A escalada de violência contra ex-combatentes, que beira os duzentos homicídios desde 2016, não é o único tema de tensão entre os dois lados que assinaram o final da guerra entre o Estado e as Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia (FARC), atualmente convertidas em partido político.
Outra grave pendência é a reincorporação dos antigos guerrilheiros à vida civil. O pacto negociado em Havana, entre 2012 e 2016, embutia um ambicioso mapa da estrada. No marco de reformas estruturais, dentre as quais se destacava a agrária, aos militantes farianos seriam garantidos determinados direitos sociais e econômicos.
Depois de deixarem as armas nas mãos de delegados das Nações Unidas, em janeiro de 2017, o grosso da tropa guerrilheira foi distribuída por zonas provisórias de normalização, que viriam a se constituir, a partir de agosto do mesmo ano, nos Espaços Territoriais de Capacitação e Reincorporação (ETCR), divididos em 24 unidades espalhadas pelo território nacional, nas quais hoje vivem 3.112 homens e mulheres.
O governo tinha a obrigação de garantir os recursos e os materiais para que, em sistema de autoconstrução, os reincorporados pudessem erguer suas casas. O Estado também deveria prover acesso, energia, água e gás para esses campos, muitos situados em locais ermos.
Nessas comunidades, em uma primeira etapa, foram realizados o censo socioeconômico da guerrilha desmobilizada e o registro individual de seus integrantes. Cada um dos registrados teria direito a três benefícios financeiros: uma verba inicial e única de 580 dólares, uma renda básica mensal de 215 dólares (90% do salário mínimo nacional) por dois anos e um capital para investimento produtivo de 2.350 dólares, liberado pelo poder público conforme fossem sendo autorizados empreendimentos específicos.
Ademais dos direitos pecuniários, os ex-guerrilheiros seriam inscritos nos sistemas públicos de saúde e previdência, teriam vagas garantidas para completar o ensino fundamental e médio, receberiam formação profissional e poderiam se vincular a projetos produtivos que deveriam receber apoio técnico, jurídico e financeiro do governo.
No total, segundos dados oficiais, 13.202 militantes das FARC foram cadastrados, dos quais 26% mulheres. Desse montante, cerca de 6,8 mil vieram das frentes de combate, distribuídos em 525 municípios. Outros 3,3 mil estavam presos. Mais 3,1 mil atuavam em milícias urbanas da guerrilha.
O censo, organizado pela Universidade Nacional em julho de 2017, apontava que 10% dos entrevistados eram analfabetos, 57% tinham apenas educação primária, 21% chegaram a completar o ensino secundário e apenas 3% possuíam diploma superior, mas 56% revelavam ser essa sua meta educacional. Setenta e sete por cento não tinham residência fixa ao final do conflito armado.
O que aconteceu de lá para cá, nessa seara, é motivo de forte polêmica entre o governo Ivan Duque e os representantes da insurgência.
“Cumprimos 80% das metas estabelecidas”, afirma Andrés Stapper, diretor-geral da Agência para a Reincorporação e Normalização (ARN), organismo governamental responsável por todas as questões econômicas e sociais referentes aos ex-guerrilheiros. “Além de elevarmos o grau de escolarização e oferecermos formação técnica, pagamos os direitos estabelecidos e viabilizamos os ETCRs. Cerca de 8.800 desmobilizados estão trabalhando em algum dos projetos produtivos que apoiamos.”
Advogado, especialista em assuntos diversos como direito empresarial e direitos humanos, Stapper está vinculado à ARN desde 2007, quando a entidade ainda era o Alto Conselho Presidencial para a Reintegração Econômica e Social. Participou da criação legal da agência, em 2016, e desde março de 2018 assumiu seu comando, ainda durante o governo de Juan Manuel Santos (2010-2018), rival do atual presidente, Iván Duque.
Com voz pausada, atento a um volumoso caderno com fotos e números, fala com orgulho de seu trabalho. “Precisamos entregar paulatinamente as ferramentas para a reincorporação produtiva”, explica. “Não podemos imaginar pessoas que passaram vinte ou trinta anos na selva, em combate, se transformando, de uma hora para a outra, em empresários.”
Seus dados são minuciosamente apresentados. Com recursos públicos, destinados ao capital inicial previsto no Acordo de Paz, teriam sido criadas 137 cooperativas, atendendo 2.204 beneficiários, além de 431 empreendimentos familiares, envolvendo 492 ex-guerrilheiros. Soma à sua conta quinze unidades produtivas financiadas por um fundo das Nações Unidas, com prioridade para o trabalho feminino, que ocuparia outras 2.803 pessoas, além de um sistema de creches e 37 pequenos negócios. Seus cálculos também incorporam alianças com governadores e prefeituras, acordos com a iniciativa privada e 144 projetos autônomos que contam com diversas formas de cooperação internacional, 70% desses dentro dos ETCRs.
“Demagogia”, contesta Pastor Alape, histórico comandantes das FARC e representante dos ex-guerrilheiros no Conselho Nacional de Reincorporação. “Somente 1,4 mil pessoas estão incluídas em 21 projetos com recursos públicos. Esse número pode chegar a 2,2 mil se forem viabilizados todos os 35 projetos já aprovados, mas que ainda não saíram do papel.”
Membro do secretariado da organização guerrilheira desde 2010 até sua dissolução com o Acordo de Paz, alistado na luta armada desde o início dos anos 80, Alape rebate os números da ARN e critica o método de sua apuração. “O governo inventou uma teoria midiática e oportunista”, enfatiza. “Contabiliza em seus relatórios os projetos financiados pela cooperação internacional, para os quais não tiveram atuação relevante, justificando essa manobra com o fato de serem iniciativas autorizadas pelo Estado ou implementadas em seus territórios.”
Suas preocupações parecem intensas, carregam certa dose de frustração. “Há um amplo universo de ex-guerrilheiros que não foram efetivamente reincorporados”, denuncia.
“Vivem uma situação de insegurança econômica e social, além do risco da violência. Tudo é feito com lentidão e atraso, além de não se ter andado um só passo nas reformas estruturais, especialmente a reforma agrária. A propriedade da terra é o fundamento para a cidadania dos ex-guerrilheiros e para a estabilidade das cooperativas, majoritariamente vinculadas à agricultura, à piscicultura e ao turismo comunitário.”
Alape vai detalhando os problemas que identifica. Também registra as dificuldades para as cooperativas terem acesso a linhas de crédito ou até mesmo abrirem conta bancária. “Até agora, há 33 de nossos dirigentes listados como terroristas pelos Estados Unidos, sem que o governo colombiano busque alterar essa situação”, reclama. “Que banco fará negócios com empreendimentos que possuam, entre seus associados, pessoas nessas condições?”
Para a Força Alternativa Revolucionário do Comum, o partido sucessor das FARC, a julgar pela opinião do ex-chefe guerrilheiro, o empenho pelo respeito aos direitos pactuados joga um papel político importante, que vai além da sobrevivência dos beneficiários. “Esses projetos produtivos são essenciais para viabilizar os ETCRs como polos econômicos e institucionais que impulsionem a democratização do país”, explica.
Mesmo com a impaciência vertendo de suas respostas, o compromisso com o Acordo de Paz segue intacto. “Apesar dos opressores continuarem recorrendo à violência como sua arma prioritária, nós acreditamos que a única forma de derrotá-los, hoje, é pela mobilização civil e em defesa da paz”, diz. “Não está em jogo somente ou principalmente o destino dos ex-guerrilheiros, mas o futuro da Colômbia.”
Edição: Opera Mundi