ENTREVISTA

Entre a arrogância e o paternalismo: a tutela militar sobre instituições brasileiras

Para pesquisadora Ana Penido, noção de "democracia" é influenciada por modo que militares enxergam o conceito

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Ao longo da entrevista, Ana também analisa vários pontos, como as concepções de relações internacionais que se dão nas academias
Ao longo da entrevista, Ana também analisa vários pontos, como as concepções de relações internacionais que se dão nas academias - Wikicommons

Vivemos um regime democrático no Brasil e por isso podemos afirmar que se vive num regime de liberdade e igualdade. Correto? Errado. A professora Ana Penido, que pesquisa a formação e atuação de militares no país, revela que a noção que se tem de democracia é, na prática, muito mais restrita e tem influência do modo como os militares compreendem o conceito. “É um conceito restrito de democracia, baseado em seus aspectos formais, ou seja, a realização de eleições, organização partidária, etc. Infelizmente, essa concepção de democracia limitada também é presente na sociedade”, aponta. Para ela, o conceito pleno de democracia é outro, que “prevê o conflito de ideias, manifestações públicas e outras coisas que, no ponto de vista deles, são geradoras de instabilidade”.

E, num governo como o de Jair Bolsonaro, em que a presença militar é maior, essas perspectivas se acentuam. Assim, Ana chama atenção para como, na prática, se configura – e até se reforça – uma espécie de tutela militar sobre as demais instituições de um Estado democrático. “Os militares mantêm uma tutela sobre as instituições do Estado brasileiro, e se organizam como corporação, para quem, à exceção do momento de disputa de recursos orçamentários, a relação cotidiana com civis varia entre a arrogância de quem se acha melhor e o paternalismo de quem acha que deve proteger os fracos”, sintetiza.

Na entrevista, concedida por e-mail à IHU On-Line, a pesquisadora ainda destaca a importância de se compreender como essas ideias são gestadas na “caserna”, desde a educação básica das forças armadas. “É plantada na escola e depois amadurece durante a carreira a ideia de que eles são mais responsáveis pelo destino da nação, mais patriotas, mais nacionalistas, que o povo brasileiro em geral”, aponta. Mas são lógicas que diferem das do passado, como as que formaram os militares que estiveram no comando do país durante a ditadura. “Atualmente, é preciso ressaltar que educação é uma dimensão do processo de profissionalização, e os militares são muito cuidadosos com essa parte, pois é a que garante sua reprodução técnica e simbólica enquanto corporação”, define.

Ao longo da entrevista, Ana também analisa vários pontos, como as concepções de relações internacionais que se dão nas academias. Segundo ela, são ideias que estão além da grade curricular ou da emenda de disciplinas. Estão no entremeio do que chama de “currículo oculto”. “Quando se observa essa parte, fica nítida uma visão tradicional de geopolítica, que caracteriza o momento atual como uma nova guerra fria entre China e Estados Unidos, e a tarefa brasileira de se aliar ao seu grande irmão do ocidente”, exemplifica.

Além de detalhar como ocorre a formação de militares, Ana observa como essas ideias chegam a outras áreas do governo de Jair Bolsonaro, como a ideia das escolas com gestão cívico-militares. “Se fosse para adotar a ideia de 'escolas modelo', algo bastante discutível, o padrão a ser seguido seria das escolas federais ou das escolas de aplicação das Universidades, quase extintas”, critica. E dispara: “o projeto vende uma ideia de moralização das escolas através da disciplina. Acredito que deveria ser óbvio que um corte de cabelo curto não é o que vai 'salvar a nossa juventude das drogas', seja lá o que isso significa”.

