Em audiência pública na Comissão Parlamentar Mista de Inquérito (CPMI) das Fake News, nesta terça-feira (22), no Senado, especialistas defenderam que o tratamento para quem produzir e disseminar informações falsas em plataformas de comunicação deve evitar a criminalização. Eles apontam o risco de comprometimento das liberdades de expressão e de imprensa.
Foi o que afirmou, por exemplo, o presidente da Associação Brasileira de Jornalismo Investigativo (Abraji), Daniel Bramatti, para quem é preciso ter cautela com o tema. Ele menciona como destaque a existência de governantes autoritários que utilizam a expressão “fake news” para atingir a imprensa, criando uma confusão intencional em relação ao conceito para atingir politicamente profissionais e veículos que produzam conteúdos contrários aos seus interesses.
“Sempre que se tem uma oportunidade de tentar combater esse problema com lei ou com Justiça, o jornalismo sai prejudicado. Então, quero deixar claro que, para a comunidade de jornalistas brasileiros que trabalham com a questão da desinformação, é praticamente consensual que isso não se resolve com lei nem com Justiça”, explica presidente
Bramatti lembrou também o caso em que o ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) Alexandre de Moraes censurou, em abril deste ano, uma reportagem da revista digital “Crusoé” e o site “O Antagonista”, ao qual pertence a publicação, alegando que se tratava de “um típico exemplo de fake news”.
O material citava o presidente da Corte, Dias Toffoli, no âmbito de um possível envolvimento em um dos processos da operação Lava Jato. A medida de Moraes foi duramente criticada por diferentes atores e acabou sendo revogada pelo próprio magistrado.
“Peço uma reflexão: se a gente colocar nas mãos de juízes a definição do que é verdade e colocar o poder de restringir a circulação de informações e de ideias no Judiciário, pensem nos riscos que isso pode ocasionar. Então, desinformação não se resolve com lei nem com Justiça”, reforça o presidente da Abraji.
Defesa semelhante faz o coordenador-geral do Curso de Extensão em Direito Eletrônico da Escola de Magistratura do Rio de Janeiro, Walter Capanema. “A gente não pode, com a finalidade de se combater as “fake news”, prejudicar, atrapalhar a liberdade de expressão e, com isso, acabar fazendo que as pessoas evitem se manifestar nas redes sociais e na internet”, afirma.
Para a deputada Luizianne Lins (PT-CE), integrante da CPMI, é preciso fortalecer mecanismos de garantia da liberdade de expressão e de imprensa e, ao mesmo tempo, coordená-los leis específicas direcionadas a empresas.
Ela destaca a preocupação com negócios de atuação internacional que hoje lucram com a produção de conteúdos falsos na internet. Segundo a parlamentar, muitas dessas firmas atuam com base em um código próprio, aproveitando-se do vácuo legal das normas internas dos países para difundir “fake news”.
“A gente precisa se debruçar sobre isso. É assim que vai acontecer? A lei é da própria empresa e os países não vão ter nenhum tipo de controle mínimo sobre o que essas empresas querem ou não querem fazer com as pessoas? O mais grave é quem está produzindo conteúdo mentiroso para prejudicar pessoas. Se não é uma lei que vai cuidar disso, é quem? A gente não pode deixar que isso fique do jeito que as empresas privadas querem, porque é disso que estamos falando”, defende.
Cenário
A CPMI das Fake News tem como cenário político a emergência do tema no país, especialmente após as eleições de 2018, quando o Brasil viveu uma onda de veiculação massiva de conteúdos falsos na internet, com destaque para as redes sociais, que permitem uma propagação de postagens de forma acelerada e tentacular.
::CPMI expõe medo de Bolsonaro com investigação sobre fake news nas eleições::
O filósofo Wilson Gomes, professor da Faculdade de Comunicação da Universidade Federal da Bahia (UFBA), sublinha que a eclosão do fenômeno das “fake news” estaria diretamente relacionada à ascensão da extrema direita no mundo.
“Mas não tem a ver exatamente com eleições especificamente. Acho que é um erro imaginar que 'fake news' é um elemento episódico. Hoje as campanhas são permanentes, a política é uma campanha permanente, e as 'fake news' fazem um processo contínuo de liquidação de reputação de assassinatos de imagem, de condução da opinião pública de um lado para o outro, etc.”, pondera, acrescentando que seria preciso definir algum tipo de contenção para o problema.
::Descobertas redes de extrema direita com meio bilhão de visualizações na Europa::
O filósofo também descarta, no entanto, a via criminalizatória como solução para a questão.
“O brasileiro enlouqueceu com política, e é isso que estamos vivendo agora. O sujeito se improvisa num grande legislador, num grande juiz e, no dia seguinte, já começa a codificar isso e a viver política como se fosse uma guerra. É isso que é o problema. Há quem ache que tudo se resolve com legislação e que, quanto mais se transformar as coisas em crimes hediondos, menos as pessoas farão. Sabemos que isso é difícil em alguns âmbitos e, no âmbito virtual, é muito mais difícil imaginar que simplesmente a criminalização possa resolver tudo”, considera.
Andamento
Considerado de caráter escorregadio, o debate sobre o tema na comissão ainda é embrionário e deverá ser alvo de outras audiências públicas. Ao todo, mais de 200 requerimentos devem ser analisados pelos parlamentares.
Entre eles, constam pedidos de oitiva de empresas de tecnologia que trabalharam para a campanha do PSL em 2018. Com isso, o tema pode atingir o governo do presidente Jair Bolsonaro (PSL), hoje marcado também por uma intensa crise interna no partido.
Questionada pelo Brasil de Fato sobre a expectativa para o andamento dos trabalhos, a relatora da CPMI, deputada Lídice da Mata (PSB-BA), disse esperar que a comissão consiga investigar a origem, o financiamento de campanhas de “fake news” e denunciar os responsáveis, independentemente de coloração partidária.
“Nós temos o WhatsApp, por exemplo, que já declarou que houve uma movimentação fora da normalidade no período eleitoral. Eles também devem ser convocados e esperamos que possam explicar isso, da mesma forma que as empresas que foram parte do processo eleitoral e estão sendo acusadas de supostamente elaborarem campanhas de ‘fake news’”, disse.
Edição: Rodrigo Chagas