Opinião

As multinacionais, o valioso lítio da Bolívia e a urgência de um golpe

O historiador indiano Vijay Prashad escreve sobre o que pode estar por trás da derrubada do presidente Evo Morales

Brasil de Fato | São Paulo (SP) |
Manifestantes em apoio ao presidente boliviano, na Cidade do México, no dia 11 de novembro
Manifestantes em apoio ao presidente boliviano, na Cidade do México, no dia 11 de novembro - Claudio Cruz/AFP

O presidente da Bolívia, Evo Morales, foi derrubado em um golpe militar no dia 10 de novembro. Agora ele está no México. Antes de deixar o cargo, Morales esteve envolvido em um longo projeto para levar justiça econômica e social ao seu país há muito explorado.

É importante relembrar que a Bolívia tem sofrido uma série de golpes de Estado, frequentemente conduzidos pelos militares e pela oligarquia em nome das empresas mineradoras transnacionais. No início, eram empresas de estanho, mas o estanho já não é o principal alvo na Bolívia. O alvo principal são seus depósitos maciços de lítio, cruciais para o carro elétrico.

Nos últimos 13 anos, Morales vinha tentando construir uma relação diferente entre o país e seus recursos. Ele não quis que os recursos naturais beneficiassem as empresas mineradoras transnacionais, mas, sim, a população boliviana.

Parte dessa promessa foi cumprida: a taxa de pobreza da Bolívia diminuiu e a população boliviana tem conseguido melhorar seus indicadores sociais.

A nacionalização dos recursos naturais, combinada com o uso de sua renda para financiar o desenvolvimento social, tem desempenhado um papel importante. A atitude do governo de Morales produziu uma resposta dura por parte das empresas transnacionais -- várias delas levaram a Bolívia à Justiça.

Ao longo dos últimos anos, a Bolívia tem lutado para buscar investimentos para explorar as reservas de lítio de forma a trazer a riqueza de volta ao país e para seu povo.

O vice-presidente de Morales, Álvaro García Linera, disse que o lítio será “o combustível que alimenta o mundo”. A Bolívia não conseguiu fazer acordos com empresas transnacionais ocidentais e decidiu estabelecer parcerias com empresas chinesas.

Isso tornou o governo de Morales vulnerável. Ele entrou na nova Guerra Fria entre o Ocidente e a China. O golpe contra Morales não pode ser entendido sem olhar para esse confronto.

Choque com as transnacionais

Quando Evo Morales e o Movimento ao Socialismo (MAS) chegaram ao poder em 2006, o governo imediatamente procurou desfazer décadas de roubo das empresas mineradoras transnacionais.

O governo Morales imediatamente apreendeu várias das operações de mineração das empresas mais poderosas, como Glencore, Jindal Steel, Anglo-Argentinian Pan American Energy e South American Silver (hoje TriMetals Mining). Ele enviou uma mensagem de que os negócios não iriam continuar como de costume.

No entanto, essas grandes empresas continuaram com suas operações -- com base em contratos mais antigos -- em algumas áreas do país.

Por exemplo, a transnacional canadense South American Silver tinha criado uma companhia em 2003 -- antes de Morales chegar ao poder -- para explorar prata e índio (um metal de terras raras usado em televisores de tela plana) no Malku Khota.

A empresa então começou a estender o alcance de suas concessões. As terras reivindicadas pela empresa eram habitadas por comunidades indígenas bolivianas, que argumentaram que a companhia estava destruindo seus espaços sagrados, além de promover a violência.

No dia 1º de agosto de 2012, o governo Morales -- pelo Decreto Supremo nº 1308 -- anulou o contrato com a South American Silver (TriMetals Mining), que então procurou arbitragem internacional e compensação.

O governo canadense de Justin Trudeau -- como parte de uma movimentação mais ampla em nome das empresas de mineração canadenses na América do Sul -- colocou uma imensa pressão sobre a Bolívia. Em agosto de 2019, a TriMetals firmou um acordo de US$ 25,8 milhões com o governo boliviano, cerca de 10% do que havia exigido anteriormente como compensação.