Ana Amélia Penido Oliveira é graduada em Ciências Sociais pela Universidade Federal de Minas Gerais - UFMG, possui mestrado em Estudos Estratégicos da Defesa e da Segurança pela Universidade Federal Fluminense - UFF e doutorado em Relações Internacionais pela Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho. Atualmente é pesquisadora do Instituto Tricontinental e da Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho. Entre as suas publicações, destacamos As mudanças na guerra e na formação dos guerreiros (In: Poder Aeroespacial e Estudos Interdisciplinares de Segurança e Defesa, 2014, Rio de Janeiro) e Uma educação militar para a defesa do Brasil (In: V Encontro Pedagógico do Ensino Superior Militar, 2013, Resende. Anais do V EPESM, 2013).

Confira a entrevista:

IHU On-Line: Como avalia a relação entre civis, militares e Estado no Brasil hoje?

Ana Penido: Essa pergunta origina muitas teses de doutorado. Resumidamente, acredito que os militares mantêm uma tutela sobre as instituições do Estado brasileiro, e se organizam como corporação, para quem, à exceção do momento de disputa de recursos orçamentários, a relação cotidiana com civis varia entre a arrogância de quem se acha melhor e o paternalismo de quem acha que deve proteger os fracos.

Qual projeto de país está presente hoje no ideário das forças armadas?

Não acho que exista essa visão geral hoje, e nem acho que deveria existir. Existem algumas questões mais específicas, já formuladas há décadas e que vez ou outra são requentadas como se fossem um projeto, como a formulação de que pelo nosso tamanho, riquezas e população somos “fadados” a ser grandes. Ou que é necessário povoar a Amazônia, como se ela não fosse já povoada, ou mesmo que falta coesão nacional. Na época do regime burocrático-autoritário, eles até tiveram projetos de governo, como fica nítido nas formulações do [Ernesto] Geisel sobre empresas nacionais e grandes projetos, como o Proálcool e o Nuclear. Existem também iniciativas de construção de cenários estratégicos de longo prazo, o que facilita no planejamento.

Um projeto de país é algo de outra envergadura, é uma tarefa eminentemente política, algo que não cabe a uma força armada profissional, e sim aos partidos políticos e movimentos/grupos sociais. Pensar um projeto nacional é fundamental para resolver o que alguns pensadores vêm chamando de crise de destino. Mas um projeto só existe fruto do conflito de ideias com outros setores da sociedade, capaz de ir produzindo sínteses, diferente da afirmação cristalina de objetivos nacionais permanentes. Ele é também fruto da correlação de forças, ou seja, de quais segmentos de fato estão se colocando para construir o Brasil, e não pegar o que for possível para benefício próprio, muitas vezes morando inclusive fora do país. Além disso, na democracia, é importante que os grupos submetam seus projetos ao escrutínio coletivo, o que só é possível por meio dos partidos políticos.

Como compreender a formação do militar brasileiro ao longo da história? E, atualmente, de que forma as academias articulam profissionalização e educação na educação militar?

Quanto a esse aspecto mais histórico, na minha dissertação, elenquei algumas variáveis que conformariam o que chamei de ‘profissionalização à brasileira’. As transcrevo aqui rapidamente, sem me aprofundar muito, lembrando que é uma perspectiva temporal, que vem desde o século XIX.

1. Ocorreu por iniciativa militar e enfrentou a resistência de civis;

2. forte retórica anticomunista;

3. Forças Armadas – FFAA profissionais antes de outras burocracias de Estado;

4. enfrentou uma baixa cultura política e desinteresse pela defesa;

5. adotou o regime escolar de internato;

6. não contou com uma elite civil com preocupações nacionais;

7. ocorreu junto com muitas intervenções militares na política;

8. sofreu forte influência externa, por ordem de ocorrência, sendo que as duas últimas ocorreram em algum período de forma concomitante – Portugal (fomos colônia), Alemanha (pré-guerra), França (pós-missão francesa) e Estados Unidos;

9. enfrentou a polêmica conteudismo X praticismo, reflexos do positivismo – ou, como alguns estudiosos chamam, colocou em lados opostos ‘intelectuais’ X ‘tarimbeiros’;

10. funcionou como força modernizadora, inclusive da base econômica;

11. fortemente baseada no personalismo;

12. formação para múltiplas possibilidades de emprego externas e internas;

13. contou com elevada autonomia, com militares definindo as próprias diretrizes e sem participação civil;

14. baixa valorização docente;

15. conviveu com um conflitante sentimento de inferioridade militar (orfandade) X sentimento de superioridade militar sobre civis (salvaguarda nacional).

