Os acontecimentos recentes no quarteto latino-americano Argentina, Chile, Equador e Peru devem chamar nossa atenção sobre a falsidade em torno do argumento do recomeço do “ciclo neoliberal” na América Latina.
Seria necessário perguntar: o que aconteceu agora que não aconteceu antes? Como entender esta “reação” popular em espaços que antes foram considerados submissos e obedientes? A resposta é múltipla.
Em primeiro lugar, as oportunidades políticas geradas a partir do final do século XX com o chamado Novo Constitucionalismo latino-americano, que sob a base do princípio doutrinário do ocasio iuris -- que estabelece a necessidade de adaptar as leis às mutações e alterações de realidade -- abriram caminho para a incorporação de direitos políticos de amplos setores tradicionalmente subalternos (isto é, invisibilizados), que incorporaram novas dinâmicas de articulação social sobre a ideia de subversão, isto é, o direito dos sujeitos e atores subjugados, explorados e excluídos a se levantar contra a opressão.
Em segundo lugar, essa abertura de espaço em sistemas políticos que, como on caso do Peru ou do Chile, são profundamente conservadores, se concretizou em novas formas organizativas e de luta, que melhoraram os repertórios de mobilização desses sujeitos historicamente explorados. Estamos falando de uma decisão, a partir da reprodução de práticas de ampliação da democracia como as da Bolívia, a do próprio Equador de [Rafael] Correa e da Venezuela de Hugo Chávez, de não se submeterem a nenhum ator político nacional ou transnacional que tentam impor novamente a “receita” de redução do Estado e abertura ao capital especulativo.
As tensões criativas (para usar o conceito do companheiro Álvaro García Linera, vice-presidente da Bolívia), geradas pela perspectiva de limitar os direitos sociais e políticos dos cidadãos e favorecer o capital e suas lógicas de submissão, culminaram no aumento de consciência ao redor do enfrentamento às práticas de exploração e seus esforços para encurralar e limitar totalmente as políticas da reivindicação de direitos que vinham acontecendo na América Latina desde a massiva mobilização da Campanha contra a ALCA em 2005.
A reprodução de estratégias bem-sucedidas de mobilização no confronto com as tentativas de impor as fórmulas neoliberais, que resultaram em importantes protestos pela defesa dos salários em Buenos Aires contra Mauricio Macri, no Equador contra Lenín Moreno, no Chile contra Piñera ou no Peru devido ao esgotamento de uma elite corrupta, são apenas exemplos desse renascimento da esquerda insurgente.
Os protestos recentes na Argentina, Chile, Equador e Peru demonstram a natureza do debate que surgiu em torno do alcance e das práticas democráticas promovidas pelo Novo Constitucionalismo e os setores que apostam no modelo representativo de democracia. Essa tensão é muito complexa. Está associada à instrumentalização institucional da participação popular, não apenas no exercício do sufrágio, mas também na formulação, monitoramento e controle de políticas públicas e, portanto, nas formas de administração da apropriação da mais-valia do trabalho.
Não se pode deixar de lado o fato de que esses protestos representam uma crise política nesses sistemas, expressos nas próprias contradições impostas pela decisão de suas elites de se submeter obedientemente às ordens do capital transnacional e à perda da capacidade desencorajadora de seus aparatos repressivos mas, além disso, os protestos são expressão de profundas mudanças derivadas do papel das economias emergentes e sua relação com a América Latina. O novo G7, encabeçado pela China e Rússia, seguido pela Índia, África do Sul, Turquia, entre outros, têm um potencial em termos de crescimento de seu PIB superior aos dos EUA, União Europeia e Japão juntos e o espaço comercial e produtivo que conquistaram na América Latina está cobrando seus lucros e pressionando os interesses do capital especulativo que o presidente dos EUA representa.
Podemos afirmar que este ciclo de protestos põem em xeque a hegemonia que a direita latino-americana pretendia construir e é uma consequência do que costumamos chamar de “desocidentalização” das relações internacionais. Com isso, sustentamos que a dominação que o Ocidente desde o início da expansão ultramarina no século XV está sofrendo um colapso. Não apenas porque a associação Rússia-China deu um impulso econômico produtivo para além de suas fronteiras, concretizada nos Acordos de Shangai e a proposta da Rota da Seda, mas porque, além disso, pôs em xeque toda a engrenagem institucional do sistema-mundo institucionalizado desde 1945. A essa crise de institucionalidade de dominação mundial, soma-se novas vozes que amplificaram seu alcance e perigo para os interesses do imperialismo.
Isso se articula com o que, em nossa visão, é um novo impulso para a insurgência da esquerda na América Latina. Há um aparente ciclo de insurgência, que na nossa história recente se inicia com a Revolução Cubana em 1959, é retomada com a Revolução Sandinista em 1979, com a vitória de Chávez e a Constituinte de 1999 e agora, 20 anos depois, com a efervescência insurgente no México, as resistências antineoliberais na Argentina, no Chile, no Equador e a crise institucional no Peru, mas que se conecta também com os protestos dos coletes amarelos na França, a mobilização independentista na Catalunha, ou a crise política na conformação de uma coalização de governo na Espanha e nas próximas vitórias eleitorais na Bolívia, com Evo Morales, e da coligação Fernandez-Kirchner na Argentina no dia 27 de outubro. Mudanças importantes estão chegando no mundo e a Venezuela é um exemplo desse ciclo insurgente.
*Juan Eduardo Romero é vice-presidente do Conselho Legislativo e coordenador de Povos Irmãos do PSUV de Zulia, na Venezuela.
Edição: Luiza Mançano