Há cinco semanas, o Haiti enfrenta grandes problemas de desabastecimento de combustíveis e outros produtos petrolíferos. Como consequência, a população foi afetada pelo encarecimento dos produtos básicos, pela paralisação parcial do transporte, o contrabando e as longas filas registradas nos postos de gasolina. Um galão de gasolina ou de querosene utilizado nas casas de numerosas regiões carentes de abastecimento elétrico pode custar até duas ou três vezes mais que seu valor comum. Nas últimas horas, a atividade governamental, comercial e civil é nula ou intermitente. A população mais afetada é, evidentemente, a grande maioria que sobrevive com menos de dois dólares por dia no país mais empobrecido da região e um dos mais desiguais do hemisfério.
A falta de combustíveis tem duas grandes causas. Por um lado, a retenção de combustíveis pelo governo que pressiona para justificar a eliminação dos subsídios estatais e o aumento de preços, como o presidente Jovenel Moïse tentou fazer em julho do ano passado, em sintonia com as políticas globais do FMI neste tema. A política para o Haiti também foi replicada em países distantes como Guiné Equatorial e Egito. Nessa época, a tentativa culminou em um milhão e meio de pessoas mobilizadas nas ruas de todo o país, na suspensão da impopular medida e na a renúncia do ex-primeiro-ministro Jack Guy Lafontant.
Apesar do Executivo ter argumentado, àquela época, não estar considerando tal aumento, uma circular interna da Polícia Nacional convocava as forças especiais do Corpo de Intervenção e Manutenção da Ordem (CIMO) para enfrentar os possíveis protestos provocados pelo “próximo aumento dos produtos petrolíferos”. Isto é, a principal força de segurança do Estado dava por certo o aumento até alguns dias atrás. Paralelamente, um jornalista da Rádio Ibo confirmou, após visitar um terminal portuário, que os 140 mil barris de petróleo que o Estado possuía não tinham se esgotado, mas estavam retidos deliberadamente.
A outra causa da crise energética está relacionada diretamente com a geopolítica regional. O bloqueio e o embargo que os Estados Unidos impõem à República Bolivariana da Venezuela impedem a livre navegação dos cargueiros que abasteciam o país caribenho com combustível subsidiado e sob condições preferenciais. Impedido de ter acesso ao petróleo com preços baixos, o Haiti voltou ao mercado internacional dominado pelas transnacionais norte-americanas que impõem preços onerosos e impossíveis do Estado custear.
A política do Departamento de Estado norte-americano pretende, assim, fechar o cerco sobre governo de Nicolás Maduro, atacar Cuba como efeito colateral -- que também vem registrando um moderado desabastecimento --, e fragilizar a aliança dos países membros da Petrocaribe. A plataforma de cooperação energética fundada em 2005 por iniciativa de Hugo Chávez vem sendo, desde então, um esteio da diplomacia venezuelana na região que os Estados Unidos consideram seu mare nostrum e minado duramente os interesses comerciais de gigantes como Chevron e Exxon Mobil.
Assim, o Haiti é, simultaneamente, a principal vítima e o instrumento suicida da política intervencionista no Caribe sob a administração Trump. Enquanto nação mais duramente afetada pela crise energética resultante do embargo à Venezuela, é utilizada como ponta de lança da ofensiva contra o governo de Nicolás Maduro. Ao mesmo tempo, o governo de Jovenel Moïse, totalmente alinhado com as prioridades norte-americanas, se soma àqueles que pretendem fragilizar e quebrar a Comunidade do Caribe (CARICOM), que deu reiteradas demonstrações de autonomia no tratamento da questão venezuelana.
Enquanto isso, a chamada “comunidade internacional”, outros países com interesses no Haiti, como a França ou o Canadá, e inclusive organismos internacionais de intensa presença no país caribenho, como a OEA e as Nações Unidas, parecem não registrar a magnitude da crise. Enquanto indicam supostos déficits de democracia em países como a Venezuela ou Cuba, parecem não reconhecer o fato de que o Haiti carece de um governo estável, funcional e constitucional desde julho do ano passado. E o fracasso das oito missões internacionais civis e militares que atuam no país desde 1993 é demasiado evidente. Olhar para a crise haitiana implica reconhecer a grande responsabilidade internacional na situação dramática do país.
Nem a estabilização, nem a reconstrução, nem a pacificação, nem a justiça estiveram entre seus objetivos ou foram alcançados, como podem comprovar aqueles que visitem o Haiti ou consultem seus mais elementares indicadores sociais e econômicos. A próxima e enésima missão, chamada Binuh [Escritório Integrado da ONU no Haiti], que substituirá a atual MINUJUSTH no próximo dia 16 de outubro, não parece oferece maiores garantias nesse sentido. Mas tratará de perpetuar a ocupação internacional de um país ainda hoje considerado, segundo o Artigo VII da Carta das Nações Unidas, como uma irrisória “ameaça à segurança internacional”. Outro objetivo é manter ao alcance da mão o recurso fácil de novas militarizações para reprimir e conter os massivos protestos que sacodem o país e exigem a demissão do presidente, se estes chegassem a afetar os interesses geopolíticos das potências ocidentais no Caribe.
*Lautaro Rivara é sociólogo e membro da Brigada de Solidariedade Jean Jacques-Dessalines no Haiti.
Edição: Luiza Mançano (versão em português)