Atualmente, é preciso ressaltar que educação é uma dimensão do processo de profissionalização, e os militares são muito cuidadosos com essa parte, pois é a que garante sua reprodução técnica e simbólica enquanto corporação. O novo e o velho convivem. Por exemplo, eles se modernizaram muito do ponto de vista tecnológico, assim como correram atrás de serem reconhecidos a partir das regras da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior - Capes, mas muitos pontos que abordei historicamente permanecem, como uma forte retórica anticomunista (hoje modernizada para Foro de São Paulo ou petistas ou outro inimigo interno de ocasião) e um sentimento de superioridade em relação ao mundo civil.

Como se dá a formação política e de relações internacionais nas academias militares?

Conheço mais a partir das emendas das disciplinas, mas me parecem ter as questões teóricas tracionais da área, com um foco na formação e instituições do Estado no caso da disciplina de ciência política e nas normativas e organismos internacionais, incluindo os direitos humanos, no caso da disciplina de relações internacionais. Eles também têm ampliado o estudo de idiomas, em virtude do relevo que as missões de paz ganharam. Pessoalmente, em alguns momentos me lembrava das minhas aulas de religião obrigatórias no Ensino Médio, o que, independente da minha fé, me parecia pouco aplicável na época.

A questão aqui não está no currículo explícito, mas no oculto, por isso falar em formação num sentido mais amplo, e não apenas no ensino de conteúdos. Quando se observa essa parte, fica nítida uma visão tradicional de geopolítica, que caracteriza o momento atual como uma nova guerra fria entre China e Estados Unidos, e a tarefa brasileira de se aliar ao seu grande irmão do ocidente. Da mesma maneira, se percebe a perpetuação da visão tutelar das FFAA sobre o Estado brasileiro, embora seja ponderável se essa visão é factível. Há autores que pensam em poder moderador, numa função tutelar, em partido político militar ou mesmo em protagonistas não explícitos. Em todas essas formulações, aponta-se como as forças armadas brasileiras participam ativamente da política.

Que conceito de democracia e cidadania emergem do ideário dos militares hoje?

Acredito que posso falar melhor sobre o conceito de democracia. Embora isso sempre esteja nos discursos, é um conceito restrito de democracia, baseado em seus aspectos formais, ou seja, a realização de eleições, organização partidária etc. Infelizmente, essa concepção de democracia limitada também é presente na sociedade. O sentido lato da formulação do Rousseau tratava da participação social como coração da democracia, como um meio para o desenvolvimento das potencialidades humanas, individual e coletivamente, combatendo uma visão elitista em que apenas uma parte da sociedade está qualificada para decidir por todos. Infelizmente, essa visão é pouco resgatada. É preciso lembrar que democracia prevê o conflito de ideias, manifestações públicas e outras coisas que, no ponto de vista deles, são geradoras de instabilidade, e, de forma geral, militares gostam dos cenários o mais previsíveis possível.

A visão de cidadania, que sustenta esta democracia, também é elitista. A cidadania é determinada pelo mérito, com uma visão de que quem alcança maiores postos, por mérito e estudos próprios, seria um cidadão melhor preparado para o exercício da cidadania, especialmente da cidadania política.

A senhora pesquisou a Academia Militar das Agulhas Negras - Aman. O que mais a surpreendeu nesse trabalho? Como, a partir daquela sua experiência, compreende os movimentos dos militares de hoje?

