“Canta, canta, companheiro; que tua voz seja disparo, que com as mãos do povo não haverá canto desarmado”, diz o verso de homenagem de Ali Primera aos lutadores que morrem defendendo a vida dos demais. A canção escrita em 1973, faz parte do álbum “Canción mansa para un pueblo bravo” (Canção mansa para um povo bravo), lançada cerca de dez anos antes da morte do cantor do povo venezuelano.
Ely Rafael Primera Rossell, mais conhecido como Ali Primera, pela origem árabe do seu nome, completaria 78 anos neste 31 de outubro se estivesse vivo. Nascido no caribe venezuelano, na cidade de Coro, o caçula do senhor Antonio Primera, pescador dos mares do estado Falcón, e de dona Carmen Adela Rossell.
Com a morte precoce do companheiro, dona Carmen se muda com os seis filhos para o campo, na península de Paranaguá. As belezas do campo, da natureza e do mar contrastam com a dureza da vida do povo que trabalha. Essa realidade é desenhada pelas letras de Ali Primera em todos os seus 13 discos.
Jovem militante da Juventude e do Partido Comunista da Venezuela, Ali estudou química na Universidade Central da Venezuela e, mais tarde, engenharia do petróleo, na Romênia, quando o país fazia parte da União das Repúblicas Socialistas Soviéticas (URSS), para trabalhar na indústria petroleira venezuelana. No entanto, quatro anos depois, abandonou os estudos e voltou para cantar a vida do seu povo e sua história.
Sempre acompanhado de um Cuatro (instrumento de cordas venezuelano), que aprendeu a tocar ainda criança assistindo seu padrasto, José Padilla, tocar nas procissões de Cruz de Maio, Ali Primera fez da música sua forma de luta.
Foi censurado pelos governos autocráticos do chamado Pacto Del Punto Fijo (1958 a 1998) -- os 40 anos que precederam ao primeiro governo de Hugo Chávez, marcados por um sistema bipartidarista dividido entre os partidos Ação Democrática e União Republicana Democrática.
O cantor decide então criar sua própria produtora, chamada Cigarrón, que produziu seus discos de 1974 a 1985, quando faleceu, no dia 16 de fevereiro, em um acidente de carro em Caracas.
Em 1986, seu irmão José Montecano lançou um último disco póstumo de Ali, com as músicas que o cantor do povo havia escrito e gravado dois anos antes.
Sua música militante e tradicionalmente venezuelana foi inspiração para muitos. O sobrinho Ali Alejandro Primera é um deles.
Músico, compositor e militante da revolução bolivariana, lançou dois discos “Abril” (2008) e “Amarú” (2010) com sua banda Marcial e representou a Venezuela em apresentações em mais de 15 países. Foi vice-ministro de Comunicação Popular e é presidente do Centro Nacional do Disco.
Para recordar a obra e vida de Ali Primera, o Brasil de Fato conversou com seu sobrinho.
Brasil de Fato: Qual é o legado da obra e militância de Ali Primera?
Ali Alejandro Primera: Dizemos que o legado de Ali Primera pode ser sintetizado em uma ideologia. Uma forma de pensar e uma forma de defender a humanidade, construir o socialismo, defender os povos que andam em luta, a ecologia, a natureza e, é claro, de se opor ao imperialismo. Nesse caso, ele sintetiza a obra bolivariana e socialista que Hugo Chávez deixou e que nos seguimos construindo.
Você, além de músico, como muitos dos seus familiares, também tem o mesmo nome do seu tio. Como Ali Primera influenciou na sua vida artística pessoal?
É uma grande responsabilidade levar esse nome. Ele se alegrou muito, me dizia "xará". Quando ele faleceu eu ainda era uma criança, mas ele marcou minha doutrina. Minha família é muito musical e eu decidi que além de ser músico, decidi ser músico militante da causa 'ali primerista'.
É certo que sou vinculado a esse legado e recibo muito carinho das pessoas que sabem que tenho um nexo umbilical com o cantor maior. No entanto, ando construindo minha canção, meu caminho, minha forma de pensar. Assim Ali iria querer que fizesse. Sem me aproveitar da sua obra poética e sem ser mercenário da sua mensagem.
Cada dia me sinto mais comprometido com sua obra como cantor.
Ali foi um grande defensor do uso da arte aliada à política. Via nas suas canções uma forma de expressar sua luta. No entanto, há muitos que defendem uma separação da arte e da política. Para você, qual o papel a música num processo de transformação política, como o que vive a Venezuela hoje?
Ali Primera era um político que cantava. Ele se formou primeiro como militante revolucionário e usou o canto por seu efeito desinibidor. Não podemos desvincular.
Era um homem muito solidário, bolivariano, marxista. Convencido de que uma sociedade socialista era possível neste continente.
