenas aos Estados Unidos. Ele ganhou as eleições com um discurso muito nacionalista, uma coisa assim ‘América para os americanos’, ‘emprego para os americanos’, ‘vamos mandar embora migrantes’, ‘vamos acabar com mexicano’, ‘acabar com latino-americano’, ‘é só americano e americano’. Este é um discurso que pega nos Estados Unidos e pegou na Europa, e aqui no Brasil também se tentou pegar.
Você lembra que em 2006, quando eu fui candidato e o [Geraldo] Alckmin disputou comigo, ele levantava a dúvida do dinheiro que o Brasil tinha emprestado para o metrô da Venezuela. Ele só parou de falar quando eu alertei ele de que o contrato e o acordo tinham sido feitos pelo Fernando Henrique Cardoso [ex-presidente do Brasil] e corretamente. Porque, no acordo, o Brasil exportava serviço de engenharia para a Venezuela. Eles pararam, mas na campanha da Dilma, por exemplo, voltaram com estaleiro de Cuba sem se importar quanto o Brasil ganhou com o empréstimo a Cuba para fazer o estaleiro. O Brasil exportou mais de 900 milhões de dólares para Cuba em serviços, ferramentas, em peças e transportes. Ou seja, então o mundo voltou a se fechar a partir do Trump em uma guerra fratricida. Porque nesse instante em que a humanidade vive, em que ainda você tem quase um bilhão de pessoas passando fome, pessoas que não têm calorias e proteínas necessárias para viver decentemente, o mundo estava precisando de mais progresso, de mais desenvolvimento, de mais crescimento e de mais acessibilidade de alimentos às pessoas pobres. E isso significa que os países ricos teriam que mudar seu comportamento, coisa que não mudam. Uma coisa que eu fico assustado é que, quando teve a crise de 2008, primeiro teve a crise do subprime nos Estados Unidos, em 2007. Eu lembro disso porque eu estava no Panamá, em uma reunião com mais de 300 empresários brasileiros e panamenhos. E eu lembro a loucura que deu nos empresários que tinham dinheiro nos Estados Unidos e alguns correram logo para lá para tentar resolver o problema do subprime. E depois veio a crise de 2008 com a quebra do Lehman Brothers. Ou seja, em toda essa crise, eu nunca vi o FMI se manifestar, ter um discurso, uma proposta, o Banco Mundial... Nunca, nunca, nunca deram palpite. O Lehman Brothers já custou mais de 14 trilhões de dólares e até agora o FMI não se mete. E ele se mete muito quando a crise é aqui na Argentina. Já conseguiram colocar a Argentina em uma ‘encalacrada’. Então eu penso o seguinte, essa crise que nós estamos vivendo agora ela, carece de liderança política, porque crise política se resolve com discussão política, e os Estados Unidos não estão nem um pouco interessados em resolver o problema. Brigar com a China é brigar com o maior consumidor deles e o maior exportador deles. Brigar com a China é tentar dizer o seguinte: ‘nós vamos trabalhar para atrapalhar o crescimento econômico do planeta Terra’.
Pensando no Brics, o senhor acha que o grupo viveu um ataque político e econômico? E que a China vive isso agora, de que alguma forma aconteceu com o Brasil?
O Brics nunca foi tratado com respeito pelos países ricos, nem pelos europeus e nem pelos americanos. Porque quando nós começamos a fazer as primeiras reuniões do Brics eu pelo menos tinha em conta de que o Brics tinha que ter um banco de desenvolvimento, e foi criado no governo da Dilma. Eu não sei como está funcionando agora, mas o Brics tinha que criar uma cesta de moeda para que a gente não ficasse dependendo do dólar como moeda para notas de exportações. E o Obama tinha uma preocupação muito grande. Eu lembro que quando nós criamos o Brics, eu lembro que o Obama tinha uma preocupação se a gente ia criar ou não uma moeda. Quando a gente falava de banco sul-americano, de banco do Brics eles ficavam horrorizados que a gente queria criar uma nova moeda. E eu achava que a gente tinha que criar uma moeda para fugir, você não pode ficar dependente da moeda de um país que tem a máquina de produzir aquela moeda. Você não pode ficar dependente, não era assim. Eles tomaram a atitude e, na verdade, eles tomaram para si a ideia de que o dólar seria a moeda internacional do comércio sem falar com ninguém, foram impondo, impondo e o mundo hoje depende disso. Então, eu acho que o Brics nunca foi bem aceito. Eu acho que o Brics deixou de fazer algumas coisas, porque as pessoas também não sabiam, a gente não sabe de tudo na mesma hora, mas o Brics deve funcionar como a criação de uma nova proposta de desenvolvimento e uma nova proposta de relações internacionais e comerciais entre os países. O Brics pode ser um modelo para equilibrar o mundo e livrar um pouco o mundo da dependência que o mundo tem da arrogância de alguns governos americanos.
Nesse cenário, qual o papel da esquerda mundial? É retomar a ideia de socialismo ou olhar para melhorar a vida dentro do capitalismo?