O que mais me surpreendeu foi, como disse, a mistura do novo com o velho, do moderno e científico com concepções até quase místicas, como a do anticomunismo. Acho que tanto a ida de muitos militares para o governo, assim como a mais recente tentativa de afastamento da instituição militar do governo podem ser vistas a partir daí. Nas escolas, são formados fortes laços de solidariedade, que continuam por toda a vida, ainda que o presidente tenha saído da caserna. Alguns dos seus colegas de turma se tornaram seus subordinados de governo. Isso é coerente com a ideia de que a família militar está acima de tudo.

Por outro lado, se fala muito em profissionalização no Exército, o que se inicia na Aman, e o básico para isso é não ter uma instituição politizada, por isso vêm ocorrendo tentativas de se mostrarem como algo distinto do governo. Eles se consideram bons profissionais, e julgam que eram mal aproveitados pelos governos anteriores. Entretanto, temos que refletir, pois se a Aman estiver formando bons gestores públicos, temos aí um problema, pois o que ela precisa formar são bons profissionais para a defesa nacional. Por fim, e talvez o mais importante, é plantada na escola e depois amadurece durante a carreira a ideia de que eles são mais responsáveis pelo destino da nação, mais patriotas, mais nacionalistas, que o povo brasileiro em geral. Essa ideia é incoerente quando se pensa a guerra moderna, além de estar na fonte dos nossos problemas de relação civil-militar.

Como avalia essa proposta da gestão civil/militar em escolas públicas? Quais os limites e as potencialidades desse projeto?

Avalio que o projeto é na verdade uma forma do presidente falar com a própria base, sem resolver a questão da educação, que vem sendo mal avaliada e sofrendo cortes orçamentários, não só a nível universitário. Em primeiro lugar, as escolas militares em nível de ensino médio, que é a quem o projeto se destina, apresentam melhores resultados que as escolas comuns, pois têm um valor investido por aluno muito superior à média das escolas públicas. A educação nas escolas federais também recebe mais recursos, e tem resultados ainda melhores que a rede militar, ou seja, se fosse para adotar a ideia de “escolas modelo”, algo bastante discutível, o padrão a ser seguido seria das escolas federais ou das escolas de aplicação das Universidades, quase extintas. Cabe pontuar que até o salário dos professores é diferente, o que faz com que tenham mais disposição para atividades no contraturno escolar.

Outra questão é o desvio de recursos da área da educação para área da defesa, o que não resolve o problema orçamentário nem de uma área e nem de outra. Um terceiro ponto é a previsão de contratar soldados. Num país como o nosso, com os nossos atuais índices de desemprego, pensar a possibilidade de as pessoas acumularem salários é um absurdo. O debate deveria ser como criar frentes emergenciais de emprego para quem não tem nenhum, e não conseguir um “extra” para quem mantiver a fidelidade política de quem já tem.

Uma quarta questão é a relação da escola com a comunidade. Diferente das escolas em geral, as militares têm um público mais homogêneo, vindo de famílias militares, o que também modifica a relação do pai do aluno (normalmente mãe) com a escola. Por fim, talvez o mais cruel, o projeto vende uma ideia de moralização das escolas através da disciplina. Acredito que deveria ser óbvio que um corte de cabelo curto não é o que vai “salvar a nossa juventude das drogas”, seja lá o que isso significa.

Durante parte do regime militar, uma das marcas do governo foi o nacionalismo e o projeto de desenvolvimentismo, numa valorização do Estado. Como essas duas marcas aparecem – ou desaparecem – nos militares de hoje?

A esse respeito, recomendo que as pessoas leiam a entrevista do Geisel publicada pelo CPDOC . É nítida uma visão de modelo de desenvolvimento, em especial ao se observar a discussão sobre o petróleo. A ideia de desenvolvimentismo estava ligada à de segurança nacional, ou, em outros termos, de conseguirmos, enquanto país, provermos autonomamente os recursos mais estratégicos para a nossa própria defesa, não ficando dependentes de elementos como os combustíveis. Essa ideia raramente me parece presente. Hoje a maioria dos oficiais tem afinidade de leitura com a Fundação Getulio Vargas ou com a Globonews, e adotaram, portanto, o neoliberalismo econômico, como pôde ser visto no episódio da venda da Embraer.

