O presidente atrai nossas atenções enquanto a "boiada atravessa o rio"
A expressão é bem conhecida e tornou-se um clichê em comentários políticos. Para atravessar o gado em rio com piranhas, a sabedoria popular ensinou os vaqueiros a escolher um animal velho ou doente e colocá-lo na água em local acima ou abaixo do ponto de travessia. Enquanto as piranhas devoram o boi escolhido, os demais passam pelo rio e seguem a caminhada sem dificuldade.
Neste comentário as piranhas entretidas, somos nós, as forças populares.
Pouco a pouco vamos nos dando conta que o diversionismo causado diariamente por Bolsonaro e seus filhos, tal os truques de mágicos, atrai nossas atenções enquanto a "boiada atravessa o rio".
Bolsonaro governa dirigindo-se exclusivamente para sua base social, seguindo o roteiro do fascismo clássico em construir seu próprio partido.
Enquanto ocupa o cenário, brigando com todos, principalmente seus aliados, as medidas econômicas são aprovadas pelo Congresso e o Diário Oficial complementa uma ofensiva profunda, simultânea e acelerada do desmonte das bases nacionais.
Que representação política poderia ser mais valiosa para o bloco no poder?
O programa econômico e social, cuja agenda vem sendo rigorosamente cumprida, numa velocidade inaudita é quem solidifica a unidade entre as várias frações de classe da burguesia que conformam o bloco no poder.
E como anda essa unidade? Dá sinais de fratura ou de vitalidade?
Mesmo com o relativo fiasco no mega-leilão das bacias de petróleo, as privatizações seguem seu curso, prometendo a entrada de mais recursos. A redução do déficit fiscal com os valores obtidos no leilão do petróleo, leva o governo a enviar ao Congresso uma mensagem para modificar o orçamento do ano que vem e ampliar o espaço para despesas, liberando R$ 14 bilhões para gastos.
Já se prevê a possibilidade de um "voo de galinha" na economia, à custa da venda de nosso patrimônio público, gerando uma situação favorável aos investidores, que, sem dúvida, ajuda a solidificar a unidade das diversas frações burguesas.
Também contribui para manter a unidade burguesa a acelerada continuidade do desmonte dos direitos trabalhistas e previdenciários. Somente na última semana, a medida provisória que cria o "Programa Verde e Amarelo" eleva a um novo patamar o desmonte dos contratos de trabalho assegurados pela CLT, além de taxar o seguro-desemprego, retirando direitos históricos dos bancários, como a jornada de seis horas e reduzindo os juros e a correção das ações trabalhistas.
A manutenção da unidade das frações burguesas exerce um forte pólo de atração para os setores médios, especialmente a pequena burguesia, cada vez mais ameaçada com o fantasma da proletarização. Ainda que amplie sua frustração com o governo são os setores que mais se deixam levar pela aparências da cena política, facilmente atraídos nas disputas ideológicas e principais vítimas das encenações políticas.
Não é fácil desvincular nossas análises da realidade de nossos desejos e simpatias. Da mesma forma é igualmente desafiador compreender o cenário do teatro político sem se deixar absorver pelas meras representações das forças sociais, quase sempre engajadas no esforço de nos enganar sobre seu objetivo papel de classe.
É fundamental compreender as classes e suas respectivas frações, identificando seus interesses e contradições. E, principalmente, a posição que assumem enquanto forças sociais. Porem, o mais complexo, por envolver uma apreciação subjetiva é avaliar a disposição de luta por seus interesses. Uma dinâmica que não é estática e constantemente gera aparências que podem nos induzir a erros.
Sem compreender esse processo, cada novo fato que implica em derrota ou vitória política será interpretado como uma mudança na correlação de forças, ainda que não tenha alterado a qualidade do enfrentamento e a dinâmica das lutas.
A questão crucial que pode alterar a atual correlação de forças é a dinâmica de luta das classes trabalhadoras. Para buscar compreender sua atual paralisia, que é sempre contraditória e aparente, precisamos responder o que a determina.
Se a hipótese principal é que estamos diante de uma paralisia determinada materialmente pela gigantesca ofensiva em curso, que desestrutura as formas de trabalho e as organizações sindicais, concluiremos que esse impacto das transformações na realidade imprime no comportamento dos trabalhadores as mudanças correspondentes para favorecer sua autopreservação, impondo um necessário período para recompor sua capacidade de luta e construir as ferramentas organizativas adequadas.
Prossegue a desindustrialização e a capacidade de produção industrial amplia a ociosidade, perdendo terreno nos investimentos em inovações tecnológicas e reduzindo os ganhos de produtividade.
O salto repentino na precarização, impulsionado pela terceirização irrestrita, pode se converter em regra para a juventude, com o chamado "Programa Verde e Amarelo". Um processo que se combina com índices elevados de desemprego, uberização das relações de trabalho e uma estrutura sindical repentinamente privada de sua sustentação econômica.
É fácil perceber o desespero dos trabalhadores em lidar com uma ofensiva tão avassaladora que desmonta as perspectivas e obriga a concentrar todas energias na sobrevivência.
Evidente que a classe trabalhadora, como um todo, não ficará indene a estes ataques e, todo o ganho de renda das classes dominantes vai semeando uma seara vermelha que terá sua colheita sob a forma de tensões e convulsão social em algum momento.
Porém, sabemos que explosões sociais não desaguam necessariamente em transformações. Mudanças qualitativas no ânimo e na disposição das massas também precisam ser pacientemente construídas, para que uma explosão social não seja apropriada pelo inimigo ou rapidamente esmagada.
Sem compreender o processo em curso, seguiremos atônitos, apostando em iniciativas messiânicas, fadados a novas frustrações enquanto a boiada vai passando.
Edição: Rodrigo Chagas