Eu acho que a esquerda tem que pensar o que ela quer sobre muitos assuntos. Eu acho que depois da queda do muro de Berlim, muita coisa ficou mais difícil para a esquerda. Eu na verdade fui muito criticado no Brasil porque eu era um cara favorável à queda do muro de Berlim. Eu nunca aceitei a ideia de pensamento único, nunca aceitei a ideia de que tudo seria resolvido se estivesse escrito em um manual e eu acho que a queda do muro de Berlim, ela permitiu que a esquerda pudesse voltar a pensar. A pensar livremente novas formas de organização, a pensar livremente novas formas de fazer sindicalismo, a pensar novamente em brigar para melhorar de vida, mas isso não aconteceu. A direita foi muito mais ousada do que esquerda, porque a direita partiu para temas, muitas vezes, temas de interesse pertinentemente do Estado. Por exemplo, o discurso contra os migrantes, ou seja, é um discurso muito forte em qualquer país do mundo. Veja o que está acontecendo agora no Brasil com os discursos do governo em relação à Venezuela. Quando começou essa xenofobia contra os imigrantes, eu lembro que eu fui ao Ministério da Justiça com o Tarso Genro e assinei a legalização de 150 mil bolivianos que estavam no Brasil para dizer que os imigrantes não são os problemas desse país. Os imigrantes, em muitas circunstâncias, eles foram a salvação. No Brasil, por exemplo, trouxe muitos imigrantes aqui para primeiro misturar nossa raça, fazer uma miscigenação no povo brasileiro; segundo, para aprender a produzir agricultura; e terceiro para ter mão de obra qualificada, não só de negros, mas de europeus. Então, nós não soubemos fazer esse discurso. Então eu acho que a esquerda tem que pensar um novo discurso, e assumir efetivamente a necessidade de que só vale a pena governar se você tiver com o povo no centro de todas as decisões. Para que você quer governar? Você quer governar para melhorar a vida do povo. Não tem outra razão para você governar. Você não quer ser governo, pelo menos na lógica da esquerda, para resolver o problema do esquema financeiro. Você não quer governar para resolver o problema dos grandes empresários. Você quer governar para resolver o problema das pessoas que não têm acesso, das pessoas que estão marginalizadas. Eu lembro que eu tinha divergências com alguns companheiros meus europeus que vinham ao Brasil e eles achavam que nosso discurso do PT era muito radical. Era muito radical nos dias de hoje, porque eles fizeram esse mesmo discurso nosso logo no pós-guerra, ou no começo do século 20, eles fizeram esse mesmo discurso. Agora, como eles conquistaram o chamado Estado de Bem-Estar Social? E eu acho que foi uma coisa fantástica, pelo seguinte: ninguém agradece aos russos, mas foi graças à Revolução de 1917 que fez com que os europeus caminhassem para a criação de um estado de bem-estar social, que agora está acabando. Então o que a esquerda tem que fazer? A esquerda precisa voltar não a construir seu discurso original, mas a esquerda precisa saber o que está acontecendo no mundo, ou seja, na medida em que você não tem uma confrontação mais direta, você tem apenas um lado capitalista impondo regras, onde tudo, tudo é feito em função de melhorar a produtividade, de melhorar a rentabilidade e não tem nada pensando em como melhorar a humanidade. Como melhorar? Eu quero mais tecnologia para quê? Eu quero mais desenvolvimento para quê? Eu quero mais produção para quê? Tudo só tem sentido se melhorar a vida do povo.
Usaria a palavra socialismo para isso?
Você pode usar a palavra socialismo. Eu sinceramente acho que não tem uma única coisa que pode resolver isso. Ou seja, se você achar que em cada país tudo tem de ser igual e você não levar em conta experiências culturais, a história de cada país, você pode resultar no erro de quem construiu o Manifesto Comunista, achar que a partir do Manifesto tudo estava resolvido, não estava. Ou seja, você pode ter um fio condutor de uma proposta que pode ser considerada uma proposta socialista, mas para você discutir socialismo você tem que discutir que tipo de socialismo. Você quer um socialismo quando você tem um partido único? Você quer um socialismo onde o sindicato não possa fazer greve? Não possa protestar? Não possa ter pauta de reivindicação? Não tem liberdade cultural, não tem liberdade religiosa? Esse para mim não interessa. Eu sou amante da liberdade, em qualquer que seja o sistema de governo e qualquer que seja o regime político.
O senhor liderou o movimento de presidentes progressistas, de governos progressistas da América Latina, que apostou na integração da América Latina e em uma certa autonomia em relação aos grandes países, aos Estados Unidos e à Europa. O que deu errado nesse processo? Considerando que hoje esses países tendem a um isolamento e eventualmente uma relação direta com os Estados Unidos como o caso do Brasil na política externa do governo Bolsonaro.
Eu não liderei. Eu compartilhei com a Argentina, compartilhei com a Venezuela, com o México, com a Bolívia, com muita gente da América Latina, um outro jeito de discutir integração. Por isso que nós nos juntamos para romper com a ideia da Alca, que era uma ideia dos Estados Unidos que tinha como objetivo fazer um grande acordo com o Brasil e sufocar o restante dos países de economia mais fraca. Nós tratamos de fortalecer o Mercosul para poder romper com a Alca. E rompemos. Rompemos em Mar del Plata com a presença do [George W.] Bush na reunião para a gente dizer que queríamos criar um sistema latino-americano de desenvolvimento. Nós queríamos criar um grupo econômico que pudesse negociar com a União Europeia, que pudesse negociar com os asiáticos, que pudesse negociar com os Estados Unidos enquanto grupo, porque nós éramos um monte de países fracos, mas junto a gente poderia ficar mais forte. Eram quase 460 milhões de habitantes. E isso acho que foi o melhor momento da América Latina. Nós tivemos dificuldades porque nós ainda tínhamos 500 anos de história em que os países da América do Sul não confiavam no Brasil. As aulas na maioria das escolas militares dos países da América do Sul eram a aula de colocar o Brasil como inimigo. O Brasil era o inimigo da América do Sul. O pessoal tinha que ter medo do Brasil. No México, pergunta até hoje por que o empresário mexicano tem medo do empresário brasileiro e não tem medo dos empresários americanos que estão sufocando ele lá dentro? Então, a gente ainda tinha muito preconceito histórico, muita coisa que dificultava criar instituições democráticas. Você sabe que nós, latino-americanos, falamos demais, para tudo a gente constrói uma tese, constrói um discurso e isso atrapalha um pouco. Então, eu acho que nós avançamos muito, foi o melhor momento da América Latina, com a criação da Unasul, com a criação da Celac. A Celac foi a primeira reunião que participou Cuba, sem participação de Estados Unidos e de Canadá. Foi a primeira reunião que esses dois países não participaram. Foi feito em Sauípe, na Bahia. Depois, nós fizemos uma coisa extraordinária que foi uma reunião entre a América do Sul e os países africanos. Depois nós fizemos uma reunião entre América do Sul e os países árabes, foi em um congresso nacional. Havia aquela loucura de sempre, de que nós estávamos fazendo um movimento contra Israel, que era juntar os países árabes contra Israel, e na verdade a gente não queria juntar nada contra nada. O que a gente queria era provar que nós saímos de uma balança comercial de US$ 2 bilhões com os países árabes e fomos para US$ 12,5 bilhões, em 2011.
