Além da necessidade de nutrição, comer é um ato social
Você prefere comer sozinho ou acompanhado? Gosta de conversar enquanto come? Tem preferência por um lugar, um talher ou um prato específico?
Pode não parecer, mas tudo isso acontece porque comer é um ato social, que vai para além das necessidades básicas de nutrição. Junto do prazer em ingerir um alimento saboroso, está também a alegria de compartilhar os momentos que o ato de se sentar à mesa proporciona.
É por meio da comida que criamos uma memória afetiva de quem somos e com quem estamos, de acordo com a pesquisadora britânica Jane Ogden, que estuda a psicologia da saúde. Por isso, é comum ter apreço a determinadas receitas, refeições e até mesmo aos utensílios utilizados para comer.
A comida é também um dos principais fatores que compõem a cultura de um povo, seja pela forma de preparar os alimentos ou pelos hábitos que criamos durante as refeições. Para Édrian Santos, jornalista nascido em São Luís do Maranhão e residente em São Paulo há dois meses, cada região tem sua peculiaridade na hora de pensar e fazer as receitas.
“Lá no Maranhão, a culinária é única, você não vai ver em nenhum outro lugar do país. Tudo por conta das regionalidades da gente, das questões históricas também”, afirma.
Acostumado a comer peixe e frutos do mar, comuns no norte de Maranhão, onde passou sua infância, Édrian conta que sentiu uma enorme diferença entre a comida maranhense e a paulista. Ele lembra que teve dificuldades para se alimentar. “Eu estava sofrendo muito pra comer, porque eu ia comer num PF (prato feito) comum e era uma refeição que não me agradava tanto. Mas aqui em São Paulo, o feijão básico, por exemplo, é só feijão, água, sal e alho. Em São Luís, nunca que 'tu vai' comer um feijão assim, São Luís é um feijão super temperado, e isso eu não to falando de feijoada, que vai carnes, enfim, só do feijão básico, que vai feijão, água, sal, alho, um fio de óleo, azeite, tempero secos, pimenta do reino, corante, tomate, cebola, pimentão.”, completa.
Esse é um sentimento compartilhado pelo sírio Talal Al Tinawi, chef de cozinha do Talal Culinária Síria.
Talal Al Tinawi cozinhando para família | Reprodução Talal Culinária Síria
Após ficar preso durante 3 meses por ser confundido com um homem procurado pelas forças de segurança do seu país, que vive uma guerra, Talal foi obrigado a deixar sua terra natal.
Em dezembro de 2013, chegou ao Brasil acompanhado da esposa e dos filhos, sem falar uma palavra em português. Hoje, o cenário é diferente. Ele conta que, ao trabalhar com a comida típica do oriente, ressignificou seus preparos.
“Quando comecei a trabalhar com cozinha, com comida árabe, comecei a fazer receitas típicas, para apresentar uma comida especial para o brasileiro, para transferir a cultura da Síria para o brasileiro gostar da minha comida”, comenta.
Ele conta que, embora goste de comer com seus amigos e colegas, prefere realizar as refeições ao lado da família. De acordo com ele, ao comer com seus parentes, a conexão entre eles fica mais forte.
Quando se mudou para São Paulo, Talal conta que sentiu muita diferença na forma como os brasileiros comiam, principalmente pela variedade dos preparos. “Sobre a comida brasileira, o problema é que não tem muitos pratos, muitas comidas. A maioria dos brasileiros come feijão e arroz todos os dias. Na Síria não tem esse prato de dia a dia, porque tem muitos pratos, muitas comidas.”
Muito da nossa relação afetiva com a alimentação vem do fato dela nos remeter a momentos de prazer do passado. Édrian conta, por exemplo, que o cheiro de peixe seco é muito significativo, porque o faz lembrar de casa.
“Eu acho que o cheiro de comida que me lembra bastante de casa, que era muito comum, era de peixe seco, que a gente chama lá. Temperava esse peixe com sal e colocava pra secar. Ele secava e aí as pessoas consumiam o peixe assado, frito, cozido, enfim. E por ser peixe seco, ele deixa um cheiro muito forte. Meu pai gostava muito disso e lá em casa, isso era um cheiro muito marcante”.
Peixe seco | Pixabay
Para Talal, por outro lado, um preparo que o lembra de casa é a coalhada fresca, principal ingrediente na maioria das receitas sírias.
“Mas eu gosto mais de coalhada fresca. Aqui, o brasileiro não gosta de prato que cozinha com coalhada, porque ele sabe que a coalhada é doce. Mas lá na Síria, a coalhada fresca pode ser cozida para preparação de muitos pratos, como a Shishbarak (sopa de coalhada), ou para rechear abobrinha, kibe, tem muitos pratos com coalhada”, destaca.
São relatos como esses que mostram como a alimentação pode ser importante não apenas para o nosso organismo, mas também para as nossas emoções. O ser humano é o único animal que pode dar significado ao ato de comer e, portanto, o único capaz de expressar na comida, sentimentos e cultura.
Edição: Michele Carvalho