“A senzala moderna é o quartinho da empregada.” A analogia feita pela historiadora e rapper Preta Rara, escancara as situações degradantes as quais milhões de trabalhadoras domésticas, em sua grande maioria negras, vivem diariamente no Brasil.
Preta Rara trabalhou como empregada doméstica até 2009. Foi demitida por não aceitar comer restos de comida oferecidas pela patroa. Era proibida de se alimentar das refeições que ela mesma cozinhava.
Há mais de três anos, decidiu relatar o ocorrido em seu perfil no Facebook. Era apenas um entre os muitos episódios de violações de direitos humanos e racismo que havia sofrido de diferentes patrões em nove anos trabalhando como empregada doméstica.
Em pouco tempo, a publicação ganhou repercussão e Preta começou a receber centenas de mensagens de outras empregadas que também haviam sofrido maus tratos e violências ainda piores. Foi então que a historiadora decidiu criar a página “Eu, empregada doméstica”, para reunir depoimentos de milhares de trabalhadoras domésticas de todo o Brasil.
No mês de setembro, a rapper lançou um livro que leva o mesmo título da página. Em entrevista ao Brasil de Fato, Preta Rara afirma que os relatos apresentados na obra são inéditos e explicitam o racismo estrutural do país.
“O trabalho doméstico no Brasil ainda é análogo à escravidão. As trabalhadoras domésticas tem cor e classe: São mulheres periféricas, pobres e pretas. É uma classe julgada como inferior”, sentencia Rara.
“Alguma pessoas falam que é 'mimimi', que não existe racismo, que não existem trabalhadores nessas condições. O livro é pra mostrar que em 2019 ainda temos o mesmo discurso de 1888 [ano em que foi assinada a Lei Áurea, que estabeleceu a abolição da escravidão]. Ainda existe sim escravidão no país”, explica.
Um estudo publicado em 2018 -- feito em parceria pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) e a ONU Mulheres --, compilou dados históricos do trabalho doméstico entre 1995 a 2015 e constatou a predominância das mulheres negras nessa função ao longo do tempo. No último ano analisado, por exemplo, das 5,7 milhões trabalhadoras domésticas, 3,7 milhões eram negras e pardas.
Segundo o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), em 2018, o número de trabalhadoras domésticas chegou a 6,24 milhões - o maior desde 2012.
Preta Rara explica que o trabalho doméstico é hereditário para mulheres pretas. Assim como ela, sua mãe e sua avó também foram empregadas, que, inclusive, deram relatos que estão registrados no livro. Romper com esse ciclo, segundo ela, é extremamente difícil. “Esse não pode ser o único lugar para essas mulheres”, destaca.
Com orgulho, a rapper menciona ainda que a deputada federal Benedita da Silva (PT), negra e ex-doméstica, foi quem assinou a orelha de seu livro.
Depoimentos
Preta Rara conta algumas das histórias “mais revoltantes” que recebeu. “Tem um relato de uma trabalhadora doméstica de 73 anos, que chega no trabalho e o elevador de serviço estava quebrado. O porteiro, a mando dos moradores, falou que ela não podia utilizar o elevador social. Essa senhora, que nem deveria estar trabalhando mais, teve que subir até o 8º andar de escada, porque não pode usar o elevador social”, detalha.
“Ainda hoje recebo relatos de trabalhadoras que ficam 8h, 9h sem usar o banheiro porque não tem o 'banheiro de empregada' e não pode usar o banheiro da casa. São muitos relatos sobre assédio sexual também. Teve uma trabalhadora que fez chave de todos os cômodos da casa, e aí, quando vai limpar, ela se tranca para poder limpar”, afirma.
“Como se fosse da família”
De acordo com a rapper, a frase acima é repetida com frequência por patrões abusivos e comumente utilizada para atropelar todos os direitos trabalhistas da trabalhadora, que não é da família, e sim uma pessoa vendendo sua força de trabalho.
Na opinião de Preta Rara, essa frase faz com que as trabalhadoras acreditem que elas são realmente tratadas como se fossem da família e não reivindiquem seus direitos.
“Aqui no Brasil, o ranço colonial é tão grande que a maioria dos patrões acreditas que as trabalhadoras domésticas são propriedade privada. É a questão de servir. Com o livro, o intuito é realmente provocar essa discussão e ser a pedra no sapato. Gerar incômodo. Por meio dele, conseguimos obter mudanças”, assevera.
PEC das Domésticas
A Emenda Constitucional 72, de 2013, conhecida como PEC das Domésticas, consolidou direitos centrais das trabalhadoras, como o recebimento de um salário mínimo ao mês, pagamento garantido por lei, jornada de trabalho de 8 horas diárias e 44 semanais e hora extra.
Em junho de 2015, a então presidente Dilma Rousseff (PT) promulgou sete novos direitos: o pagamento do adicional noturno, do adicional de viagem, a obrigação do controle de ponto do empregado e também a utilização do banco de horas; a redução da alíquota da contribuição para o Instituto Nacional do Seguro Social (INSS) do empregador de 12% para 8%; obrigatoriedade do Fundo de Garantia do Tempo de Serviço (FGTS), seguro acidente de trabalho, antecipação da multa de 40% do FGTS, seguro-desemprego e salário-família.
Preta Rara considera a emenda um avanço, mas que ainda é preciso garantir sua capilaridade na vida das mulheres. Dados do IBGE de 2018, por exemplo, mostraram que o número de profissionais com carteira assinada foi o menor dos últimos seis anos.
Rara, que é historiadora e também produtora de conteúdo, acredita que os poucos direitos garantidos estão sob ameaça com o governo de Jair Bolsonaro (PSL).
“Vale ressaltar que o único que não aceitou a PEC das Domésticas quando era parlamentar é nosso atual presidente. É um grande retrocesso para a classe trabalhadora. Sem contar políticas como a reforma da Previdência”, avalia..
Edição: Rodrigo Chagas