Jamais abandonou sua condição ideológica para abraçar um ser humano, para fazer uma canção solidária. É importantíssimo usar essa música nossa, autóctone, altamente popular, com elementos da nossa tradição. Canções que, como dizemos, acalentam os ossos das grandes maiorias deste país.
Ali era conhecido como o “cantor do povo” pelas suas letras comprometidas, que cantavam a realidade da Venezuela e a busca pela liberdade, mas também porque era um homem muito carismático e que vinha do povo. Como a revolução contribuiu para que sua obra seja reconhecida? E como trabalhou para que outro artistas comprometidos, assim como você, possam ter mais visibilidade a nível nacional?
Hugo Chávez colocou no seu verbo político, como grande comunicador, a música de Ali Primera, porque entendeu que Ali era um grande comunicador.
Muitas pessoas, inclusive vinculadas a ambientes reacionários, estudaram o Ali como fenômeno de massa. Por que pensavam 'como é possível uma pessoa com um Cuatro [instrumento de cordas] e uma mensagem tão simples consegue chegar a tantas multidões?'. Por isso esse canto era popular, porque tinha carisma.
Qual o papel do Estado venezuelano na promoção da cultura e dessa arte revolucionária, que Ali defendia, e que você dá continuidade?
Acredito que defender o legado de Ali não deveria ser o papel de um governo, senão do Estado. Há uma linha muito tênue entre o papel do governo revolucionário e do Estado venezuelano. No entanto, o Estado tem assumido uma política de continuidade sobre a autonomia e soberania do nosso povo.
Reivindicar o legado anti-imperialista de Ali, amplificar e internalizar esse legado bolivariano já seria um grande serviço.
A outra tarefa é a organização popular. A medida que o Estado promova a organização popular, o estado comunal e que o povo seja protagonista do seu destino, estaremos reivindicando a música de Ali.
E isso é claro que nos move e o Estado tem uma grande responsabilidade, porque Ali foi um grande defensor de uma venezuenalidade. O que chamamos de país-nação sempre foi exaltado pela música de Ali.
Foi um homem que se opôs ferozmente ao status quo que impuseram nesse país, no entanto nunca deixou de amar esse território e gentílico, com todas as características que só cada povo, com seus costumes, pode formar. Se na América defendemos a identidade como nação, estaremos defendendo o legado de Ali.
Ali foi censurado por governos do período do Pacto do Ponto Fixo (Punto Fijo) e decidiu criar sua própria produtora para produzir seus discos e dos seus amigos cantores. Uma decisão ousada para sua época. Hoje, quais são os desafios para quem faz uma arte revolucionária?
Quando Ali teve vida pública, que durou aproximadamente 17 anos, foi um período muito difícil para a esquerda aqui na Venezuela e em todo o continete. Eram dias de Plano Condor; de golpe de Estado no Chile; de Guerra Fria; de movimentos insurgentes na América Central; de luta insurgente na Colômbia e em outros lugares; de bloqueio contra Cuba; ditadura em Haiti.
Enfim, fazer essa música era algo perigoso, mas Ali decidiu enfrentar e nunca se negou a se vincular aos grandes movimentos insurgentes na América Latina e compôs canções solidárias com quase todos os povos, principalmente, para àqueles que estavam sendo atacados pelo imperialismo norte-americano.
Enfrentava a indústria do entretenimento e promovia uma corrente distinta. Eu acredito que nós artistas populares devemos seguir fortalecendo as plataformas alternativas e ir criando uma música alternativa. Não somente avançando numa música histórica, como a que nos deixou Ali Primera, senão sendo mais ousados, porque agora temos outros elementos comunicacionais.
Acho que hoje a produção audiovisual é um desafio a vencer. Existem artistas que têm sido mais exitosos, mas muitos também tiveram que ceder às exigências de gravadoras tradicionais, que muitas vezes desfiguram esse canto comprometido com as lutas mais genuínas do nosso povo.
Como manter viva a herança de Ali?
Seguindo sendo consequentes com o que o povo reivindica. Somos amigos do governo revolucionário, não necessariamente o canto que nós fazemos é um canto oficial. Senão uma música que cresceu livremente e é sensível com as lutas do nosso povo.
Buscamos sempre manter viva sua herança, que já deu muitos frutos, inspirou muitos cantores. Acredito que o fundamental é trabalhar com a juventude, onde. Aí sempre deve estar o canto de Ali, um canto genuíno,bonito e amoroso.E não nos deixarmos ofuscar por aqueles artistas que tem uma mensagem reacionária, mas como tem uma beleza estética, acreditam que tem o direito de subestimar esse legado do nosso cantor maior.
Edição: Rodrigo Chagaas