Com relação ao nacionalismo, essa é uma discussão bastante complexa. Me parece que, muitas vezes, é um nacionalismo focado na questão do território e no domínio das fronteiras. Por outras vezes, me parece um nacionalismo declaratório, sem substância. Essa questão mereceria uma investigação aprofundada, mas um ponto que eu levantaria é a formação pautada pela adoção de doutrinas e equipamentos de outros países. Isso pois, para mim, e impossível pensar em nacionalismo sem pensar em uma inserção autônoma do nosso país no mundo, em ciência e tecnologia nacional, em desenvolvimento autóctone. Qual o sentido, por exemplo, de ter um submarino nuclear que vai fazer a segurança da Shell? Problema parecido sofre o conceito de soberania. Para resolver isso, precisaríamos avançar muito coletivamente como povo, amadurecendo nossas raízes, e deixando de buscar ser o que os outros são ou pior, o que querem que nós sejamos.

Como a experiência das forças armadas brasileiras no Haiti incide na formação e atuação dos militares brasileiros? Na sua avaliação, qual o saldo da participação brasileira nessa operação?

A experiência no Haiti preparou os militares para atuarem em ambientes urbanos, com conflitos e pobreza. Se tornou também uma fonte de prestígio e de recursos para indivíduos e para as FFAA. Era a “guerra possível” para um país com o peso internacional do Brasil, que desejava uma cadeira no Conselho de Segurança na ONU, mas na verdade, se tornaram uma fonte de prestígio e recursos para as FFAA e para indivíduos. É um cenário similar às missões de Garantia da Lei e da Ordem que ocorreram nas comunidades do Rio de Janeiro e na mais recente intervenção federal. Como o próprio Villas Bôas já apontou, não adiantam, pois assim que os instrumentos de força e coerção social são desmobilizados, a situação volta à sua gravidade.

Na verdade, a questão mais importante para mim a esse respeito é que precisamos entender que nem todos os problemas são resolvidos através da securitização dos temas e do emprego da força. Por aqui, os militares são usados para combater as drogas, mosquitos, a pobreza, a seca, enfim, um conjunto de questões que não são resolvidas através da força, e sim de políticas públicas como saúde, segurança etc. Talvez caiba uma discussão sobre os batalhões de engenharia, mas isso seria outra discussão. No geral, elas já sabiam doutrinariamente atuar contra o inimigo interno, e nesse sentido o Haiti não faz sentido teórico, embora ofereça prática. Por outro lado, aprenderam a importância de idiomas e cresceram em capacidade para interagir com forças de outros países.

Qual o perfil dos jovens que ingressam nas forças armadas? Em que medida esses jovens militares se identificam com o ideário dos evangélicos, especialmente em relação ao governo Bolsonaro?

Eu fiz esse estudo mais específico para o Exército, mas o professor Celso Castro estava fazendo também para a Marinha. Desconheço pesquisas sobre a Aeronáutica. Assim como no restante da sociedade, ocorreu uma queda no número dos cadetes católicos e um crescimento dos cadetes evangélicos, que já chegam a um terço daqueles que ingressam na Aman. É preciso ponderar que uma parte desses resultados tem relação com a representação do estado do Rio de Janeiro (notoriamente evangélicos) entre os cadetes que ingressam.

Não sei avaliar se a questão religiosa é a que mais pesa na identificação dos cadetes com o presidente. Acredito que não, seja porque o presidente trabalha a questão religiosa muito mais enquanto marketing político do que enquanto fé, seja porque o ethos militar, produto do espírito de corpo, é mais forte do que a questão religiosa, que por vezes tem origens familiares.

