A proximidade entre o Complexo da Maré, na Zona Norte da capital fluminense (RJ), e a Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), considerada uma das melhores instituições de ensino superior do país, não reflete os obstáculos enfrentados por moradores da comunidade para acessar esse tipo de espaço.
No conglomerado de favelas, as operações policiais são rotina na vida de quem mora no local. As notícias de suspensão de aulas em decorrência de casos de violência também são frequentes.
Foi nesse cenário que, em agosto de 2018, surgiu o UniFavela. O cursinho comunitário gratuito, que tem o propósito de “semear a educação popular”, iniciou as atividades de forma improvisada, em uma laje cedida por um dos alunos da comunidade.
A ideia inicial, como conta Laerte Breno, estudante de Letras na UFRJ e um dos idealizadores do projeto, era de que o espaço fosse apenas um grupo de estudos, para sanar dúvidas. Mas, a divulgação boca-a-boca fez com que o UniFavela tomasse outra proporção, e se transformasse, rapidamente, em um pré-vestibular.
“A nossa intenção é colocar mais jovens e adultos, moradores da Maré, nas universidades. A gente sabe que a possibilidade de um corpo favelado ocupar a universidade é distante, então a gente tenta aproximar isso. E também criar uma relação de afeto entre professor e aluno, sem a ideia de hierarquia, de que os professores são detentores de conhecimento”, afirma Laerte.
Todos os 10 alunos preparados na primeira turma do cursinho foram aprovados em universidades públicas. As aprovações vieram de algumas das melhores instituições do Rio de Janeiro, como a Universidade Estadual do Rio de Janeiro (Uerj), UFRJ e Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (Unirio).
Hoje, o projeto dispõe de melhor estrutura e funciona em uma sala cedida pela Organização Não Governamental (ONG) Vida Real.
Estudar em uma universidade pública sempre foi um sonho distante para a jovem Rafaella Cardoso Cabral, de 19 anos. Ela concluiu o ensino médio em 2018, e agora vislumbra a possibilidade de garantir uma vaga no curso de Ciências Contábeis em uma instituição estadual ou federal.
“Minha experiência vem sendo maravilhosa desde o começo do ano, quando entrei. Eu sinto que é uma troca de diversos conhecimentos como fosse uma roda de estudo. É mais fácil de aprender. Antes, eu não tinha expectativas de conseguir de entrar em uma faculdade por achar muito difícil, mas lá me mostraram que é possível, sim”, diz.
Os conteúdos ministrados nas aulas, para Lindalva do Nascimento Ferreira, de 22 anos, também são um diferencial do cursinho, com tópicos que vão além do que ela teve acesso no ensino regular e que extrapolam, inclusive, o ingresso em uma universidade.
“Ter um pré-vestibular dentro de uma favela que tem operações policiais impedindo a gente de estudar me ensina diretamente o que é meritocracia. A importância [do UniFavela] não é só a de nos levar à faculdade, mas também de mostrar que esse é um direito nosso, reforça.
Resistência
Em um país onde concluir a educação básica ainda é uma realidade distante para muitos jovens, abrir caminho para o ingresso em um curso superior, por meio da educação popular, em uma região periférica, “é uma forma de resistência”. Essa é a avaliação de Enrique Alexandre Lima de Silva Moura, professor de matemática no UniFavela.
“A gente tinha esse lema de semear a educação popular, e a gente prosseguiu com isso. Não é porque você é pobre que vai ter que trabalhar, e ponto final. Você pode escolher o que você quer fazer. Eu costumo dizer que educação alimenta que nem comida”, acrescenta.
Dados da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (PNAD), referentes a 2018, mostram que um terço dos brasileiros entre 19 e 24 anos não havia conseguido concluir o ensino médio em 2018. Aqueles que conseguem finalizar essa etapa, muitas vezes deixam a escola com grande defasagem de aprendizado.
Enrique Moura conta que é comum se deparar com alunos que não dispõem sequer de noções básicas de matemática, por exemplo. A discrepância, segundo ele, é evidente em relação aos estudantes de colégios particulares, onde também lecionou.
“Temos a noção de que eles estão defasados. Explicamos o conteúdo de maneira mais participativa, menos conteudista, para tentar desenvolver o interesse dos alunos em estudar. O Estado falha em muita coisa, e a gente tenta dar um jeito”, completa.
Meritocracia não
O exemplo dos estudantes do UniFavela aprovados em universidades públicas chegou a ser usado nas redes sociais para justificar o discurso meritocrático. Nesse caso, de que qualquer pessoa pode ingressar em uma instituição pública, independente do meio e das condições em que vive.
Esse posicionamento é veementemente rechaçado pelo coletivo. O educador Enrique Moura diz que se “deve enxergar beleza, sim”, mas, sobretudo, deve “haver uma revolta”, uma vez que a situação também expõe a desigualdade de oportunidades que existe no país.
“É como se os alunos de classe A estivessem numa corrida em que começaram muito mais à frente. Sim, foi belo, mas isso ressalta que meritocracia não existe, que para alguns estudar é fácil, mas para outros nem tanto. É inválido começar uma corrida em que pessoas estão em posições diferentes”, enfatiza.
Vaquinha para sede própria
O UniFavela conta atualmente com 20 educadores, todos voluntários, e uma turma com aproximadamente dez alunos. Um dos objetivos do coletivo, a partir de agora, é adquirir uma sede própria, também no Complexo da Maré. O projeto busca recursos por meio de uma vaquinha online.
A ideia, de acordo com Laerte Bruno, é instalar o cursinho no Conjunto Novo Pinheiro, conhecido popularmente como Salsa e Merengue. “Essa é uma parte da comunidade que ainda não conta com tantas atividades, quanto onde estamos localizados agora”, explica.
O valor de contribuição com a vaquinha é livre. O site para doação pode ser acessado aqui.
Edição: Guilherme Henrique