O outubro chileno de 2019 lembra muito o junho brasileiro de 2013; entenda
É cedo para dizer o que está ocorrendo no Chile, para além do óbvio de ser uma revolta popular, de caráter espontâneo e sem direção, que teve como detonador o protesto de estudantes, decorrente do aumento na tarifa do metrô de Santiago.
E se espalhou por outras cidades e povoados, onde sequer existe metrô, abarcando outros temas da política do governo de Sebastian Piñera: reivindicações sociais em saúde, educação, salários, meio ambiente, direitos indígenas, de mulheres, com muitas acusações contra o sistema político, as instituições, a corrupção, verificadas em faixas, cartazes e gritos nas ruas.
Por que tenho a impressão de já ter visto um filme com roteiro similar?
Porque o outubro chileno de 2019 lembra muito o junho brasileiro de 2013. É uma perspectiva que já apareceu em algumas narrativas de historiadores e cientistas políticos, sem muito aprofundamento.
Claro que o Chile tem um governo de direita em um Estado neoliberal, diferente do que era o Brasil há seis anos. Mas as pautas difusas das ruas, as pichações e as publicações nas redes sociais, dão conta de discursos moralistas e de negação da política que, lamentavelmente, podem abrir margem para figuras ainda mais autoritárias do que o atual governante chileno, propiciando a formação e o fortalecimento de grupos de extrema direita que disputem a narrativa pela via antidemocrática.
Não há espaço para qualquer determinismo, mas o olhar retrospectivo sobre nosso passado histórico recente é uma das formas de tentar assimilar processos contemporâneos de outras nações, sem deixar de compreender que o exame depende de vários critérios e, especialmente, da adequação dos exemplos às condicionantes locais.
Se os 3,75% de aumento em pesos terão a mesma consequência dos 20 centavos de reais ou se o “Chile despertó” se revelará sinônimo do “O gigante acordou” não se pode saber. Dependerá de como se comportarão as instituições diante do conturbado cenário, e quais serão os caminhos apontados pelos líderes políticos para a saída da crise aguda. Por enquanto, existe um governo encurralado, que reage com repressão, mandando o Exército para as ruas, e uma classe política acuada, que não sabe o que fazer diante da ebulição.
Mesmo que nosso precedente não sirva com perfeição pode ter o potencial de oferecer, no mínimo, os indícios de quais caminhos não devem ser trilhados pelos partidos e coletivos progressistas chilenos, quais atos não devem ser repetidos e que posturas políticas não devem ser adotadas.
A omissão que aqui se deu, quando a esquerda não disputou as ruas, fez com que surgissem movimentos de direita como “MBL”, “Vem pra rua”, dentre outros, e crescesse substancialmente o número de defensores da volta à ditadura militar. E é preciso que se assuma que os governos de centro-esquerda no Chile não conseguiram enfrentar os problemas resultantes de dificuldades estruturais da sociedade.
O Chile, no final do governo de Michele Bachelet, ainda registrava índices recordes de desigualdade social, apesar dos progressos alcançados na implementação de algumas políticas públicas. A reforma da educação, sua grande bandeira, não foi concluída e esbarrou em decisão de inconstitucionalidade do Tribunal Constitucional.
A força motriz de um projeto reacionário de poder – não vale apenas para Trump e Bolsonaro, mas para todos os líderes com características fascistas que ascenderam ao comando de nações no mundo – é alimentar o descrédito generalizado da população em relação ao sistema político e suas instituições, centrando na ineficiência das políticas públicas e na corrupção e se apresentando como alternativa fora do padrão. As normas de tolerância são diluídas e catalisadas pela radicalização contra o meio tradicional de se fazer política. Os discursos são inflexíveis, de desconhecimento e desprezo pelo adversário.
De todo modo, na busca de compreender e acompanhar o deslinde do fenômeno que leva milhares de cidadãos às ruas no Chile, é preciso não titubear na defesa da liberdade de manifestação e dos protestos políticos como direito básico de qualquer Estado Democrático. E desejar que a saída seja a superação da desigualdade imposta pelo modelo liberal.
Edição: Brasil de Fato