Mas isso me suscita um outro debate mais grave. Nosso ecletismo religioso sempre fez com que entre as hipóteses de conflito dentro do Brasil e do Brasil com outros Estados, diferente de muitas nações, as guerras religiosas não estivessem no cenário. Com o alinhamento automático do Brasil aos Estados Unidos e mesmo a Israel, combinado com o crescimento de um neopentecostalismo mais radical, inclusive entre os militares, me pergunto se essa hipótese não é mais assim tão descartável.

Levar militares para rua é uma forma viável de combater o crime organizado? Por quê?

É inegável a existência de uma crise na área da segurança pública, representada pelo assustador dado de que apenas 8% dos crimes cometidos é elucidado. Assim como no caso das forças armadas, a influência francesa e estadunidense é perceptível. Temos duas polícias, uma militar, inspirada nas forças armadas, e outra civil, de base política-jurídica, e ambas têm dificuldades para se entender, compartilhando uma tradição de investigações baseadas em provas testemunhais e não em provas técnicas. E a violência “à brasileira” é um misto de procedimentos arcaicos e modernos, ou seja, métodos e equipamentos para investigações ultramodernos são combinados não raras vezes com violações dos direitos humanos fundamentais, como a tortura.

É forte o sentimento de ineficiência, e parte da população escolhe mais violência como forma de combater a violência, mas não se resolve a crise com a equação mais armamento, mais polícia, mais prisão e maiores penas. Na realidade, as respostas à esquerda (apenas com a mudança estrutural da desigualdade) e à direita (apenas com endurecimento penal) são insuficientes para resolver a violência e a crise na segurança pública.

Diante desse cenário, as forças armadas, em especial o exército brasileiro, vem a cada dia sendo mais intensamente empregado em questões de segurança pública, embora hoje a polícia militar tenha o contingente três vezes superior ao das forças. Essa atuação é prevista constitucionalmente, como Instrumento de Garantia da Lei e da Ordem, embora não necessariamente legítima. As polícias e as forças armadas podem empregar a força, mas as corporações têm (ou deveriam ter) objetivos, doutrinas, armamentos e instrução absolutamente distintos. Em síntese, as polícias devem se preocupar com os cidadãos, enquanto as forças armadas devem defender o país. A ideia de inimigo interno, combinada com a de guerra ao terror, é explosiva e equivocada.

É importante deixar claro que o não emprego das FFAA nos conflitos não significaria que a questão da violência estaria resolvida. Mas a entrada do exército no conflito também não diminui os índices de violência (e nem poderia), e ocorrem vários efeitos colaterais do processo de ‘policialização’ das forças armadas, a saber: muda a escala de importância das atribuições das forças armadas que vão gradualmente sendo desprofissionalizadas; o Exército se torna força auxiliar da polícia, os militares passam a ser empregados no conflito violento contra compatriotas; as instituições se fragilizam e ficam mais suscetíveis a discursos demagógicos; ocorrem reformulações doutrinárias; recursos antes destinados à defesa são realocados para a segurança; cresce a tutela militar sobre o poder civil e o consequente autoritarismo político, enfim, um conjunto de questões que coloca em risco a democracia e a soberania brasileiras.

No entanto, é possível pontuar três questões que melhorariam a atuação da polícia, a saber: investimento na profissionalização, com ensino em acordo com as diretrizes dos direitos humanos; melhorias na gestão, com o aumento do controle social; e ampliação da utilização da tecnologia. Também é possível discutir a necessidade de criação de uma guarda nacional, uma vez que a força nacional de segurança pública é frágil institucionalmente. Às forças armadas cabe, prioritariamente, a defesa da nação diante de ameaças externas.

Que leitura a senhora faz dos militares que integram o governo de Jair Bolsonaro? Quem são eles? Que papel assumem e como se deu a formação deles?

Repensei algumas coisas depois da demissão do general Santos Cruz, diga-se de passagem, nosso único militar com experiência de guerra, e que não contou com o apoio dos seus pares no governo. Eu acreditava que eles tinham entrado em massa com a ideia de moralizar o governo e tutelar o presidente. Passados os primeiros meses, viram que nem uma coisa nem outra é possível. Os militares não são a força dirigente do governo Bolsonaro. Quando pressionado, o presidente sempre fica com a “famiglia”.

