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Revolta da Chibata: 109 anos de um levante contra o racismo nas Forças Armadas

No Brasil, havia uma cultura escravocrata de castigos corporais físicos

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Pesquisadores afirmam que a maior parte da Marinha brasileira era composta de homens negros
Pesquisadores afirmam que a maior parte da Marinha brasileira era composta de homens negros - Divulgação
No Brasil, havia uma cultura escravocrata de castigos corporais físicos

Há 109 anos, o litoral do Rio de Janeiro era palco de um levante popular originado dentro de uma das estruturas mais conservadora no país, as Forças Armadas. A Revolta da Chibata, como ficou conhecida, eclodiu em 22 de novembro de 1910 e teve como protagonistas os trabalhadores da Marinha brasileira.

Durante seis dias, marinheiros assumiram o controle de quatro navios de guerra ancorados na Baía de Guanabara e ameaçaram bombardear a cidade, na época a capital do país. Entre as reivindicações, a principal era o fim dos castigos corporais. Também estavam presentes pautas como a luta contra a herança escravocrata do Estado brasileiro e a conquista de direitos políticos.

O levante, além de exemplo de dissidência política dentro das Forças Armadas, representa a capacidade de organização e resistência do povo negro. É o que afirma o professor de História da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (UFRRJ) Álvaro Pereira do Nascimento, em entrevista ao Brasil de Fato. Ele é autor do livro Cidadania, Cor e Disciplina na Revolta dos Marinheiros de 1910 (2008).

Uma resistência com cor e história

Pouco mais de duas décadas desde o fim da escravidão no Brasil, o cenário encontrado no país era de extrema desigualdade. Os altos cargos de poder estavam reservados a uma burguesia majoritariamente branca. Na Marinha não era diferente.

Nascimento afirma que, apesar de não haver um registro por cor, as pesquisas revelam que parte substancial dos marinheiros de baixa patente, entre cabos e sargentos, era de homens negros; enquanto o oficialato era representado por homens brancos. A reprodução do racismo foi pano de fundo para uma manifestação popular que tentava mudar essa realidade.

“No Brasil, havia uma cultura, como ainda há — reservadas as devidas diferenças — escravocrata, de castigos corporais físicos sob uma pessoa que é vista como inferior a outra que é superior e, por isso, pode bater em pessoas. E a questão da escravidão aqui tem cor. Tem uma origem. Nessa hora, nós vemos o racismo novamente persistir”, afirma o professor.

De acordo com Nascimento, as diferenças dentro do próprio corpo de trabalhadores são importantes para desmistificar a ideia de hegemonia de opinião e ideologia entre os militares.

“Não se pode dizer que todo mundo, por ser militar, tem o mesmo pensamento. Muito pelo contrário. Nós encontramos divisões por hierarquia, com pessoas de formações escolares e experiências de vida diferentes. A pessoa que entra como soldado, marinheiro ou sargento tem uma formação, um capital social e cultural diferente do oficialato, por exemplo”, explica.

O Almirante Negro

O principal rosto da Revolta da Chibata é o marinheiro João Cândido Felisberto (1880 — 1969). O “Almirante Negro”, como ficou conhecido, cresceu em um Brasil que via a escravidão ser abolida. Filho de escravos, nasceu em uma fazenda no Rio Grande do Sul e tornou-se um destacado marinheiro.

A indignação com os abusos cometidos na Marinha fez com que liderasse a Revolta da Chibata. A experiência que o marinheiro adquiriu nas viagens internacionais com a frota brasileira também serviu de combustível, segundo conta o jornalista Fernando Granato, autor da biografia O Negro da Chibata (2000), sobre João Cândido.

Registro de João Cândido, que morreu aos 89 anos, em 1969, no Rio de Janeiro (Foto: Divulgação)

Em 1905, eclodiu um levante no encouraçado Potemkin, da frota de guerra russa, por melhores condições de trabalho. “Ele volta para o Brasil imbuído de todo esse aprendizado social que teve lá fora”, afirma o jornalista. Ao terminar o levante, os marinheiros conquistaram o fim dos castigos corporais. No entanto, foram presos pelo Governo brasileiro.

João Cândido sobreviveu à prisão e às perseguições que sofreu das Forças Armadas. Seguiu uma vida de anonimato, vendendo peixes em praças públicas, mas entrou para a história como sinônimo de resistência.

Hoje, a trajetória de João Cândido Felisberto está presente nas bibliotecas das escolas públicas brasileiras. Por meio de uma ação do Ministério da Educação (MEC), exemplares do livro de Fernando Granato foram comprados e distribuídos nas unidades.

“Isso me encheu de alegria. Porque um jovem negro da periferia ou dos grandes grotões do Brasil conhecer uma história dessas é um estímulo para levantar a autoestima e lutar. Saber o que foi para planejar o que vai ser. É uma referência”, afirma o jornalista.

João Cândido também foi homenageado com o samba O Mestre-Sala dos Mares, composto por João Bosco e Aldir Blanc no início da década de 1970.

Edição: Michele Carvalho