Repetiria essa prioridade para a África, Ásia, América Latina e Oriente Médio?
Repetiria. Quando você toma uma decisão de criar novos parceiros, você não está negando os parceiros que você tem. Um país do tamanho do Brasil não pode ficar dependente de um único país, ou de dois países. O Brasil é um país que não tem contencioso, nosso único contencioso foi com o Paraguai há mais de 150 anos atrás. Ou seja, nós precisamos construir uma relação de amizade que possa permitir que o Brasil transite em todos os países do mundo. Em alguns o Brasil tem o papel de ser solidário. Como é que você vai pagar nossa dívida histórica com os africanos? Ora, você não vai pagar com dinheiro, você vai pagar isso em solidariedade, em transferência de tecnologia. É por isso que eu nunca tive nenhum problema de levar a Embrapa para ficar em Gana. É por isso eu não tive nenhum problema de fazer a fábrica de antirretrovirais em Moçambique para ajudar cuidar da Aids. É por isso que eu não tive problema de criar a universidade aberta em Moçambique, em parceria com a Universidade do Ceará. A última vez que eu fui lá estava funcionando e tinha 900 alunos fazendo universidade. Acho que tudo isso está acabando. Eu fui, por exemplo, à União Africana e ela tinha preparado um projeto de desenvolvimento para a África, chamado... acho que Fida. Era um programa de desenvolvimento, de investimento e de infraestrutura da ordem de US$ 360 bilhões. Eu fui ter uma reunião com a senhora [Nkosazana Dlamini-] Zuma, que era a presidente da União Africana, para propor para ela que um jeito de fazer com que a África se desenvolvesse era ela fazer um convite em nome da União Africana para todos os bancos de desenvolvimento do mundo. Da China, do Brasil, dos Estados Unidos, da Alemanha, da França, da Malásia, todos. Chamar o Banco Mundial, chamar o FMI e chamar todas as empresas envolvidas na construção de infraestrutura para que eles oferecessem um pacote de obras para desenvolver a África. Sobretudo na questão hidrelétrica. Você tem país africano que apenas 30% do dia tem energia elétrica, você tem país africano que passa quase o dia todo apagado porque não tem energia elétrica. Então, sem energia elétrica o resto não acontece. Bom, eu pensava assim. Esse era o papel do Brasil na África. O papel do Brasil na América Latina era de um país que deveria dar garantia de tranquilidade e de democracia nesses países. Ou seja, como é que você mantém uma relação com um país como o Uruguai, que é um país pequeno, mais desenvolvido culturalmente que o Brasil, como é que você mantém uma relação em que se construa uma certa lealdade? É se você abrir espaço para que o Uruguai não dependa tanto de outros. Como é que você mantém com a Bolívia? Aliás, falar da Bolívia é importante lembrar aos desavisados que a melhor economia hoje da América Latina está na Bolívia, que a menor inflação está na Bolívia, que a maior reserva, depois do Brasil, está na Bolívia.
Citando a Bolívia, no início do governo teve um problema com a Bolívia e depois isso foi solucionado, que foi a questão do petróleo. O petróleo hoje voltou a ser tema por conta dos ataques à Arábia Saudita. O senhor já falou que o pré-sal foi um dos motivos do golpe contra a Dilma Rousseff, o interesse norte-americano no petróleo brasileiro. Qual é a importância do petróleo nesse jogo?
Primeiro, eu não tive um conflito com a Bolívia. O Evo teve um conflito comigo. E eu não esqueço nunca que aqui no Brasil, sobretudo a elite paulista, achava que meu governo era frouxo porque eles queriam que eu brigasse com o Evo Morales. E na minha cabeça passava a seguinte ideia: como é que pode um metalúrgico de São Bernardo do Campo brigar com um índio cocaleiro da Bolívia? Eu queria brigar com o Bush, mas o Bush não quis brigar comigo nunca. Aliás, o Bush teve uma boa relação comigo. Como que eu vou brigar com o Evo? Ademais, eu achava que o Evo tinha razão. A Petrobrás na Bolívia era muito pedante. A Petrobrás na Bolívia tinha uma direção que era muito arrogante. Ela achava que ela governava a Bolívia, e o gás era do Evo, ele tinha o direito daquele gás. Eu nunca me opus a isso. Eu não esqueço uma história fantástica, que é o seguinte: eu estava em Viena, não estava vendo um concerto, não, estava participando de uma reunião da União Europeia e da América Latina, e estava no auge da briga. Foi no dia que o [Hugo] Chávez agrediu o Senado brasileiro. E foi o primeiro dia que nós fizemos uma resposta dura ao Chávez, em defesa do Senado do Brasil. Você vai lembrar se você for ver a história do momento. Naquele dia, eu estava no hotel e chamei o Evo Morales. Participou da reunião, eu não sei se o Chávez participou, eu sei que o Raúl Castro [ex-presidente de Cuba] participou da reunião. E eu peguei o mapa da América do Sul para mostrar ao Evo o que ele estava fazendo comigo. E eu dizia: “Evo, você está com uma espada na minha cabeça. Você está impondo determinadas coisas em função de que o gás é seu. Agora, deixa eu te dizer uma coisa, eu vou colocar uma espada na sua cabeça para que a gente equilibre o jogo. Olha o mapa da América do Sul, você não tem para quem vender seu gás. Para vender para a Argentina, você tem que fazer um gasoduto, nem você e nem a Argentina tem dinheiro. Para vender aos Estados Unidos, você tem que passar pelo território da Colômbia, pelo Peru e pela Venezuela. Para você sair no Oceano Atlântico, tem o rio Madeira, que é uma boa possibilidade. Agora, veja no mapa: você só tem o pedacinho do rio Madeira. Então, estou te dizendo isso meu querido” - ele me chamava de hermano maior, hermano ‘más viejo’, ele falava - “estou dizendo isso, hermano, porque é o seguinte, eu estou com a espada na sua cabeça, eu vou criar o Plangás”- e criamos o Plangás no Brasil - “e vou provar que eu não dependo mais de você. Quando eu não depender de você, e dizer para você, Evo, eu não quero mais o teu gás, você vai dizer: ‘Não, Lula, pelo amor de Deus, eu preciso vender para o Brasil porque é o único país que eu tenho que vender”’. E reconheci que tinha que fazer ajustes do gás da Bolívia. Reconheci que o Brasil tinha que tratar o Evo, a Bolívia como um país soberano. Falei para o Evo: “se você pagar o preço, o gás é seu. Você faz o que quiser”. E até hoje eu... Não sei como é que está agora, mas está vencendo agora dia 19 o acordo do gasoduto da Bolívia. Eu não sei se o Brasil ainda precisa, se vai renovar. Eu acho que precisa renovar, porque a Bolívia é o único país sul-americano superavitário, como o Brasil, por conta da importação de gás. Mas eu não ia brigar jamais com a Bolívia.
