O que há de mais grave é a aberta disposição de não respeitar a Constituição
Por Martonio Mont’Alverne*
Mal o Supremo Tribunal Federal (STF) começou a aplicar o que a Constituição Federal prevê, fazendo prevalecer sua força normativa e ratificando o sentido do direito fundamental da presunção da inocência, a reação veio. Como a direita verdadeiramente civilizada e liberal é quase inexistente no País, a mais recente tentativa de não aceitar o jogo pactuado em 1988 partiu do obscurantismo da escumalha bolsonarista, na discussão e aprovação da Proposta de Emenda Constitucional a permitir a prisão após o julgamento da segunda instância.
Claro que é uma emenda dirigida ao ex-Presidente Lula. A ferocidade com que a proposta foi desarquivada na Câmara do Deputados, com ameaças de bloqueio da pauta enquanto não ela não é tramitada, não deixa dúvida. Este motivo sozinho impossibilita eventual aprovação, já que rompe com noção elementar de impessoalidade.
Diversas medidas procuram impor uma execução penal antecipada definitivamente. A PEC 15/2011 – arquivada – converteria o recurso extraordinário e o especial em ações rescisórias extraordinária e especial, o que anteciparia o trânsito em julgado por exaurimento dos recursos na segunda instância. Na PEC 15/2011, os mencionados recursos seriam transformados em ações rescisórias, e na PEC 199/2019 eles seriam transformados em ações revisionais (cabíveis no cível e no penal). Por fim, a modificação da redação do art. 5º, LVII, da Constituição de “trânsito em julgado de sentença penal condenatória” para “confirmação de sentença penal condenatória em grau de recurso”.
O que há de mais grave é a aberta disposição de não respeitar a Constituição. A presunção de inocência está no inciso LVII do art. 5º da Constituição, que trata dos direitos e garantias fundamentais. O inciso IV do par. 4º do art. 60 da Constituição não deixa margem para dúvidas: emenda que tendente a abolir os direitos e garantias fundamentais não será objeto de deliberação. De outro modo: todo o art. 5º da Constituição é cláusula pétrea e não pode sequer ser relativizado. Só outro poder constituinte poderá modificar qualquer das cláusulas eternas; jamais os poderes constituídos.
Este mecanismo constitucional é elementar e não há como alegar seu desconhecimento. Somos obrigados a constatar que aqueles que defendem tais propostas de emendas – dentro e fora do parlamento – têm perfeita ciência dos artigos mencionados, mas preferem golpear a Constituição toda vez que perdem no jogo democrático, como em 2016.
Trata-se de uma astuta operação retórica, sem substância em seu conteúdo e que se dirige somente contra determinados setores da sociedade: minorias, lideranças e partidos de esquerda. Nos principais momentos da discussão na esfera pública, sempre aflora o argumento da impunidade sob a forma de reivindicação absolutizante para sua assimilação.
Até o momento, não o cerne da questão não foi enfrentado por aqueles sustentam a possibilidade da prisão antes do trânsito em julgado, assim como pelos que querem modificar o texto constitucional: podemos mudar cláusula pétreas da Constituição? Estes dois grupos jamais responderam a este questionamento. Sua histeria tem por base apenas a suposta luta contra impunidade camuflando o uso do direito contra adversários.
Uma inquietação nos assombra: por que tais setores assumem posições violadoras da Constituição de forma tão aberta? Como podemos explicar este fenômeno?
Incultas em quase sua totalidade, a elite brasileira não possuiu o menor apego à democracia e às regras do jogo, que sabe serem balizadas pela igualdade formal de todos perante a lei. Qualquer divergência no sentido de alterar o quadro geral de uma realidade de extrema desigualdade social em favor de um projeto emancipatório – ainda que conjunturalmente –, não será tolerada. Na verdade, esta elite não suporta o pluralismo; não aguenta ter que conviver com nossa miscigenação e deixa-se guiar pelo afeto da tristeza, que ao extremo é o ódio.
Neste contexto, violar cláusula eterna da Constituição, incitar parte da população contra a mesma Constituição, contra as leis e até contra o Supremo Tribunal Federal é tarefa que não encontra pudor algum: comentadores da mídia mainstream travestidos de juristas e/ou intelectuais; empresários sem o menor compromisso com a estabilidade institucional e apenas vinculados ao ganho financeiro dependente e imediato; grupos militares destituídos de um senso nacionalista mínimo, ao contrário de militares de outros países, que sabem a importância da soberania econômica.
Como vemos, nosso desafio democrático não será somente a garantia da Constituição e de sua força política, mas um enfrentamento em defesa de um patamar civilizatório mínimo.
* Martonio Mont’Alverne Barreto Lima é advogado, professor titular da Universidade de Fortaleza, procurador do município de Fortaleza e integrante da Associação Brasileira de Juristas pela Democracia (ABJD).
Edição: Julia Chequer