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Coringa e o holocausto brasileiro

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Coringa: filme seria uma ode à violência, alegadamente retratada como a única desforra possível dos explorados contra os exploradores
Coringa: filme seria uma ode à violência, alegadamente retratada como a única desforra possível dos explorados contra os exploradores - Divulgação
“Durante toda minha vida, eu nem sabia se eu realmente existia. Mas eu existo"

Por Olímpio Rocha*

Lançou-se intenso debate nas redes sociais e na mídia mainstream sobre o novo “Coringa”, filme dirigido e roteirizado por Todd Phillips e brilhantemente estrelado por Joaquin Phoenix, multipremiado ator estadunidense que dá vida ao personagem-título, alter ego de Arthur Fleck, comediante de meia-idade frustrado que ganha a vida como palhaço de rua e, atormentado por problemas psiquiátricos, ainda mora com a mãe, Penny, igualmente em sofrimento mental.

Há quem diga que o filme seria uma ode à violência, alegadamente retratada como a única desforra possível dos explorados contra os exploradores, dos subalternos contra os patrões... Para além da desobediência civil, tida como legítima manifestação de insatisfação popular, seria a violência, ela própria, que, para os críticos mais exacerbados do filme, é descabidamente romantizada como a solução viável para a desigualdade social que paira sobre a fictícia Gotham, cidade em que vive o Coringa. Diante da falta de perspectiva de ascensão, o slogan “matem os ricos!” é escrito nos cartazes empunhados pela malta enfurecida que toma as ruas da cidade após a série de eventos desencadeada pelo pierrot encarnado por Fleck.

No mundo dito pós-moderno, crise econômica após crise econômica, a proliferação das relações líquidas que “escorrem pelos vãos dos dedos”, como as define Zygmunt Bauman, faz, por exemplo, que a misantropia grasse entre os jovens que não conseguem ter relacionamentos amorosos ou se estabelecer profissionalmente e continuam vivendo a expensas de parentes, além das faces desumanas do capital se revelarem de forma cada vez mais clara na medida em que os palhaços - como o bilionário Tom Wayne define os que não têm sucesso na vida - se afundam continuamente no abismo social que os separa dos bem-sucedidos “donos do circo”.

Diante desse quadro desalentador, restaria apenas a violência pela violência, numa espécie de parnasianismo macabro que alça o Coringa, menos misantropo e mais indignado e puramente tresloucado, à condição de anti-herói pelos seus semelhantes. Quando - cuidado com o spoiler! - em entrevista ao vivo num talkshow, logo após matar a própria mãe e confessar outros três assassinatos que serviram de estopim à revolta do povo contra o sistema, ele igualmente mata a tiros o apresentador de tv de quem é fã há anos, também acaba por desnudar o desconforto da sombra que se lhe impõe enquanto pária social.

Ao vaticinar, numa de suas falas no filme, que “durante toda minha vida, eu nem sabia se eu realmente existia. Mas eu existo. E as pessoas estão começando a perceber”, o Coringa está a dizer que os desvalidos, cotidianamente maltratados pelo Estado, obrigados a viver em condições de quase miséria, em prédios caindo aos pedaços, sem emprego digno, ou sequer tendo acesso ao tratamento psicossocial outrora garantido aos doentes mentais como Arthur (e cortado por decisão da Prefeitura de Gotham), teriam uma espécie de justificativa para pregar a morte aos ricos, no que reside a mais contundente crítica à tal violência da película.

Entretanto, para além desse debate, Coringa é, de fato, um belíssimo estudo de personagem, como dizem os especialistas, o qual não tem o condão de louvar um tipo de justiceiro social às avessas, a não ser pintar o protagonista como sendo quem realmente é: alguém verdadeiramente perturbado que, não se pode olvidar, também por não ter tido a guarida estatal que merecia, é verdade, acabou tendo seus problemas psiquiátricos piorados, levando-o a cometer a série de assassinatos que o transforma no famoso palhaço do crime.

É nesse ponto que Coringa tangencia o “Holocausto Brasileiro”, como o define a premiada jornalista Daniela Arbex, em livro de mesmo nome que retrata as barbáries praticadas pelo Estado Brasileiro na cidade de Barbacena, em Minas Gerais, onde se localizava a “Colônia”, Centro Psiquiátrico na qual morreram - ou foram mortos - em torno de 60 mil brasileiros e brasileiras.

Meninas que namoravam “antes da idade”, crianças abandonadas pelos pais, como se revela ser o caso de Arthur Fleck, idosos deixados à míngua pelas famílias, homossexuais, diagnosticados ou não com transtornos mentais, eram jogados na Colônia, em Barbacena, e continuavam esquecidos pelo Estado que já não os tinha provido com o mínimo existencial antes de serem internados. Ali, mulheres eram estupradas e, conforme escreve Arbex, havia casos em que as gestantes se melavam com as próprias fezes para evitar um aborto forçado, o que não impedia os funcionários da Colônia de sequestrar os bebês logo que nasciam e os deixar à adoção ou à morte, em alguns casos.

Choques elétricos, espancamentos, administração de medicamentos em doses cavalares, alimentação muitas vezes composta por restos de ratos ou carcaças de pombos, além da água de esgoto e urina que os internos bebiam compunham o cardápio de atrocidades perpetrados pelo Estado Brasileiros em Barbacena, entre o início do século passado e a década de 80, quando o horrendo Centro Psiquiátrico foi finalmente desativado.

Esse tipo de política de internamento forçado, em detrimento do tratamento humanizado em meio aberto, vai de encontro às normas e direitos humanos e fundamentais que determinam que é dever do Estado prezar pela Saúde Mental dos cidadãos e lançar mão de políticas públicas capazes de reinserir na sociedade pessoas que, quiçá, sem esse tratamento adequado, possam vir a se tornar perturbadas a ponto de, mais ainda fora da consciência plena, cometerem atos criminosos muitíssimo mais graves que aqueles ilícitos dos quais eventualmente são primariamente acusados.

Em Gotham, o Coringa acaba internado no célebre Asilo Arkham, onde apesar das condições de tratamento aos doentes mentais, pelo menos, ao que parece, não se assemelharem às da Colônia de Barbacena, há o mesmo tipo de internos: os párias sociais, aqueles a quem, em sua estrondosa maioria, não se deu as oportunidades devidas, inclusive de reinserção, e que não podem ser olvidados continuamente, rumo ao esgarçamento das suas capacidades de se manterem minimamente sãos, diante do circo de horrores em que tantas vezes se torna a vida.

Guardadas as devidas proporções entre ficção e realidade, por óbvio, Gotham como Barbacena e o Asilo Arkham como a Colônia são faces da mesma moeda: a que deixa claro que há, sim, a possibilidade de se amenizar os inescapáveis efeitos deletérios de ser humano, aos quais todos estamos submetidos. Isto, claro, desde que se respeite os direitos humanos e o mínimo existencial que contemple a dignidade, a começar por quem mais está fragilizado.

*Olímpio Rocha é advogado popular, professor de Direitos Humanos, mestre em Ciências Jurídicas (UFPB) e membro do Conselho Estadual de Direitos Humanos da Paraíba.

Edição: João Paulo Soares