A segunda coisa, o problema do petróleo. Eu li um livro que me fascinou muito, que foi o livro chamado “Petróleo”. Eu tenho dificuldade de falar nome em inglês, então eu esqueço com muita facilidade o nome do escritor [o autor do livro é o norte-americano Daniel Yergin]. Mas é um livro de quase 1.000 páginas que conta a história do petróleo desde que ele foi descoberto, pela primeira vez, nos Estados Unidos. De lá para cá, de 1859 até 2019... O petróleo está perdendo agora para a chamada indústria de dados, mas a verdade é que o petróleo sempre determinou a política mundial. Sempre, em todos os momentos. O petróleo causou mais guerra do que paz. E sempre na cabeça disso está quem? Os Estados Unidos. Hoje, todo mundo precisa saber que a guerra do Iraque foi feita por conta do petróleo. Todo mundo precisa saber que a Petrobras descobriu, nos anos 80, o maior poço contínuo de petróleo no Iraque, que tinha por volta, eu não sei o número exato, por volta de 80 bilhões de barris de reserva. E que o Saddam Hussein, quando tomou a informação, tirou a Petrobras de lá e o Brasil pagou vendendo Passat para o Iraque. Esse petróleo estava lá e é por isso que foi feita a guerra com o Iraque. Não tinha esse negócio de armas químicas, cadê as armas químicas? Foi esse [John] Bolton que tirou o [José] Bustani da agência que cuidava de armas nucleares, de armas químicas, porque o governo brasileiro se acovardou. Então, o petróleo sempre foi o causador no Oriente Médio de várias guerras, vários conflitos.
E agora a mesma coisa. Veja, tentar jogar a culpa em cima do Irã é uma velha tática americana que não sabe trabalhar sem ter um inimigo. O inimigo é sempre ou latino-americano, ou árabe, ou russo, agora o chinês. Você tem que ter essa cara para ser inimigo. E a cara do anjo salvador da democracia é o americano. Aliás, os americanos nesse aspecto são fantásticos. Ou seja, eles tomaram uma surra no Vietnã, que até hoje eles não esqueceram, mas, veja, para a molecada que assiste esses filmes de super-heróis, do Rambo e outros que tais, um cara ganha sozinho a guerra. Eles ganharam todas as guerras, todas as batalhas no Vietnã, no cinema. Então, os americanos não sabem trabalhar sem ter um inimigo. Então, o inimigo agora é o Irã.
Eu só queria lembrar o seguinte: o Irã não é um país qualquer. É preciso respeitar a cultura milenar do Irã, é preciso respeitar os 80 milhões de iranianos, é preciso respeitar as relações fronteiriças com um país muito importante, que é a China. E é importante que se descubra, de verdade, quem provocou a explosão da refinaria ao invés de você culpar, a priori, o inimigo. É mais ou menos o que aconteceu comigo aqui. É mais ou menos. Ou seja, inventaram uma mentira e ela foi comprada e vendida à sociedade pela Globo, a partir da mentira não tem que explicar mais nada. Vamos criar na sociedade uma convulsão porque nós não conseguimos derrotar o PT em eleições. Já tínhamos ganhado quatro, íamos ganhar a quinta e se tivéssemos chances íamos ganhar a sexta. Porque somos melhores que eles, organizamos melhor que eles e fizemos mais do que eles. Então, encontraram um jeito e contaram uma mentira para a sociedade e eu estou aqui. Eu estou aqui. Quando essa mentira vai ser desenvolvida e explicada para a sociedade? O Intercept está cumprindo uma parte. Meus advogados, na minha defesa, cumprindo outra parte. A imprensa brasileira... Você tem uma parte da imprensa tão canalha, mais tão canalha que eles não deram até hoje uma única notícia do Intercept. Uma notícia. Você pega o Jornal Nacional, só deram para livrar a cara do Faustão (que aparece em uma das mensagens divulgadas). Aí explicaram. Depois, não sei se deram algum pedacinho, para justificar a cara de alguém. Mas o dado concreto é que, na hora de publicar as mentiras como verdadeiras, eu tinha todo santo dia vinte minutos no Jornal Nacional mentindo e divulgando as mentiras do [Jair] Bolsonaro e as mentiras do [Deltan] Dallagnol. Do Bolsonaro não, desculpa. As mentiras do [Sergio] Moro e as mentiras do Dallagnol. Pois bem, eles não queriam saber se era verdade. Eles não perguntavam para os meus advogados, eles não queriam saber a contrainformação. Agora, eles encontraram um argumento que não reconheço. Se tem uma quadrilha organizada nesse país chama-se a Lava Jato. É uma quadrilha organizada. Feita com o objetivo inclusive de roubar dinheiro. Pega um acordo de R$ 2,5 bilhões da Petrobras, pega o acordo com a Odebrecht, que está em um acordo de leniência que nós estamos tentando receber informações, que já pedimos inclusive ao Supremo Tribunal Federal, queremos o acordo de leniência da Odebrecht com a Lava Jato.
Desculpa interromper, mas queria voltar para as questões internacionais.
Mas que esse negócio da Lava Jato é o mais internacional de todos os negócios.
Por quê?