A Jindal Steel, uma corporação transnacional indiana, tinha um contrato antigo para explorar minério de ferro no El Mutun, que foi suspenso pelo governo Morales em 2007.

Em junho de 2012, a Jindal Steel encerrou o contrato, procurando arbitragem internacional e compensação pelo seu investimento. Em 2014, a corporação ganhou US$ 22,5 milhões na Câmara de Comércio Internacional, sediada em Paris. Em outro caso, a Jindal Steel exigiu US$ 100 milhões em compensação.

O governo Morales apreendeu três instalações da Glencore, empresa de mineração transnacional sediada na Suíça, que incluíam uma mina de zinco e estanho bem como duas fundições. A desapropriação da mina ocorreu depois que a subsidiária da Glencore enfrentou violentamente os mineiros.  

Mais agressivamente ainda, a Pan American processou o governo boliviano em US$ 1,5 bilhão pela expropriação feita pela companhia nacional de energia da sua participação na Petrolera Chaco. A Bolívia pagou US$ 357 milhões em 2014.

A escala desses pagamentos é enorme. Foi estimado em 2014 que os pagamentos públicos e privados feitos para a nacionalização desses setores-chave totalizaram pelo menos US$1,9 bilhão (O PIB da Bolívia era, na época, US$ 28 bilhões).

Em 2014, até mesmo o Financial Times concordou que a estratégia de Morales não era totalmente inadequada. “A prova do sucesso do modelo econômico de Morales é que, desde que chegou ao poder, ele triplicou o tamanho da economia e conseguiu um recorde em reservas cambiais”.

Lítio

As principais reservas da Bolívia são de lítio, que é essencial para o carro elétrico. A Bolívia afirma ter 70% das reservas mundiais de lítio, principalmente no Salar de Uyuni.

A complexidade da mineração e do processamento do lítio fez com que a Bolívia não conseguisse desenvolver sozinha a indústria do lítio. Precisa de capital e conhecimentos especializados.

O sal está a 3.600 metros acima do nível do mar e recebe alta pluviosidade. Isso dificulta o uso da evaporação a base de sol. Tais soluções mais simples estão disponíveis no deserto de Atacama no Chile e no Hombre Muerto na Argentina. São necessárias soluções mais técnicas para a Bolívia, o que significa que são necessários mais investimentos.

A política de nacionalização do governo Morales e a complexidade geográfica do Salar de Uyuni afastaram várias empresas mineradoras transnacionais. Eramet (Franca), FMC (Estados Unidos) e Posco (Coreia do Sul) não conseguiram fazer acordos com a Bolívia e operam agora na Argentina.

Morales deixou claro que qualquer exploração do lítio teria de ser feita em conjunto com a empresa mineradora nacional da Bolívia, a Comibol, e com a Yacimentos de Litio Bolivianos (YLB), sua empresa nacional de lítio, como parceiros iguais.

No ano passado, a ACI Systems da Alemanha conseguiu um acordo com a Bolívia. Mas após protestos dos moradores da região do Salar de Uyuni, Morales cancelou o acordo em 4 de novembro de 2019.

Empresas chinesas, como a TBEA Group e a China Machinery Engineering, fizeram um acordo com a YLB. Dizia-se também que o Tianqui Lithium Group da China, que opera na Argentina, faria um acordo com a YLB.

Tanto o investimento chinês quanto a empresa boliviana de lítio estavam experimentando novas formas de extrair e compartilhar os lucros do lítio. A ideia de que se pudesse ter um novo pacto social para explorar o lítio era inaceitável para as principais empresas de mineração transnacionais.

Mineradoras como a Tesla e Pure Energy Minerals (Canadá) mostraram grande interesse em ter uma participação direta no lítio boliviano. Mas elas não conseguiram fazer um acordo que levasse em consideração os parâmetros estabelecidos pelo governo de Morales.

O próprio Morales foi um impedimento direto à aquisição dos campos de lítio pelas empresas transnacionais não chinesas. Por isso, ele precisava sair.

Após o golpe, as ações da Tesla subiram astronomicamente.

*Vijay Prashad é historiador, jornalista indiano e diretor geral do Instituto Tricontinental de Pesquisa Social

Edição: Rodrigo Chagas | Tradução: Pilar Troya