Acredito que os que ficaram, espalhados em funções-chave diversas do governo, em especial os da reserva, são os que têm afinidade ideológica com o governo, alguns tendo inclusive se formado juntos, ainda durante o regime militar, e não são apenas “técnicos querendo prestar serviços à nação”. Ganharam relevo ambições pessoais, sejam elas políticas, de status ou financeiras. E acrescentaria, o fato de tantos militares estarem no governo não fez com que a área de defesa fosse valorizada enquanto política pública.

Como os militares de hoje compreendem a soberania nacional a partir do caso da Amazônia? Podemos afirmar que a pauta da Amazônia é ainda uma das poucas que traz unidade entre os militares e o restante do Governo Bolsonaro?

Não sei dizer se é uma das poucas, mas é sim uma pauta que traz unidade ao governo, afinal, nada melhor para trazer unidade que um inimigo, e com os meses, o argumento “a culpa é do PT” vai perdendo força, pois são esperados resultados. No mais, a discussão parece a mesma de décadas atrás. Muitas falas sobre a importância de “povoar” a região, integrar com obras de infraestrutura (pontes, hidrelétricas…), a dureza da nossa legislação ambiental, a necessidade de desenvolver economicamente para combater os crimes, de explorar, inclusive os minerais das terras indígenas, de combater as ONGs que fazem biopirataria e levam os índios a acreditar que eles podem ser uma nação, críticas à demarcação de terras indígenas nas áreas de fronteira, em especial no corredor Triplo A. De novidade, a preocupação com a fragmentação interna da Venezuela; com a expansão chinesa via Guiana e Suriname; e com o sínodo do Vaticano.

Concordo com alguns elementos, discordo de outros, mas, principalmente, acho triste constatar que damos as mesmas respostas a questões identificadas décadas atrás, sendo que algumas dessas respostas foram tentadas e não ofereceram bons resultados. É óbvio o interesse externo sobre a Amazônia. Mas no meu entendimento, ela deve servir, em primeiro lugar, para proporcionar uma vida boa para o povo que nela habita. Tenho um artigo sobre isso chamando a necessidade para mantermos, como se diz no interior, um olho no gato e o outro na cumbuca.

Deseja acrescentar algo?

Precisamos delimitar e definir melhor em que nossas forças armadas devem ser empregadas, o que tem relação com a grande estratégia brasileira. Sem clareza nas tarefas, é difícil fiscalizar seu desempenho, controlar o orçamento, evitar a autonomia, perceber se as atividades-meio têm levado a resultados concretos nas atividades-fim, se a formação está adequada, entre outras questões. No mundo atual, a tendência é a especialização do trabalho, e não fazer um pouquinho de um bocado de coisas.

Uma segunda questão que acredito que deve ser objeto de atenção de todo o povo brasileiro é a possibilidade de as forças armadas perderem o monopólio da violência estatal, seja para as milícias (forças paramilitares) organizadas, seja para o aumento do poder de fogo das polícias militares. No caso das primeiras (diga-se de passagem, fora da preocupação do ministro da justiça Sérgio Moro), está pouco claro seu grau de influência no poder público, com a possibilidade de terem inclusive se infiltrado nas forças armadas. No segundo caso, o crescimento do poder de fogo dos equipamentos, o tamanho do efetivo, e até mesmo propostas como a do governador do Rio de criar o cargo de general nas polícias acendem um botão de alerta. Para quem acha que com as forças armadas, com hierarquia e disciplina está ruim, acreditem, é muito, mas muito pior sem elas.

Por fim, cabe o alerta que todo cientista político faz sobre essa participação no governo e as possibilidades de quebra de hierarquia. “Quando a política entra por uma porta, a hierarquia sai pela outra”, e a história militar do nosso presidente é a comprovação disso.

Edição: IHU On-Line