Porque, na minha opinião, o Brasil é refém. O Ministério Público brasileiro, através do [Rodrigo] Janot , através do Moro e através da Lava Jato, o Ministério Público brasileiro se submeteu ao Departamento de Justiça dos Estados Unidos da América do Norte. Embutido por trás disso, está o interesse no pré-sal.
E quem que é o responsável por isso? É o Obama?
Veja, deixa eu te falar uma coisa. Em um país como nos Estados Unidos, é muito difícil você culpar o presidente. Eu acho que o presidente é o último a saber, lá e no Brasil. (…) O problema é que, desde que nós descobrimos o pré-sal... Veja, pega o mapa e dê uma olhada. O pré-sal está na divisa da fronteira marítima do Brasil. Se não tivesse estendido para 200 milhas, que dá quase 300 quilômetros, o pré-sal estaria em águas estrangeiras, em águas internacionais. Então, ele está ali no limite, na divisa. Então, o que aconteceu que [quando] nós descobrimos o pré-sal, os americanos logo colocaram para funcionar a 4ª Frota, que tinha sido desativada na Segunda Guerra Mundial, logo depois da Segunda Guerra Mundial. Quando eles fizeram isso, nós discutimos e eu resolvi propor então aos países latino-americanos, da América do Sul, a criação de um Conselho de Defesa da América do Sul, que era para tentar fazer um contraponto. Eles diziam, à época, que o petróleo era muito caro e que não dava para explorar. E hoje, o barril do petróleo, do pré-sal, está a US$ 6,5. Eu vi uma entrevista do [geólogo Guilherme] Estrella esses dias, em um debate, estava quase o mesmo preço do petróleo da Arábia Saudita, que é tirado quase na face da Terra. E vamos buscar ele a quase 7.000 metros de profundidade. E nós tínhamos a ideia de que o pré-sal, quando nós cunhamos a ideia de que ele era o passaporte para o futuro, é porque nós achávamos que, através do pré-sal, a gente deveria criar mais refinaria para exportar derivados e não óleo cru. E que a gente deveria fazer do pré-sal o passaporte do futuro. Ou seja, você destinar uma boa parcela do recurso do pré-sal investimento em educação, tecnologia e saúde. E ao mesmo tempo, criar uma forte indústria petroleira no Brasil. Uma indústria de gás, óleo, indústria naval…
E o ataque da Lava Jato acha que está relacionado a impedir isso.
Eu acho. Acho que está intimamente ligado. Porque, veja, você está lembrado que em 2012, se não me falhe a memória, eu não lembro as datas, roubaram informações secretas da Petrobras, roubaram um container. Até hoje não se sabe onde foi parar esse container com informações sigilosas da Petrobras. A empresa que dava certificação para a Petrobras, na época, parece que era a empresa do vice-presidente do Obama [na verdade, a empresa responsável pelo container era a Halliburton, da qual já foi presidente o então vice-presidente do governo de George W. Bush, Dick Cheney]. Os americanos com as informações da Petrobras, eles tinham importância, por isso que eles não aceitavam a Lei da Partilha.
Acha que o governo Dilma cai também por conta disso?
Eu acho que cai. Era preciso tirar o PT.
Mas por que os governos da Bolívia, Cuba e Venezuela conseguiram resistir e o governo brasileiro não?
Olha, deixa eu te falar uma coisa, pois são coisas diferentes. São coisas diferentes, são culturas diferentes. Na Bolívia, eu lembro que na Venezuela quando eles deram um golpe no Chávez, em 2002. Quando eles deram o golpe na Venezuela, eu tomei posse em 2003, a primeira coisa que nós fizemos foi criar um Grupo de Amigos para tentar fazer um referendo revogatório que foi uma coisa que deu fôlego ao Chávez para continuar governando a Venezuela sempre muito tensa. Aqui no Brasil, veja, primeiro, eu não trabalhava com a ideia de que o PSDB, e sobretudo o Aécio [Neves], fosse fazer uma campanha do ódio que fizeram contra a Dilma. E depois que terminou a campanha, que perderam, resolveram boicotar o governo da Dilma. Ou seja, na verdade quando eles elegeram o Eduardo Cunha como presidente da Câmara, a ideia era não deixar a Dilma governar. A Dilma tentou mudar com medida provisória a questão da desoneração. Porque a Dilma tinha desonerado, entre 2011 e 2014, R$ 540 bilhões, e ela queria acabar com a desoneração, porque nenhum caixa consegue perder tanto dinheiro assim. E colocaram o Eduardo Cunha para fazer maldade com ela. Ela mandava uma medida provisória para desonerar a fábrica de papel assim, e eles desoneravam 500 coisas. E foi criando um rombo no governo. E eu acho que nós demoramos para fazer, e quando nós fizemos foi de forma atabalhoada e perdemos parte de nossa base. Se você for conversar com a CUT, for conversar com as organizações sindicais, vai perceber que muita gente estava muito puta com o PT por conta das propostas de reformas que a gente começou no final do governo da Dilma. Veio a posse e aí a verdade é que a Dilma não conseguiu mais governar. Mas vamos lembrar, para as pessoas perceberem, que o Brasil, em dezembro de 2014, tinha 4,3% ou 4,6% de desemprego, era o menor da história do Brasil. E era um desemprego comparado à Dinamarca, comparado à Finlândia, à Noruega. Então, nós não conseguimos porque também o Congresso não trabalhou para ajudar a Dilma. Ali já havia a ideia de que era preciso infernizar a vida do PT e a vida da Dilma. Mesmo assim, eu tinha em mente que eles não estavam atrás do impeachment, só. Eu tinha em mente, já naquela época, que o objetivo deles era evitar que o PT governasse de 2014 a 2018, e que o PT pudesse me eleger em 2018. Aí seria a morte para os tucanos. Ou seja, porque o sonho do Fernando Henrique Cardoso era ficar 20 anos, e quem ia ficar mais de 20 anos era o PT no governo. E se nós ficássemos os 20 anos, certamente nós teríamos consertado esse país, muito mais do que fizemos nos primeiros 14 anos.
Ainda sobre os Estados Unidos, para encerrar o tópico, que eu acho importante, o senhor se sentiu traído pelo Obama quando ele atrapalhou o acordo Brasil-Turquia-Irã?
