“Eu achava que quando ocorresse uma prisão injusta, que você tem provas e testemunhas de que aquilo não aconteceu, que na delegacia mesmo aquilo se resolvesse. Mas não é assim, não é válido, nada disso é válido.”
O relato é de Luci Batista do Santos, empregada doméstica de 40 anos, que durante dez meses buscou provar a inocência de seus filhos, presos de forma irregular em dezembro do ano passado.
“A gente tinha filmagem, tinha testemunha e isso tudo só serviu para agora, depois de dez meses. Dez meses de batalha, de guerra, para provar a inocência deles”, relembra Luci, em sua casa no Jardim São Jorge, já em companhia de seus filhos Fabrício e Pedro, de 20 e 22 anos, respectivamente.
Fabrício e Pedro foram abordados junto a mais dois amigos, no dia 10 de dezembro, acusados de terem assaltado um motorista de Uber em frente ao Shopping Raposo Tavares, na zona Oeste de São Paulo. Segundo a família, no momento do crime os jovens estavam em frente de casa, tocando violão e ouvindo música.
Quando foram comprar refrigerante na rua ao lado, foram abordados de forma truculenta por policiais militares. Durante detenção, os rapazes alegam que não foram informados do motivo de sua abordagem, e que na delegacia não foram colhidos seus depoimentos, além do reconhecimento feito pela vítima não ter sido realizado a partir da descrição prévia.
Todos os procedimentos ferem o que o Código Penal descreve sobre as etapas necessárias para a realização da prisão em flagrante.
Rede de apoio e resistência
Após a prisão dos jovens, determinada no dia seguinte durante a audiência de custódia, Luci buscou outras formas de pressionar e divulgar a ilegalidade da prisão de seu filhos. Foi quando conheceu a Rede de Proteção e Resistência Contra o Genocídio, um movimento social que luta para denunciar prisões arbitrárias e outros formas de abusos das forças policiais nas periferias.
Segundo Marisa Feffermann, pesquisadora e uma das fundadoras de Rede, o caso dos filhos de Luci é típico no cotidiano das periferias. “É o modus operandi, a forma que feita a abordagem, a violência, a forma com que o reconhecimento é feito, a forma com que o delegado trabalha. Aqui na periferia nós temos uma condição de que você é culpado até que se prove o contrário”, afirma a pesquisadora.
A Rede de Proteção e Resistência Contra o Genocídio foi criada a partir do Seminário Internacional Juventudes e Vulnerabilidades, realizado na Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo e na Escola de Samba Combinados de Sapopemba, em maio de 2017.
Durante os dois dias de evento, participaram mais de 5 mil pessoas, entre eles coletivos periféricos e pesquisadores, que criaram um plano de ação sobre a questão da violência nas periferias.
“Nosso objetivo era dar visibilidade à violência. Quando a gente fala que a vida das pessoas periféricas importam, a gente está dizendo que importam, e que vamos fazer coisas para mostrar que importam” afirma Marisa, sobre a motivação da criação da Rede.
Desde a criação, a Rede se organiza a partir de diferentes grupos de articuladores que atuam conforme as demandas e especificidades de cada território. O grupo também realiza formação de defensores públicos e possui parceria com diferentes órgãos do poder público.
“A gente vai na Ouvidoria com as famílias e elas vão denunciando as violências do Estado. Além disso, a gente tem um grupo de trabalho com o Ministério Público para discutir o controle externo das polícias. A proposta é trabalhar justamente na perspectiva de uma promotoria. Desde 1988, é obrigação do Ministério Público o controle externo, mas a gente sabe que isso deixa muito a desejar” explica Marisa.
Atuante em todas as regiões da capital e também em cidades do interior de São Paulo, já conseguiu reverter casos de prisões injustas, como o caso de Ytalo e Alairson, adolescentes da comunidade São Remo que foram acusados de roubo de automóvel em julho deste ano.
Depois de um mês detido na Fundação Casa, os garotos foram soltos, em meio à comemoração de familiares e militantes da Rede que esperavam na porta.
“A gente tenta mostrar para os familiares que é injusto o que tem acontecido nas favelas, criminalizar sempre os jovens negros periféricos. E que você pressionando de forma organizada a luta dá resultado” afirma Júlio Cezar de Oliveira, de 38 anos, que passou a integrar a Rede depois que presenciou uma chacina em seu bairro, em Osasco.
Contexto Brasil
Atualmente, o Brasil tem a terceira maior população carcerária do mundo. Dos mais 812 mil presos, mais de 40% são de presos provisórios, suspeitos de crimes que não passaram por julgamento, na condição de presumidos inocentes.
O governo não disponibiliza dados oficiais sobre as prisões provocadas por erros dos agentes públicos: tanto o Departamento Penitenciário Nacional (Depen), quanto o Conselho Nacional de Justiça (CNJ) não disponibilizam tais informações.
Apesar de alertas da Organização das Nações Unidas sobre o excesso de prisões provisórias e a situação grave do sistema prisional brasileiro, em último relatório do Departamento Penitenciário Nacional, foi anunciado que o plano do governo é aumentar as vagas em presídios.
Até o final de 2019 o objetivo é criar de 10 mil a 20 mil novas vagas e para 2022, a previsão é de ampliar entre 100 mil e 150 mil novas vagas nas instituições carcerárias.
Edição: Rodrigo Chagas