Olha, ele não atrapalhou o acordo. Eu acho que o Obama foi vítima. O que ficou claro é que é o seguinte: nenhum país que compõe o Conselho de Segurança da ONU tinha conversa com o [Mahmoud] Ahmadinejad. Eu, em uma reunião do G20, perguntei ao Obama, perguntei ao [então presidente francês, Nicolas] Sarkozy, perguntei para a [chanceler alemã Angela] Merkel, pro [então premiê italiano, Romano] Prodi, perguntei para vários companheiros europeus e para o Obama: vocês já conversaram com o Ahmadinejad? Ninguém tinha conversado com o Ahmadinejad. Eu falei: Como é que vocês querem encontrar um caminho de paz se vocês não conversam com a pessoa?
Você não tem noção da minha conversa com o Ahmadinejad. Ahmadinejad vinha ao Brasil, ele não tinha muita relação comigo, a relação dele era com o Chávez e com o Evo Morales. Um dia eu estava em Nova York, ele estava lá e eu pedi uma conversa com ele. Porque ele tinha dito que os judeus queriam dizer que só eles tinham morrido na guerra e que era mentira de seis milhões [mortos no Holocausto]. Eu pedi uma conversa e fui falar para o Ahmadinejad, olha, eu quero saber se você pensa isso sobre os seis milhões de mortos de judeus em campo de concentração? Porque é verdade que morreram 60 milhões na guerra, mas os judeus não morreram na guerra, eles foram assassinados nos campos. É diferente. Então você não pode dizer que os judeus querem assumir o sofrimento pela guerra, porque eles foram vítimas. Não eram soldados. Eram seres humanos, crianças, mulheres e homens que foram assassinados barbaramente pelos nazistas.
Disso surgiu a conversa do enriquecimento de urânio. E eu falei para ele: olha Ahmadinejad, é o seguinte, se você quiser eu vou até Teerã conversar com você. Agora, o seguinte, eu defendo que você faça o enriquecimento de urânio nos moldes em que o Brasil faz. O Brasil enriquece urânio para fins científicos, e o Brasil quer o mesmo para você. Se você estiver disposto a conversar, eu vou ao Irã. E ele topou. Antes de ir, o Celso Amorim foi duas ou três vezes de forma meio sigilosa. Eu conversei com [o ex-presidente chinês Hu] Jintao, com Sarkozy, conversei com [o então premiê russo, Vladimir] Putin, depois eu conversei com o [então presidente russo Dmitri] Medvedev... Uns queriam que eu fosse, outros não queriam. Os americanos não queriam que eu fosse em hipótese alguma. O Obama não queria, depois o Obama achou que ia. O Obama até mandou uma carta para mim de coisas que ele achava que poderiam ser negociadas.
Só que eu acho que o Obama não conversou com a Hillary Clinton, e a Hillary Clinton era contra, era contra. Olha, eu saí do Brasil para ir até o Irã. Quando eu chego em Moscou, nós fomos fazer uma reunião e Medvedev falou: “olha Lula, eu recebi um telefonema do Obama pedindo para você não ir, pois você vai ser enganado e porque não sei das quantas”. Eu saí de Moscou, demos até um entrevista coletiva, em que eu falava que eu tinha 90% de crença que nós íamos fazer o acordo. Saí de Moscou e fui para o Catar. Cheguei em Doha e fui encontrar o emir [na época, Hamad bin Khalifa]. O emir me cumprimentou e falou: Lula, acabei de receber um telefonema da Hillary Clinton pedindo que você não fosse até Teerã, porque os iranianos não cumprem a palavra, porque eles são mentirosos e não sei das quantas. E ainda dizia com a arrogância da Hillary, dizia que, ah, Lula é ingênuo. Sabe a prepotência dos americanos de que só eles não são ingênuos? Eu falei eu vou. Eu fui. E cheguei lá e nós conseguimos fazer um acordo muito melhor do que o acordo que eles fizeram agora. O que me surpreendeu? É que ao invés dos meus irmãos, dos países ricos, ficarem contentes que eu tinha, junto à Turquia, ter resolvido o problema que eles não tinham conseguido resolver, eles ficaram com ódio. Ficaram com ódio. E qual foi a resposta que eles deram? Além de [não] agradecer, fizeram novos bloqueios econômicos ao Irã.
Aí eu fiquei puto da vida, peguei a carta que o Obama tinha mandado e divulguei. E divulguei. Porque não pode ter molecagem nesse sentido. Não pode haver molecagem. Sabe, eu perdi quase três dias e fui ofendido. Se você pega as matérias dos jornais conservadores aqui no Brasil, você pega um jornal troglodita, que nem o Estadão, que me triturava. Me triturava, “que Lula não sei das quantas”, “Lula vai no eixo do mal”. Pois bem, nós conseguimos fazer Brasil e Turquia sob a batuta do meu querido companheiro Celso Amorim, que eu cansei de elogiar o Celso Amorim como o melhor chanceler do mundo no período em que ele foi meu chanceler, o mais competente de todos.
Queria falar um pouco de América Latina. Primeira questão, gostaria que fizesse uma avaliação breve sobre a eleição na Argentina. Qual sua expectativa com a eleição? O senhor acha que isso pode abrir um novo ciclo progressista? Temos que ser breves.
Mais do que expectativa, eu tenho desejo com [o peronista Alberto] Fernández ganhando as eleições. Acho que a Argentina precisa de uma pessoa que pensa no povo argentino, e não uma pessoa que pensa no mercado.
Qual é o balanço que faz sobre o Foro de São Paulo desses 30 anos? Pensando um pouco no Brasil e na Argentina, especialmente.
Olha, eu acho que o Foro de São Paulo pode ser maior se ele colocar as pessoas mais importantes para participarem do Foro de São Paulo. Por exemplo, eu quando fui presidente, não participava do Foro de São Paulo. O Chávez não participava do Foro de São Paulo, o [então presidente argentino Néstor] Kirchner não participava, ou seja, a gente um pouco que abandona... E eu acho que o Foro de São Paulo pode ser uma coisa muito importante para uma organização política dos setores de esquerda da América Latina. Eu não sei se você sabe, várias vezes eu fui convidado para ser presidente da Internacional Socialista – pelo companheiro [ex-premiê de Portugal, José] Sócrates, pelo [ex-premiê da Espanha] Felipe González, pelo [ex-premiê espanhol José Luis Rodríguez] Zapatero, pelo [ex-premiê italiano Massimo] d’Alema, e eu sempre me recusei. Primeiro que o Brasil, o PT não era filiado à Internacional. Segundo, porque a Internacional tem a cara da Europa. Jamais poderia ser presidida por um latino-americano, teríamos que criar uma coisa nossa. E o Foro de São Paulo é essa coisa. Agora tem o Fórum de Puebla [na verdade, o Grupo de Puebla], de que participou o [ex-prefeito de São Paulo Fernando] Haddad, o Celso Amorim e que pode ser uma coisa interessante.
O fato de vocês não terem participado, o senhor, o presidente Chávez, é um dos motivos por essa fantasia que existe em torno do Foro de São Paulo? Que é um grande conluio mundial…
O Foro de São Paulo é atacado da forma mais imbecil, mais imbecil. Se esses trogloditas que atacam o Foro de São Paulo participassem de uma reunião, eles iriam perceber que, sabe, na verdade, que eles falam do Foro de São Paulo, que eles falam de tudo. Falam de artistas, de cultura, falam de LGBT, falam de sindicato, falam da CUT. Ou seja, tudo virou um monstro para eles. Ou seja, a ignorância do desconhecimento. Essa gente nunca participou de nada que fosse plural. E o Foro de São Paulo é uma coisa plural, é um fórum carente, poderia ser mais forte, mais incisivo. Poderia ser uma grande organização.
A ausência de vocês…
Eu acho que a ausência prejudica. Se você tem um encontro na Venezuela que não participa o maior líder, se você tem no Brasil que não participa, se você tem na Argentina que não participa, que não participa no Uruguai, obviamente vai ficar enfraquecido.
Quinze anos depois do envio das tropas...
Aliás, só pra dizer uma coisa que é importante, eu não posso perder a oportunidade de dizer que o Foro de São Paulo foi uma criação nossa, do PT. Notadamente do Marco Aurélio [Garcia, ex-assessor internacional da Presidência da República] e minha, depois das eleições de 89. Eu nunca imaginei que poderia ganhar uma eleição por via do voto. Em 1989, eu descobri que era possível. Aí tomei a decisão de convocar uma reunião da esquerda latino-americana, que ainda pensava muito em luta armada, para mostrar a ela que era possível ganhar as eleições se organizando. E graças a Deus, quase todos os partidos que compõem o Foro de São Paulo já governaram os países da América Latina. E foi um momento muito bom para os países.
Falando de Haiti. Hoje, o Haiti, 15 anos depois do envio das tropas brasileiras, continua em situação de bastante subdesenvolvimento e destruído, submetido a um governo oligárquico. E os generais que foram lá, hoje fazem parte do governo Bolsonaro. O senhor se arrepende de ter enviado essas tropas?
Não, não me arrependo. Veja, são coisas distintas. Sempre que você tiver que fazer um julgamento de procedimento humano, você precisa vincular o momento histórico em que as coisas aconteceram. O Brasil não foi lá para consertar o Haiti. O Brasil foi lá para tentar manter um clima de paz, de harmonia até se reconstruir as eleições, eleger as pessoas e criar a própria polícia do Haiti. Foi para isso que o Brasil foi para lá. Em contrapartida, os Estados outros deveriam fornecer ajuda monetária para que a gente pudesse recuperar o Haiti. Um país que não tem o palácio de governo, que não tem a catedral em construção é um país que não existe. Vamos ser francos. Eu tinha muita amizade com o [ex-presidente haitiano René] Préval. O governo do Brasil, junto com Cuba, criou a primeira UPA lá no Haiti. Lamentavelmente, as pessoas são hipócritas, porque as pessoas não dão dinheiro. As pessoas querem dar dinheiro para as ONGs deles lá dentro do país, com a ideia de que tem muita corrupção [no governo]. Então eu não vou dar dinheiro para o governo, vou dar dinheiro para ONG americana, alemã. Quando deveria dar o dinheiro diretamente para o Préval, ou para outro presidente que fosse eleito lá. Eu lembro que colocaram o [ex-presidente norte-americano] Bill Clinton lá para ser o arrecadador, não arrecadou nada. Eu não tenho números, mas se conversar com o Celso Amorim, ele te dá. O Brasil parece que foi um dos poucos países que colocou dinheiro em cash no Haiti, porque a gente achava que deveria recuperar o Haiti. O Brasil mandou gente para lá para tentar ajudar na recuperação da agricultura familiar e no reflorestamento do Haiti. Agora, faz dez anos que eu deixei o governo.
Mas mandou os generais que estão no governo de Bolsonaro.
Mas os generais não eram meus. Você sabe que o presidente da República não escolhe o general, é uma bobagem imaginar que presidente escolhe general. Eles têm uma carreira, e na carreira que eles têm vão galgando degraus. O alto comando se reúne e acha que o fulano de tal é melhor que você, é melhor que o Breno [Altman, fundador de Opera Mundi], aí indica seu nome. Esse aqui tem mais cultura, é mais assíduo às aulas, sabe atirar melhor. Então, vem essa indicação. Vem junto com o ministro da Defesa e você indica. Você não vai dizer não, não quero esse, quero aquele, se que você não conhece as pessoas. Então, veja, é muito difícil. Eu vejo que as pessoas fazem comparação, porque o [ex-presidente chileno Salvador] Allende indicou o [Augusto] Pinochet [para comandante das Forças Armadas] e o Pinochet foi contra ele. O Allende indicou o Pinochet porque na época as informações que ele recebeu eram para indicar o Pinochet. Eu nunca pedi favor. Eu quero que os militares cuidem do Brasil, da segurança do Brasil. Se querem se meter em política, deixem as fardas, virem cidadãos civis e concorram. Porque se se meterem em política... Se tem uma coisa que militar nunca deixou de fazer no Brasil foi política. Desde a Proclamação da República.
O senhor acha que eles têm que parar?
Não, eu acho que pode fazer. Mas, quando vai fazer, tira a farda e diz que, agora, vou ser político, e vou me submeter ao debate. Faz como fizeram os outros. Agora, os caras querem encher a máquina de ex-general, de ex não sei das quantas, sabe?
O senhor falou que torce pela eleição do Fernández. E para os Estados Unidos em 2020? O senhor torce por alguém?
Não, é difícil. Veja, obviamente que eu torço sempre, sabe, se o Bernie Sanders ganhar as eleições seria ótimo. Eu não conheço as pessoas, então eu não tenho como dar palpite sobre outro país. A única coisa que eu acho é que um país como o Brasil, o Brasil é muito importante. A única coisa que falta ao Brasil é ele se respeitar. Você aprende uma coisa elementar no berço, você aprende com a sua mãe. Você tem que gostar de ser respeitado e você tem que respeitar os outros.
Por falar nisso, já que seria bom o Bernie Sanders, mas a política externa do governo Bolsonaro... Como o senhor define essa submissão, aparente, pelo menos, incondicional à Casa Branca?
Eu acho humilhante para o Brasil. O papel do Bolsonaro na relação com os Estados Unidos é uma coisa humilhante. O fato dele indicar o filho para ser embaixador, ele tem o direito dele indicar quem ele quiser, é uma prerrogativa do presidente. É preciso saber se a pessoa tem condições, se está preparada. Porque a embaixada, politicamente mais importante para o Brasil, e que você não tem que estar preocupado em indicar um amigo, você tem que estar preocupado em indicar alguém que possa falar do tamanho do Brasil. Alguém que possa representar o Brasil.
Eu, sinceramente, não vejo preparo político para que o filho de Bolsonaro [o deputado federal Eduardo Bolsonaro, do PSL-SP] seja essa pessoa. Bem, se ele quer arcar com as consequências, que arque. A responsabilidade termina sendo do Senado. É o Senado que em última hipótese vai investigar, vai pedir para ele fritar um hambúrguer lá dentro do Senado. Pede para ele assar uma linguiça, pede para ele fazer qualquer outra coisa, pois só hambúrguer não é credencial para alguém ser embaixador. Ser filho do presidente também não é. Isso aqui não é monarquia. Agora, é importante saber que a responsabilidade é do Bolsonaro indicar, mas quem vai referendar é o Senado. Então, a responsabilidade republicana é do Senado. Então, tem muita gente certamente, sem nenhum desmerecimento, pois não o conheço pessoalmente, mas certamente pelos indícios que eu tenho, tem muito gente mais preparada que o filho do Bolsonaro para ser embaixador dos Estados Unidos.
Mas não se resume a isso, esse alinhamento aos Estados Unidos. Tem uma série de outras políticas.
Veja, é total subserviência. Isso não faz bem para o Brasil. Não faz bem para o Bolsonaro, se você quer saber. Ninguém gosta de quem não se respeita, ninguém gosta de lambe-botas.
A gente tá acabando a entrevista, queria agradecer mais uma vez. Uma última pergunta, fala-se muito sobre o senhor para o Prêmio Nobel da Paz. Já imaginou algo que diria caso seja nomeado?
Olha, eu não sei. Acho que é a terceira, quarta vez que alguém diz que vai indicar. Eu quando ganhei aquele prêmio da Unesco, me disse lá o próprio presidente da Unesco que o próximo passo seria o Nobel da Paz. Fico imaginando aqui: eu fiz campanha para [o arcebispo emérito de São Paulo] Dom Evaristo Arns, eu fiz campanha para [a médica e líder social] Zilda Arns... Ou seja, nós já tivemos pessoas no Brasil extraordinárias, que nunca ganharam um Prêmio Nobel da Paz. Já tivemos pessoas extraordinárias no Brasil, que nunca ganharam um prêmio de literatura. Então, eu não sei se é o problema da língua portuguesa, se é falta... Eu lembro que uma rainha, eu estava pousando com a minha família e com a minha delegação em um palácio e uma certa rainha, que eu prefiro preservar o nome, disse: ó, Lula, se você der um sinal de paz na Venezuela, se você tentar mostrar que a Venezuela não vai fazer nenhuma loucura, você tem facilidade de ganhar o Prêmio Nobel da Paz. Eu disse, olha, não posso dar palpite sobre outro país. O Chávez é o que é, o Chávez foi eleito e pode criticar ele de qualquer coisa. Eu tenho críticas ao Chávez, mas minha relação era muito forte. Era uma relação de companheiros, eu achava ele muito voluntarista, eu achava. Mas não vou deixar de gostar dele por conta disso. E o Chávez fazia eleição a cada dois anos, vire e mexe ele tinha uma eleição. Problema que na Venezuela todo mundo falava que era Lula. Chávez era meu amigo. O Capriles (líder oposicionista na época) dizia ‘eu sou o Lula da Venezuela’. E nós resolvemos uma coisa fantástica que foi a criação do grupo de amigos.
Uma vez eu fui a Letícia, na Colômbia, com o Celso Amorim e com o Marco Aurélio, para evitar uma briga entre o Chávez e o [ex-presidente da Colômbia Álvaro] Uribe, na casa do Uribe lá em Letícia. Nós fizemos um documento lá para mandar para o Chávez, olha era uma loucura. Eu cheguei a dizer para o Bush: olha, você quer que o Chávez pare de te encher o saco? Para de encher o saco dele. Pede para a Condoleezza [Rice, secretária de Estado dos EUA] não ficar escrevendo artigo contra o Chávez no Miami Herald. Deixa o Chávez cuidar da vida dele, porque cada vez que você fala uma bobagem é uma passeata. Cada vez que o Uribe fala uma bobagem é uma passeata, lá e cá.
Então, parece que as pessoas adoram uma briga para poder fazer política. E eu sou homem de paz. Eu aprendi na minha vida o seguinte: uma boa conversa resolve, em pouco tempo, o que uma grande discussão não resolve a vida inteira.
Edição: João Paulo Soares